Há muito tempo em silêncio, um pouco desajeitada, em parte
por cansaço, outra por apenas ter duvidado. Duvidar é como faz o rio para não
chegar logo ao mar: ele faz curvas. Duvidar aumenta tudo que há pelo caminho e
diminui todas as passagens. A paisagem se perde no trajeto, o trajeto fica
maior, e tudo o mais parece apenas com uma corrida de galinhas em direção ao
milho recém-lançado, desordenado, barulhento, irracional.
Se pudesse, teria me jogado de peito aberto num morro de
areia de praia. No sol quente. Em maré cheia. Teria me deixado afogar na praia.
Embriagar de mar e sal. Olhar para o horizonte do ângulo da areia sem encontrar
nenhum obstáculo, o profundo, o distante, o infinito. Teria ficado ali até
ficar enrugada de tanta água, mas de tanta água, que meu peito teria
transbordado, teria inundado o resto do corpo para além da cintura, para além
da coluna cervical, o pescoço, a cabeça inteira mergulhada na emoção.
Mas eu não pude. Ao contrário, circunscrevi meu viés por
quatro paredes e janelas fechadas. Fui ficando um pouco ensimesmada, um pouco
apartada, silenciosa como a parte da praia onde o mar não chega. Fiquei andando
em círculos sem dançar. Batendo os dedos na mesa, sem fazer música. Ao invés de
me lançar da ponte que unia nada a lugar nenhum, fiquei tentando explicar,
entender, morrer.
A morte acontece a tudo que é vivo e passa. Passa logo, às
vezes. Às vezes demorado. Mas passa. A morte é um pouco ficar invisível da dor.
Existir dói um pouco. Viver dói também. Viver é diferente de existir porque
tanta coisa existe sem nem saber o que é vida. A vida é bem mais que respirar,
bem mais que sentir, bem mais que agir. O verbo não é a vida, o verbo deu a
vida. O sopro. O som que saiu com intenção. Viver é um silêncio que reveza com
o verbo. Ora vazio, ora pleno. Pura onda. Movimento.
Eu não sei o que é vida, sei que vivo. Vivo o instante
passageiro e longínquo como se fosse tudo que houvesse para ser ou estar. O
gesto impensado do braço, do lábio, a palavra expressa sem preocupação
gramatical, metafísica, ou conceitual. A vida manifesta. Pulsando. Batendo.
Piscando. É como pescar, lançar a isca em mar aberto e esperar por fisgar algo.
Pelo tamanho da isca se imagina o peixe. Embora o que se veja seja apenas água.
Um dia talvez precise de um mergulho. Mergulho como a morte.
Mas também não morri. Eu apenas quis. A morte não acontece
quando se quer, porque enquanto houver desejo, não haverá morte. E havia
desejo. Eu queria ser o farol da praia, apenas prenunciando no meio da noite,
em meio ao mar bravio, que, sim, havia uma possibilidade de porto. Queria
intensamente descer pela cachoeira gelada abaixo, profunda e vertical, para ir
tão fundo quanto pudesse ser, ou quanto não pudesse ser, o impossível que a
vida pode atingir. O átimo de tempo exatamente antes da descarga elétrica que
liga um neurônio em outro. Incorporar. Ser.
A mente não sabe rir, não sabe dançar, não sabe cantar. Por
isso se isola acima do bem e do mal. Numa tentativa frustrada, mobilizei os
músculos das costas para ver se criava asas. Mas aí sim, é o que a mente sabe
fazer. Voar. Eu, que estava à deriva, subindo e descendo na onda, não conseguia
alçar voo. Apenas um peso nos pés. O olhar procurando uma direção possível. E o
corpo. Amarras em dia de ressaca. Não servem para nada. O que não solta,
afunda.
Então, em meio à escuridão que me amedrontava, em meio ao
sem saída que me lancei, em frangalhos, sem quase acreditar, você sorriu. Só. O
sorriso que era um sol brilhante entrando na janela. Que desanuvia, que
descortina, que desconcerta. Você sorriu. Simples. O sorriso que desilude, tira
o chão, o fôlego, que prende o olhar feito encantamento. Você sorriu, meu deus,
sem razão, sem nexo, por nada. E tudo mudou. Quem você era mudou. Quem eu era
mudou. Foi mudando tudo, mágica e calmamente. Eu não sei quem você é, o que
você quer, mas se eu fosse você, eu viveria esse seu sorriso sem nunca tirá-lo
do rosto. Você sorri e eu me salvo.
(ao Gabriel)