terça-feira, 30 de abril de 2013

Entre tempos



Hoje posso queimar todas as dores de amores passados, perdidos, deixados para trás na estrada por serem pesados demais para carregar. Todas as lembranças que me imbuíram de pesar e remorso vão. Todo remorso é vão. Todo fim de tarde é mais triste que o amanhecer porque é o fim de uma jornada. E toda a dor que há no fim de qualquer dia, de qualquer tempo, de qualquer ciclo é o que é: um fim.

Não há o que fazer se a semente não brota, se a água não corre, se o pássaro não canta. Não há o que chorar quando já não há mais lágrimas para derramar. Tudo já foi. Já foi o dia, já foi o boi para longe da cerca, já desaparece a lua na noite escura. A fumaça anuncia o fim do fogo. E o mundo não acabará por isso.

Hoje posso arremessar na brasa todas as ilusões, as fantasias mal realizadas, os sonhos acordados demais para ser verdade. Posso ficar vendo a chama consumir a tristeza de não haver espaço para mais nada, entulhado que está de pó e cinza. Posso ver na chama amarela um pouco do gás que restara de alguma felicidade remanescente e fugidia.

E quando queimo assim minhas dores também eu me transformo. Também me queimo na chama que corrói. Quero a vida que corrói as veias para que o sangue se espraie para todo lado, sem forma, sem fronteira, desembestado e desassossegado. Porque não é só a insatisfação que faz mover, mas a paixão.

Na chama que me faço habitar agora, danço um novo gesto, uma nova alma, revivida e renovada da semente dos dentes de leão esvoaçantes. Como o vazio introvertido das flores que se dão no mato. Amarelas, azuis, vermelhas, pouco importa, pois que nenhum olhar vai vislumbrar. Dar-se em vão. 

No gosto da boca um bolor de casa fechada, aberta recente, para ver entrar a luz que há no mundo. O mundo é o acender de todas as fogueiras desperdiçadas em noites frias. Largadas quando ainda nem sequer avermelhavam, e depois, sim, ao virar as costas, eclodiram em labaredas pela mata. Nesse fogo descontrolado e desamotinado eu verto minhas quimeras. Aquelas que se apegaram à tábua do assoalho, pela janela mal fechada, pelo buraco da fechadura. E depois de vê-las assim, derretidas em fogo brando, consumidas em luz, então, posso dormir em paz.

Posso voltar a dormir em paz porque a paz é um oco no peito. É um coração voltando a bater singelo e delicado como o beijo do colibri. É o silêncio da noite quando todos já se foram. A paz é um sujeito esparramado no verbo. Eu. Na volta da lua. Com chuva de meteoros.

Depois de tudo, quero uma comida picante, uma pimenta vermelha, rude no trato, capaz de arrancar suspiros exaltados ainda muito depois de tê-la engolido. Quero uma lufada de vento forte, que faz quebrar os galhos das árvores escuras e invisíveis da noite. Quero uma tromba dágua, uma tempestade, o voo rasante de um gavião capturando algum inocente descuidado, quero a fúria da natureza imoral se lançando contra si mesma para arrancar a casca ressequida, podre, escamoteada, para não sobrar senão uma lembrança brumada do que um dia fui. Para me perder a tal ponto que nunca mais me encontre.

Então, sim, nascerei para outra vida, outro tempo, outra encosta onde o mar rebate forte espirrando espuma para todo lado. Para ser a espuma branca que, sendo mar, foi ser céu azul num minuto infinito em que encontrou o rochedo. Para nunca mais voltar a doer. Seguir em frente, simplesmente, e nunca mais voltar.

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