segunda-feira, 27 de maio de 2013

Era mentira


Era mentira. Mas o que é que tem? Algumas pessoas acreditam na própria mentira. É só um outro jeito de ser feliz. Encher a vida de expectativas e emoções. Mentira rima com mistério. A realidade dura e feia, feita despedida, óbvia, quase sem graça, enquanto o sonho de uma vida inatingida ou vislumbrada da janela traz ar puro para pulmões sem correção. Não há correção para a busca de aventura. É apenas um jeito de ser feliz, dentre tantos.

O fato é que era mentira. Sem consequências objetivas, sem propósitos escusos, sem risco. Ou havia algum risco, necessariamente, pois emoções pedem o risco.  Mentiras como andar na corda bamba, cuspir fogo ou pintar a cara de branco e nariz vermelho. Se calhar, tudo é mentira. A pincelada na tela, o laço na costura, a palavra esculpida diligentemente na hora certa. O ritmo. Mentiras. 

Na tela grande, o filme. Gargalhadas para todo lado e por nada. O riso é o jeito mais curto de ser feliz, mais breve, mais cotidiano. Leões irrompem soltos no picadeiro, rugindo entre um estalido e outro do chicote. A cena montada iluminada onde deveria ser. O silêncio tenso de todos os presentes. Então, o som da caixa batendo incessantemente denunciando que alguma coisa iria acontecer. Mentira.

Dá para passar a vida toda no picadeiro. Talvez balançando no trapézio, talvez fazendo mágicas com mãos ágeis. Contando histórias de uma infância distante e diferente a cada vez. Qual é a verdade da vida, se tudo é uma invenção? O tempo foi inventado, a matemática foi inventada, deus foi inventado. Na vida, o que há para se crer de verdade? Nem a dureza da rocha, nem a leveza da água que corre no riacho, nem seus olhos. Não existem garantias, nenhuma garantia expandida, ou com validade até a copa. Mentiras, mentiras.

As palavras foram feitas para iludir, porque o os olhos vêm, mas não entendem, os ouvidos escutam, mas não alcançam. E o corpo, o gesto que integra alguma verdade inocente, despercebida, mostra mais que toda a arte que há para ver. Não dá para inventar o movimento o tempo todo. Não dá para declamar o que não pensou. E não é possível ser plenamente uma lenda, uma fantasia, um sonho.

A verdade é que toda mentira só passa a existir quando descoberta. Antes disso é pura realidade. Antes de tudo, é pura sensatez. A aura incompleta na frente, no peito, de um símbolo do que poderia ser possível, mas não foi. A vergonha da mentira é um risco. Pode ser que nunca seja descoberta. Pode ser que passe incólume a vida toda, como não saber o nome do pai, não saber quando se perdeu, não saber mais como voltar. Quem sabe?

A mentira é não saber. E saber para quê? O rio corre para o mar, seja lá de que jeito for. E as folhas amarelas caem para apodrecer no solo se preparando para o inverno. Não existe moral na natureza. Não existe ética. Não existe, sobretudo, julgamento. E, sim, a mentira só existe sob julgamento. Tal qual a vida que corre solta alegre ou triste, dependendo do ângulo de visão, a mentira, incapaz de subsistir com seus próprios pés, exige a presença de um espelho. Por trás de toda palavra empenhada, uma história.

Mentira, sim, mas o pior da mentira é o que ela não diz, mas quer crer que sim. O gesto dissimulado, querendo ser arte, de um teatro do absurdo. O melhor do teatro é o absurdo, porque é melhor no palco do que na vida. Tudo tudo que podia ser, leve e descontraído como a espontaneidade descomprometida. Risonho de um riso sem ironia e sem invenção. Fácil como sustentar o olhar no olho do outro o tempo suficiente para passar o incômodo, para passar a cortina de julgamentos, para ser íntimo. Olhos nos olhos são uma verdade improvável. Para poucos, pouquíssimos. Mas era mentira.

domingo, 19 de maio de 2013

Hoje fui pescar


No domingo de sol, saí para pescar. Lancei meu anzol da dúvida pela janela da casa iluminada. A luz, embora por todo lado, me obscurecia o olhar. Será? Será, meu deus? E assim, na expectativa do que viria, fiquei ali aguardando passar um peixe grande que me aliviasse o peito. Um sim me faria feliz. Um talvez me deixaria alegre. E um não? Não, não suporto nãos. Uma dificuldade anímica para aceitar o adverso. Uma reação de criança. Um mundo inteiro e eu quero o que não pode?

Para acompanhar a manhã de sol e nuvem, o som rouco e inebriante de tom waits. Fico olhando fixamente para o nada. Tudo o que não existe é um vazio. E o olhar perdido volta-se para dentro. Porque o tempo é uma invenção. O futuro é uma ilusão. E o próximo segundo já aconteceu. A linha balançou um pouco na brisa fresca e me animou. Mas a dúvida ali ainda.

Eu tive uma gata guerreira. Novinha já ensinava os outros a subir no telhado. Novinha se foi de mim. O não ali, me apalpando. Olho pela janela, azul de céu e verde de montanha. Borboletas nas paredes caiadas e risadas ao longe. Dá para se divertir à toa, à toa, como as andorinhas. Dá para se esquecer da vida ao se esquecer de si, só olhando, olhando. E a vida é o que, afinal? Ao olhar, a vida vai passando, gota a gota.

Uma fisgada no anzol. Uma pressão na mão. E meu peito se anima de novo. É bom sentir o frio que a brisa faz ao passar pela camisa e atingir a pele. O sol atrás da nuvem. O dia que se perde escorrendo como sorvete na mão quente. E eu na dança do meio dia sem fazer sombra, sem deixar marcas, apenas esperando o momento preciso de puxar a linha.

Eu nunca sei. Nunca sei o momento de nada. De decidir ir ou ficar, ou outra coisa ainda. E tudo que há é esse saber, o resto é o coquinho descendo a ladeira, a água correndo para o mar, e o infinito a esmo sobrando por todo lado. Uma parte de mim gostaria de ser assim, uma reunião de acasos desconexos e soltos perambulando pelas ruas. Mas a outra parte, sempre há outra porção em linha de choque, rompe o silêncio e fala o que quer. Quem fala o que quer tem que estar preparado para o que vier. E, desde então, de assumir os riscos.

Hoje, no augúrio de sentir que nem tudo é como a vida quer, lancei meu anzol da dúvida. Por que penso tanto, meu deus? Porque tenho neurônios e córtex cerebral, simples assim. É da minha natureza questionar a pedra que cai e a folha que balança. Mesmo tendo aprendido a rir como um regato da pedra que cai e da folha que balança, e rir à toa também. É que ainda tenho que aprender a pensar leve. Pensar demais leva o anzol para o fundo e nada se pesca. A dúvida permanece.

Nas entrelinhas, observo a palavra que me sopra o vento. Ela martela no meu peito e encontra um lugar para passar. Eu sou o som, o verbo e o deus a soprar. Procuro respostas nas ondas do mar, nas curvas das colinas, no branco das nuvens. Minha vida é uma coleção de latas e de respostas sobrepostas em camadas. Coloridas, molhadas, penduradas em anzóis lançados pela janela. O sonho e a vida. Onde uma, onde o outro? Às vezes, para saber que vivo, eu lanço pedras no lugar do anzol. E mergulho no sem fim do fundo do fundo de tudo. Quando o sonho brota na parede úmida, brota nos muros e flore despreocupado na pele, então sei que alguma coisa foi fisgada. Aí, vou para casa.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Um grande amor


Sim, já tive um grande amor da minha vida. Um para cada vida que vivi. Grande como a vida merece. E, claro, que fez rir e fez chorar, fez levantar no meio da madrugada para nada. Fez espuma, jogou confete, derreteu e se acabou. Quase no mesmo momento em que morri em todas minhas vidas. Às vezes antes do amanhecer, em noites de frio e breu, às vezes depois, em novembro, em pleno verão, aberto como praia cheia. Tanto movimento, tanto burburinho, e tanta onda.

Amores, se grandes, enlaçam as veias todas. Deixam o coração batendo bruto. Exigem músculos potentes, estremecem o peito e fazem a boca seca. E depois, vão passando os dias, vão passando as horas, os olhares, que se fixavam, vão cruzando a sala. É que a vida não tem intenção, não tem motivo. A vida vai correndo como água solta de regato que fica preso nos barrancos. E indo, indo, indo, um dia vai de vez. O amor, diferente da vida, fica.

O que faz de um amor aquele que brilha alto na memória de cada célula do corpo, acima de tudo e de todos os outros, o que faz de uma lembrança ser a mais perfeita correspondência para a realidade, é, não exatamente o que ele foi ou fez, mas aquilo que ele tocou no momento em que tocou. Porque tantos outros, antes ou depois, podem ter tocado de forma especial o mesmo ponto, atingiram um encanto como outro e outro e outro, mas não amanheceram ali e tornaram a anoitecer numa rapidez tão grande que fez uma cicatriz, uma marca, deixou uma frase incompleta, a boca aberta no meio da palavra, inconclusa, o ar preso um segundo antes de voltar a ser livre e frio.

Se o amor é uma incógnita, um grande amor é uma lenda. Entre tantas lendas que vivi, algumas viraram cinema, ganharam a tela grande. Essas enjoam de lembrar. Ou enervam. Ou tiram o sono. É como se a vida revivesse no olhar perdido que se volta para dentro. E, revivido, remonta o gosto, refaz o riso, quântica da quântica, acaba com o espaço e o tempo. Assim, nenhum amor é vão. Nem mesmo os que se foram.

Assim, todo amor é grande, desde que seja amor. Não falo de pequenos encontros e desencontros, danças de quadris que se esbaldam, ou de noites tórridas e lancinantes. Não falo de momentos densos e impetuosos de braços que se abraçam ou se amassam. Mas daqueles quase insólitos movimentos de olhos que se tocam e perpetuam o tempo. Aqueles quase infinitos segundos em que a aorta rebate forte, bateria de tímpanos e pratos, e a pele apenas imaginada ou sonhada ou inventada, macia, aperta para sempre a sua pele incrédula.

Sim, porque não há amor na mornidão como não há fogo na cinza. O amor é luz, amarelo e vermelho, flamejante. Ao brilhar, acende o mundo à sua volta. Traz tudo para mais perto, aumenta, engrandece, elege. O amor que traz em si a verdade alegre e generosa acredita. Acredita em si e, porque assim crê, acredita no outro. E tanto que não deixa espaço para dúvida, não perde tempo com pequenices. Não esmola, não carece, não adoece. Segue em frente sem olhar para trás. E quando termina, como tudo que é lindo e grande, quando finda na lua nova ou no fim do dia, então vira constelação. De repente. Abrupto. Cortante. Porque todo grande amor é cortante, afiado e corrosivo. Não deixa nada de velho em seu lugar. Abusa. Ao invés de jogar a chave por debaixo da porta, sai sem bater. Desce as escadas precipitadamente. Sem deixar bilhete ou explicação. Destino de vento.

Na minha coleção de grandes amores, apenas o meu grande amor por todos me espreita. Intenso e sensível. Todos os outros seguiram sua viagem rumo ao infinito. Quanto dura um amor? Depende do encantamento que faz sua passagem, como o sol que ilumina e projeta sombras para todo lado. Mas a verdade é que amores não duram. São. Não passam. São. Não morrem, são. Presente do indicativo. Fora isso, é a vida que se desmancha em outras vidas.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O meio de tudo

Quando eles ficaram juntos, ele já bebia. Mas era tudo muito divertido e leve. Toda possibilidade de vida parecia vir do encontro dos dois. Eles tinham aquele olhar brilhante e iluminado, um para o outro, que faz dos problemas apenas um passatempo. Estavam apenas começando, olhando para o horizonte nítido, próximo. Tudo era apaixonante e lindo. E depois, tudo era muito jovem. Tinham aquela idade em que a maturidade era mais uma ameaça do que uma promessa.

Ela também bebia. Iam juntos para as festas e voltavam embalados no abraço que desfaz a realidade, debocha do cotidiano, ri, quase a gargalhar, da rotina. Às vezes, chegavam em casa já na hora de sair para o trabalho. Ela, refeita na maquiagem, ele reposto na barba feita. O mundo colorido do amanhecer. Dormir era para os fracos. E orgulhosos. Os simples, como eles, saiam correndo, tomando café na rua, para não esmorecer.

A onda que quebra na praia não chega ao seu fim. Retorna mansa para o fundo do mar. E toda tarde há que se voltar para casa. Então, um dia, ela amanheceu grávida. De lua? De mar? De cachaça? Grávida. Aconteceu. Tudo muito lindo. Mas enjoou muito também. Hesitação. Vômitos. Beleza. O mal-estar passou logo e resolveu encarar a vida com o que ela trazia. Os dois em pleno inverno das emoções, grávidos e ininterruptos. Sem saber que intuito tem, seguiram a correnteza. Brindaram juntos e com os amigos o último copo antes de tudo.

Ela parou, ele não. Mas não havia problema algum. Um certo mau-humor por parte dela porque, como se sabe, toda grávida fica mais sensível. Continuavam rindo juntos, saindo ou ficando em casa. A janela aberta para o infinito apontava para as estrelas. Haveria de ser um prêmio. Haveria de ser uma recompensa. Um filho e, acima de tudo, o primeiro filho, é um elemento estranho. A vida que se repartira em dois, agora seria três. E o que é o triângulo?

Ela ficou em casa. O bebê ocupando todos os espaços outrora vazios e os que já eram ocupados por outras coisas. Ocupando seu corpo e, depois, seu olhar, seu tempo, sua emoção mais complexa. Ria e chorava. Queria e detestava. Morria e acordava. Acordava com o choro desenfreado na madrugada. Acordava com a água do banho caindo pela face. Acordava sozinha.

Ele ficou eufórico, depois chocado, depois orgulhoso, e foi ficando bobo. De resto, tudo igual. Saia do trabalho e encontrava os amigos antes de voltar para casa. Bebia como sempre. Que diferença fez em sua vida? Ela não lhe dava tanta atenção como antes. E às vezes perdia o sono no choro da madrugada. Um pouco mais de roupa suja, a louça um pouco mais acumulada na pia. Mas isso ele nem via. Pouco ou nada mudou.

Os convites para festas foram sendo recusados. Ela, absorta na nova função e um pouco se esforçando para se adaptar, não queria nenhum barulho. Parecia ter nascido para ser mãe, mas, ao contrário, aprendia a cada passo. Segurava o leme com a desenvoltura de quem velejara a vida inteira. E dava lições para quem quisesse saber. No entanto, tateava no escuro, procurava pelo sentido, qualquer direção. Queria saber em que momento deixara de ser tão divertido.

Ele chegava em casa rindo. Tarde. Cada vez mais tarde. Trabalhava nos finais de semana. Viajava. Movia-se como se dançasse. Ela querendo uma conversa amena, um elogio no meio de tanta bagunça. Um sinal verde. Esperando pelo momento que tudo ficaria bom de novo. Que voltassem a ser juntos o que iniciaram juntos. Ansiando pelo dia que voltaria a dividir o mundo em dois para ficar tudo mais leve de novo.

Mas não esperou tanto. Numa noite, chegando em casa embriagado do torpor da vida externa, ele a encontrou acordada na sala. Grave, ela desmoronou. Cansou de sua vida acompanhada de silêncio. Ela havia aprendido a viver só, então, não o queria mais em sua cama, em sua casa, em sua vida. Ele, ao invés de fazer falta, agora, era um incômodo. Bebia demais, cheirava demais, roncava demais. E, além de tudo, a impedia de conhecer alguém mais feliz.

Definitivamente ele não entendeu nada. Sim, um pouco por causa do torpor, da hora, da voz esganiçada com que ela falava. Mas então, não foram sempre assim? Movendo-se entre os empecilhos e desviando-se dos entraves? Rodopiando nas ruas abraçados aos postes na alegria jovial e inocente dos que querem tudo? Não foi uma promessa deles viverem intensamente o que a vida lhes trouxesse? O que mudou?

No frio da madrugada, ela olhava sua perplexidade como se duvidasse. Ele se esqueceu? Uma criança lá dentro dorme profundamente e ele nem se lembrava disso? Roubou-lhe a alegria, uma criança? Não, roubou a inocência. O mundo cresce com crianças nascendo, mas algo há que se pagar por isso. A vida já não passa mais. Agora ela cobra entrada e taxa de serviço.

Tem momentos absolutamente impossíveis em que um precisa descer do trem antes do fim. Antes que seja tarde demais para seguir em frente. Antes que vença o visto, o porte, e comece a faltar coluna ereta. Descer sem querer. Sair da cena sem fugir. Findar. Mas não tem negociação? Não tem saída? Não será preciso insistir e insistir até mostrar que existe um jeito, talvez haja um outro modo, quem sabe, tentar?

Agora ela já resolveu que mudará o sentido. Tomou para si o destino de seu coração, de seu olhar em novo ângulo, passos sem seguir caminho algum. Para todos os novos tripulantes e para todos os pioneiros, para todos os viajantes e todos os forasteiros, sempre haverá uma balada, um violão tocando manso. E no repasso, vão ficando para trás as paisagens lindas que o olhar não segue porque não espera.