Hoje foi a noite da comida da vovó. Não tenho mais avós comigo, cozinhando para mim. Mas se tivesse, comeria com certeza o refogado de milho verde com arroz branquinho, muito queijo parmesão ralado e manteiga. Comida carinhada, feito abraço terno, coisa de quem nunca vai pedir nada em troca, nem beijo. Mas coloquei um tempero diferente: coentro fresco. Eu sei, muita gente não gosta nem come coentro fresco. E não vai saber o que está perdendo até tentar. Eu também não gostava. Aliás, detestava. Não podia ir a restaurantes chineses que lá vinha aquela multidão de coentro picado em cima de tudo. Não podia comer comida baiana. Ia logo avisando para não colocar coentro. Tirava tudo antes de começar a comer. Mas coentro, como tudo na vida, é uma questão de se acostumar. De tentar mais uma vez. Afinal, até paixão é um reencontro, poucos são os amores à primeira vista. Quase sempre foi um olhar de novo, um novo cruzar pela sala, os olhos que se perderam e voltaram a se achar.
Passei a vida, até agora, procurando referenciais de quem eu sou. Do que gosto e do que não gosto, do que é bom e do que não é. Faróis nos mares anoitecidos, sinais deixados de propósito sobre criados-mudos, músicas cantadas ou tocadas reincidentes, qualquer símbolo ou ícone que fizesse sentido para o meu sentir de mim. Coentro era um contra-sinal. Quase repugnava. Quando foi que ele virou o jogo comigo? E fui aceitando aos poucos, deixando no prato, mas tinha que ser bem picadinho, pulverizado. Depois fui querendo mais. Fui precisando de mais. Quando foi que ele me capturou, seu aroma cítrico, meio cheirando a folha de limão, perfumado, mas masculino, penetrante?
Não, definitivamente eu não planejara passar a gostar de coentro. Eu apenas me deixei levar pelo seu cheiro, pelo seu jeito de acomodar os sabores, impetuoso e único. Eu nem percebi que me acostumava, que o aceitava, que o desejava. Eu nem percebi quando fiquei cativa, que o procurava no prato. E ele me faltava.
Hoje, meus referenciais, bem sei, estão à deriva. Vagam por aqui e por lá, sem deixar rastros. Às vezes submersos, mas sempre na dança das ondas, subindo e descendo por prazer. O que era bom, nem sempre é ainda. E o que deixou de ser, voltou a ser com a mesma desenvoltura dos dançarinos que rodopiam no salão. Quem eu sou? Um tornar a ser, quem sabe. Um ser que não se repete. O rio que passou sob a ponte. A nuvem, o vento, a flor que se abriu e exalou o perfume todo que continha até exaurir-se e ser apenas uma lembrança nos olhos de quem a viu, nos sentidos de quem a tocou. Quantos? Talvez nenhum, talvez um. Mas se foi um, esse que teve a insensatez de experimentar, correndo o risco de se perder, perder o controle, perder o medo, perder, enfim, as amarras, porque a liberdade e os sentidos fazem laços imperceptíveis, invisíveis, impossíveis, esse que se arriscou sem saber, inocente de seu gesto, terá vivido. E terá sido bom? Terá sido ruim? E ele responderá: coentro fresco. Você saberá o que isso significa?
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