segunda-feira, 6 de maio de 2013

O meio de tudo

Quando eles ficaram juntos, ele já bebia. Mas era tudo muito divertido e leve. Toda possibilidade de vida parecia vir do encontro dos dois. Eles tinham aquele olhar brilhante e iluminado, um para o outro, que faz dos problemas apenas um passatempo. Estavam apenas começando, olhando para o horizonte nítido, próximo. Tudo era apaixonante e lindo. E depois, tudo era muito jovem. Tinham aquela idade em que a maturidade era mais uma ameaça do que uma promessa.

Ela também bebia. Iam juntos para as festas e voltavam embalados no abraço que desfaz a realidade, debocha do cotidiano, ri, quase a gargalhar, da rotina. Às vezes, chegavam em casa já na hora de sair para o trabalho. Ela, refeita na maquiagem, ele reposto na barba feita. O mundo colorido do amanhecer. Dormir era para os fracos. E orgulhosos. Os simples, como eles, saiam correndo, tomando café na rua, para não esmorecer.

A onda que quebra na praia não chega ao seu fim. Retorna mansa para o fundo do mar. E toda tarde há que se voltar para casa. Então, um dia, ela amanheceu grávida. De lua? De mar? De cachaça? Grávida. Aconteceu. Tudo muito lindo. Mas enjoou muito também. Hesitação. Vômitos. Beleza. O mal-estar passou logo e resolveu encarar a vida com o que ela trazia. Os dois em pleno inverno das emoções, grávidos e ininterruptos. Sem saber que intuito tem, seguiram a correnteza. Brindaram juntos e com os amigos o último copo antes de tudo.

Ela parou, ele não. Mas não havia problema algum. Um certo mau-humor por parte dela porque, como se sabe, toda grávida fica mais sensível. Continuavam rindo juntos, saindo ou ficando em casa. A janela aberta para o infinito apontava para as estrelas. Haveria de ser um prêmio. Haveria de ser uma recompensa. Um filho e, acima de tudo, o primeiro filho, é um elemento estranho. A vida que se repartira em dois, agora seria três. E o que é o triângulo?

Ela ficou em casa. O bebê ocupando todos os espaços outrora vazios e os que já eram ocupados por outras coisas. Ocupando seu corpo e, depois, seu olhar, seu tempo, sua emoção mais complexa. Ria e chorava. Queria e detestava. Morria e acordava. Acordava com o choro desenfreado na madrugada. Acordava com a água do banho caindo pela face. Acordava sozinha.

Ele ficou eufórico, depois chocado, depois orgulhoso, e foi ficando bobo. De resto, tudo igual. Saia do trabalho e encontrava os amigos antes de voltar para casa. Bebia como sempre. Que diferença fez em sua vida? Ela não lhe dava tanta atenção como antes. E às vezes perdia o sono no choro da madrugada. Um pouco mais de roupa suja, a louça um pouco mais acumulada na pia. Mas isso ele nem via. Pouco ou nada mudou.

Os convites para festas foram sendo recusados. Ela, absorta na nova função e um pouco se esforçando para se adaptar, não queria nenhum barulho. Parecia ter nascido para ser mãe, mas, ao contrário, aprendia a cada passo. Segurava o leme com a desenvoltura de quem velejara a vida inteira. E dava lições para quem quisesse saber. No entanto, tateava no escuro, procurava pelo sentido, qualquer direção. Queria saber em que momento deixara de ser tão divertido.

Ele chegava em casa rindo. Tarde. Cada vez mais tarde. Trabalhava nos finais de semana. Viajava. Movia-se como se dançasse. Ela querendo uma conversa amena, um elogio no meio de tanta bagunça. Um sinal verde. Esperando pelo momento que tudo ficaria bom de novo. Que voltassem a ser juntos o que iniciaram juntos. Ansiando pelo dia que voltaria a dividir o mundo em dois para ficar tudo mais leve de novo.

Mas não esperou tanto. Numa noite, chegando em casa embriagado do torpor da vida externa, ele a encontrou acordada na sala. Grave, ela desmoronou. Cansou de sua vida acompanhada de silêncio. Ela havia aprendido a viver só, então, não o queria mais em sua cama, em sua casa, em sua vida. Ele, ao invés de fazer falta, agora, era um incômodo. Bebia demais, cheirava demais, roncava demais. E, além de tudo, a impedia de conhecer alguém mais feliz.

Definitivamente ele não entendeu nada. Sim, um pouco por causa do torpor, da hora, da voz esganiçada com que ela falava. Mas então, não foram sempre assim? Movendo-se entre os empecilhos e desviando-se dos entraves? Rodopiando nas ruas abraçados aos postes na alegria jovial e inocente dos que querem tudo? Não foi uma promessa deles viverem intensamente o que a vida lhes trouxesse? O que mudou?

No frio da madrugada, ela olhava sua perplexidade como se duvidasse. Ele se esqueceu? Uma criança lá dentro dorme profundamente e ele nem se lembrava disso? Roubou-lhe a alegria, uma criança? Não, roubou a inocência. O mundo cresce com crianças nascendo, mas algo há que se pagar por isso. A vida já não passa mais. Agora ela cobra entrada e taxa de serviço.

Tem momentos absolutamente impossíveis em que um precisa descer do trem antes do fim. Antes que seja tarde demais para seguir em frente. Antes que vença o visto, o porte, e comece a faltar coluna ereta. Descer sem querer. Sair da cena sem fugir. Findar. Mas não tem negociação? Não tem saída? Não será preciso insistir e insistir até mostrar que existe um jeito, talvez haja um outro modo, quem sabe, tentar?

Agora ela já resolveu que mudará o sentido. Tomou para si o destino de seu coração, de seu olhar em novo ângulo, passos sem seguir caminho algum. Para todos os novos tripulantes e para todos os pioneiros, para todos os viajantes e todos os forasteiros, sempre haverá uma balada, um violão tocando manso. E no repasso, vão ficando para trás as paisagens lindas que o olhar não segue porque não espera.

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