Não tente me
salvar. Quero viver tudo que há para viver. Quero ter meus próprios erros sem
me preocupar com quantidade. Quero, sobretudo, errar muito, tantas vezes
precisar. Traçar o caminho invisível do meu sonho. Depois, pisar as pedras que
houver para pisar. Quero ir fundo no fundo de tudo. Doer até a última veia de
sangue que me correr no peito. Sentir tudo, de todas as maneiras.
Eu não quero
o paraíso agora. Quero a surpresa, o canto escuro, a palavra ininteligível, o
som inaudível, o amor impossível, a festa na manhã do dia seguinte. O passo em
falso. A cerveja choca. O mel grudado na colher. Não é que o difícil me atraia,
é que o fácil não me acende. Eu quero a luz da lua em noite de nuvem. O carinho
de gato com unha afiada. A pose para foto nenhuma.
Cansei dos
amores molhados e escorregadios que fazem espuma e se diluem no ar. Quero a
carga pesada de haver emoção forte. Que deixa seu riscado no chão que passa.
Quero abraçar um cacto, beijar a terra seca e fria da estrada que acabou.
Acabar como a brasa que consome indolente a madeira ardente. Rolar feito seixo
de rio em corredeira.
Não me
mostre a direção certa. Quero o risco, a aventura desmedida e perdida, sem
hora, sem plano, sem saída. Amanhecer no cansaço de uma noite repleta de medos
e monstros e lobisomens. Por que não? Por que não tentar onde ninguém tentou?
Não pular onde era melhor voltar? Não abrir os braços e acreditar no voo? Por
que não? Por que vacilar se todos os cruzamentos que há por passar são a vida
em qualquer direção?
Não, não tente
me salvar. Se você não acredita no meu caminho, apenas não siga comigo. Não sei
se há certo ou errado. Não sei se aprendi a lição. Não sei se havia lição para
aprender. Não sei quantas vezes voltei ao mesmo ponto, nem sei se era o mesmo
trem. Quero fazer com minhas próprias mãos o pão que comerei. E dormir todos os
sonhos que puder lembrar de manhã. E todas as noites mal dormidas, toda a
comida que queimou na panela, toda porta que se fechou. Quero tudo inacabado,
mal pago, roto, rasgado. Todo o leite derramado, a picada do marimbondo, o
vazio da mão.
Deixe-me na
estrada, só, sem lenço ou documento. Perca-me de vista no mar além da praia.
Não pergunte de mim quando não me encontrar em meu lugar, em lugar nenhum. Não
me avise do cadarço desamarrado, da bicicleta sem freio, da rua sem saída. Não
me previna da chuva, do frio, da tromba dágua. Não quero cuidados para quando
não fizer mais diferença estar com a mente sã ou não. Quero a loucura
extrovertida e risonha da inocência. A criança que brinca com o caranguejo. O
jogo da vida sem sorte, sem dados, sem lance.
Não quero a
vida que passa pela janela do carro. Quero o vento embaraçando meu cabelo até
me enrolar totalmente o pensamento. Quero a doçura escassa e frouxa da flor que
se abre inteira, perdulária, para o pássaro, a borboleta, a abelha. Tudo que se
desperdiça insólito, que se derrama por terra, sem fim, sou eu.
Eu sou o fio
preso sobre um precipício. O incerto. O imerso. Imoral. Todas as escolhas que
desceram pelo ralo. O avesso. O contrário. Anormal. Por isso, não me dê a mão,
não me abra a porta, não me espere. Para onde vou, ou vou sozinha ou encontro
outro como sou, o que dá na mesma. A vida que escolhi é a face sul, a face
oculta, negativa.
Não reze por
mim, eu não quero me salvar, quero me perder na floresta, raptada por um fauno.
Quero o que não há. O branco do olhar. O beijo sem língua. A falta de ar. O
silencio dos amores vãos, não declarados, medrosos. E todo o grito que aguentar
os pulmões. Quero o sem nome das emoções verdadeiras. Não me traga a sua
verdade deles. Eu quero ser a verdade da emoção real e passageira. Dolorida
como a nota desafinada em ouvido bom. Eu quero a vida que qualquer mão possa
colher.
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