terça-feira, 28 de junho de 2011

Plantei muitas árvores

Plantei muitas árvores até hoje. É claro que quando plantei, elas eram mudinhas. Muitas não vi crescer, nem sei se vingaram. Mas aqui no meu quintal, plantei algumas cerejeiras e, no inverno, tenho árvores de abelhas. Imagine milhões de flores cor de rosa zumbindo sem parar. Elas, as árvores, que já eram vivas, agora parecem se preparar para levantar vôo. De repente, de um dia para outro, um mundo paralelo aterrissa no meu quintal como uma lufada rosa, vertiginosamente rosa, e quando penso que são flores, é mais que isso, são zilhares de abelhas se perdendo de flor em flor. Plantei um liquedambar também. Na verdade, ele se plantou sozinho. A muda estava apenas guardada no quintal e ele saiu do saquinho plástico e foi conquistando seu lugar para sempre. Nesse inverno, ele, que costuma ficar vermelho, ainda está verde-amarelado, pequeno.

Não é verdade que basta plantar uma árvore, precisa ver crescer, faz muita diferença. É uma mistura de química com física quântica. Tem muita gente que reivindica criações sem acompanhar o crescimento. Criações não são como bolhas de sabão que você solta no ar e explodem, vida curta, morte súbita. Elas pedem cuidados. Água é bom. Podar é bom. Olhar é bom, olhar todo dia para ver as mudanças. Uns dias verde, outros amarelo, outros ainda rosa. Tem que recitar poesia debaixo dos galhos, tem que sentir o perfume das flores, mesmo o mais imperceptível. Tem que fazer uma série de atos inúteis e fúteis, porque, como a vida, a arte é inútil. É para nada, porque é tudo e não tem porque.

Criar é um ato de desapego, claro. E quanto maior o ego, menor a cria, exceção feita a Picasso, obviamente. Mas quantos picassos podem existir na mesma Terra? Quantos gênios verdadeiros existem ou existiram um ao lado do outro, pacificamente? Não, egos não são pacíficos. Egos são guerreiros. E guerreiros querem troféus, não criação. A criatividade não é o foro de guerreiros, porque verdadeiramente criativos são aqueles que amanhecem ao lado de sua pequena muda plantada na véspera, regada com carinho e atenção de quem sabe velar. Velar de veleiro, velas ao vento. O ego é a âncora, com certeza.

Agora, apenas chove. Depois da chuva, o frio vai voltar mais forte. Quando entendemos os fluxos da vida, fica mais fácil viver. Mesmo com chuva, mesmo com frio. As adversidades ensinam. Depois virá o frio mais frio desse inverno. E mais transparente. Mais estrelado. Feito para acender o fogão a lenha. Feito para acender uma fogueira lá fora. Momentos que nos fazem refletir, introspectivos. Encolhemos os músculos e recolhemos os pensamentos.

Alguns momentos, inesperadamente, meus cachorros latem no quintal, investem contra alguma coisa que enxergam ou sentem. Aguardo. Depois, silêncio. Foi algum animal intrépido que passou ao lado da cerca. A noite é das raposas, dos gambás, das corujas. Eventualmente eles latem apenas para galhos das araucárias que caem fazendo barulho. Nem ligo. Já conheço a dinâmica do quintal.

As coisas que mais me chamam a atenção são aquelas que encerram paradoxos. É engraçado que a parte mais quente da casa, ao lado do fogão à lenha aceso, é também a parte que mais venta. Um pouco porque o forro nessa parte é vasado. Mas a outra parte é o calor. O calor chama o vento frio, claro. Esse é o movimento dos ventos. Tudo estava muito quieto, começou a aquecer, começou a ventar. Coloquei um leite para ferver e preparar alguma bebida bem quente. Essa é minha resposta paradoxal à entrada do frio. Depois acrescento tapioca e, para adoçar, umas colheres de geléia de cravo e canela. Aquecer o corpo é um conforto. E nada como cravo e canela para aquecer as entranhas. Não posso chamar isso de mingau, ficou leve e mais líquido, quase de beber. E ficou bárbaro. Pode ventar a vontade agora. Estou preparada.

E assim, vão se passando as horas, a vida ela mesma. Não há para onde ir, não há um outro momento, um outro lugar, um paraíso para chegar. A vida é aqui e agora. A vida é esse passar das horas que podemos ficar sentados na beira do fogo ou correndo atrás de uma diferença do caixa. Escolhas. E eu adoro saber que sou eu fazendo essas escolhas, mesmo aquelas que já estavam escritas antes. Mesmo aquelas que já havia escrito antes de levantar da cama pela manhã. (mas quem foi que escreveu que tinha que dar uma diferença no meu caixa? Aiai.)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eu não consigo decorar nada

Eu não consigo decorar nada que não tenha significado para mim. Esqueço datas, mesmo quando me importo com o que elas se relacionam. Não lembro letras de músicas, placas de carro, o nome das pessoas. Não lembro que marquei duas coisas para o mesmo horário, e preciso anotar tudo em uma agenda eletrônica, porque as de papel não me avisam. Enfim, só me lembro de coisas que fazem sentido, que me dizem coisas, que merecem ser lembradas.

E dentre tantas coisas, não esqueço perfumes que me reportam situações, lugares e pessoas que nunca esqueço. Aquilo de que me lembro nas pessoas é sempre o que sei delas. E gosto de saber de todas que me tocam ou tocaram. A intimidade que se dá. Não me esqueço de você cantando aquela música do Cazuza, dançando e sorrindo, olhando para mim em cumplicidade. olhando para mim para ter certeza que eu também olhava. Não esqueço a primeira vez que entrei em harmonia com o universo, nadando, cada braçada no ritmo da respiração, uma dança perfeita. Mas dessa intimidade que fica um saber, tem aquelas que quase preferi não tocar, que grudam, não lembram, que perseguem.

Eu tenho um pouco dessa matéria grudenta guardada e encaixotada, bem fechada, num quarto escuro e que preciso limpar. Tentei mexer nessas caixas, procurar tirar um pouco do pó do tempo e do descaso para que elas não ocupassem o espaço que pode servir para outra coisa. Mas ainda não consegui. São caixas cheias de lembranças amarelas e secas não como as folhas das árvores que nessa época caem forrando a terra de uma beleza nova. É de um seco que resseca minha pele e contamina meu tato. É de um pó fino acumulado de tanto tempo que basta respirar ao lado para que uma névoa esmaecida suba fazendo com que essas lembranças voltem para o peito que as deixou.

Já havia me esquecido da dor. Já havia me esquecido de ter sofrido. Já nem lembrava a tristeza que permeou meus dias em dias remotos. E como se nunca tivessem partido, somente de olhar para seu envoltório, ali estavam, presentes e fortes como se fossem alimentadas diariamente. Eu, que reaprendi a sorrir leve e solto como o vento somente de passagem pelas folhas, estava ali, perdida em recordações poeirentas e rançosas. Não adiantou sair correndo e lavar as mãos com muito sabão cremoso e perfumado. Lavar o rosto na água quente do chuveiro deixando escorrer aquelas memórias. Viver faz coleções de memórias. Vou precisar colar todas devidamente em seu lugar, hoje espalhadas descuidadas em caixas mal guardadas.

Vou abrir caixa por caixa e tirar dali tudo de que não preciso mais. Não preciso mais sofrer por ninguém e por nada. Não preciso mais ficar triste por não saber lidar com a realidade seja ela como for. Não preciso de pessoas que não me dizem senão aquilo que meus cantos mais escuros e obscuros querem me dizer porque não sei ouvir. Vou deixar a luz entrar nesse quartinho, vou deixar o ar entrar. E então todos esses gestos e palavras que ficaram estancados no tempo, nas paredes e memória, vão esmaecer até se tornarem novamente o que são, lembranças, das quais só me interessam aquelas que me fazem sorriso na boca e nos olhos. Eu quero a lembrança do picolé de creme holandês, inofensivo e gelado, cor de rosa. Eu sei que a vida não é um mar de rosas, mas na minha recordação ela pode ser.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Já estive nessa situação

Já estive nessa situação, de estar esperando um ônibus que não vem. Quando desistir e dar-me por certo que ele não virá? Esperei tanto, por que não esperar mais um pouco? Ou esperei demais, não dá para continuar. Desistir. Eu nunca soube. Ou parei muito antes e fui embora, impaciente, ou fiquei e fiquei e fiquei com a pedra no sapato por tanto tempo pensando que ia resolver, que ia melhorar. Faço parte daquela cultura que diz que é preciso persistir, que é preciso lutar pelos seus objetivos até conquistá-los. E que desistir é fracassar.
Mas nada é para sempre, e nem é tudo ou nada. A vida é dadivosa e generosa quando se sabe pedir e sabe receber. Há sempre uma segunda chance para os que sabem ver. E não é perder sair do time vencedor. Hoje entendo que viver é correr riscos, mas não é o risco de estar balançando o corpo em uma janela no décimo quinto andar de um prédio. É o risco de ir embora porque não vai mudar nada. É o risco de ficar e não perder nada. O risco de mover-se, agir, tomar decisões por si mesmo. Não por mais ninguém.
Nada é para sempre. E não existe a vida no fio da navalha. Não existem certos e errados. Não existe uma verdade absoluta. Viver é desiludir-se de todas as crenças arraigadas. É despir-se, despojar-se. Já deixei um bom emprego, salário e cargo para dar significado para minha vida. Não doeu nada. Era o que eu queria. Mas deixar o que eu queria por uma opção que não escolhi, é tão difícil. Difícil é aceitar a contrariedade. Aceitar o não que a vida dá. É o dedo de deus apontando para outra direção que eu não estou enxergando. É o rio descendo para um lado que eu não queria. Mas eu não posso mudar o rio. Quando, então, vou desistir de querer mudar o curso das coisas? Porque não é só desistir, é querer outra coisa. É direcionar a vontade para outro rumo. Ser feliz de outra maneira. Essa, talvez, a verdadeira criatividade. Ver o que não queria e torná-lo seu desejo.
Agora, coloque mais uma pessoa nessa história, acrescente a vontade de outro conjugando com o momento de sua vida que você precisa tomar uma decisão, e está feito o nó. Você quer ir, o outro quer ficar. Ou você tinha certeza que esse era o relacionamento da sua vida, o grande amor, o tudo, os melhores momentos, as maiores conquistas, tudo foi ao lado dessa pessoa. Você não pode ir por esse motivo? Você não pode acreditar que pode haver coisa melhor para sua vida? Você fica preso ao passado, preso ao que viveu e foi bom e não aceita ir atrás de outros momentos felizes? Não haverá novas portas para abrir? Novos portos para descer?
Se a vida é feita de momentos felizes, não existe um definitivo. Nada é único, nem ninguém. Não existe um par perfeito para mim. Deve existir uma infinidade de possibilidades me esperando bastando apenas que eu me vire, e siga em frente, sem olhar para trás, sem querer o que já não há mais. Eu não vou dizer que esqueci, mas não quero mais o que já foi.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Arroz cozido com alho

Arroz cozido com alho à provençal e mandioquinha salsa ralada numa panela e, na outra, lentilha com amendoim e ricota defumada em pedaços. Cozinhei bem e misturei tudo. Esperei esfriar e, toque final, um bocado de ração de gato. Eis o que minhas cachorras comeram essa noite. Acabou a ração delas e era tarde. Se morasse em uma metrópole poderia sair a qualquer hora qualquer dia e encontrar qualquer coisa. Mas daqui, estou a centenas de quilômetros de uma metrópole. Então, me virei com o que tinha em casa. Não preciso dizer, elas comeram tudo. Absolutamente tudo como se tivessem comendo uma carne apetitosa. Talvez eu nem precisasse pôr a porção de comida para gatos. Foi um mimo. Cães adoram comidas de gatos. Gatos adoram comer a ração de cães. É sempre aquela coisa de preferir o que é o do outro.
Pessoas são assim também. Queriam o cabelo de um, o nariz do outro, declaradamente ou não. Quando não é declarado parece que se chama inveja. Querer o que não tem. Um pouco da insatisfação move o mundo, eu sei. É preciso querer o que não se tem para sair buscando. Os acomodados são aquelas pessoas que estão satisfeitas com o que possuem. Os manipuladores são aquelas que conseguem o que querem através de alguém. Tem aqueles que ficam insatisfeitos o resto da vida porque sempre querem o que não é seu. E tudo que conseguem é pouco, podia ser melhor. Mas também tem aqueles que vivem comparando tudo que fazem com o que os outros fazem. Não basta conseguir o que querem, tem que ser o melhor, tem que ser mais, tem que tirar de alguém. A sua felicidade depende de ganhar de alguém. Não está em vencer, mas em derrotar. Não basta estar acima de todos, precisa ser na cabeça dos outros.
Já os animais são irracionais. Precisei ficar entre duas cachorras que terminaram correndo sua refeição para proteger uma que come mais devagar. Já ia ela ficar sem sua comida. Não gosto de interferir na associação delas. Elas vivem juntas há mais de cinco anos e têm a sua própria organização. Mas eu tive que fazer isso hoje. Dividi a ração entre elas sem sobras, não dava para comer menos, além do mais, cachorro com fome late. E hoje preciso dormir cedo e bem, pois amanhã vou acordar de madrugada para ver a geada, o branco que recobre as plantas e tudo com o frio que está fazendo.
Por que o fascínio pelo frio? Talvez porque aqui não é a europa nem neva, e a pontinha da insatisfação aparece de novo. Quem mora em país tropical quer o frio. Os outros querem o sol. Aqui tenho o sol – em céu translúcido, azul a perder de vista – e o frio frio mesmo. Frio de gelar o nariz só de ficar para fora. O resto coberto também fica frio. Tem que segurar o gato no colo para esquentar. Tem que acender o fogão a lenha. Tem que ligar o aquecedor no banheiro para tomar banho. Nem tudo são flores na montanha. Mas, as flores que tem são lindas. Ainda quaresmeiras roxas, e daqui a pouco cerejeiras cor-de-rosa, depois são ipês roxos, amarelos e brancos. As folhas das árvores também mudam de cor. Vão ficando amareladas, depois vermelhas e, antes de se deixarem levar pelo vento, douradas. Dá para caminhar sobre esse dourado, que estala, com a brisa fria no rosto, pela manhã. E o gelo branco sobre o capim e plantas como prêmio para quem acordou cedo, antes do sol subir.
O melhor de tudo não é acordar entre as árvores que plantei, as ervas que semeei, ou animais que cuido e crio. O melhor é que fui eu que escolhi viver assim. Planejei, sonhei, movi, chorei, depois ri, perdi o ar e voltei a respirar. Fico em paz de saber disso. Em saber que faço a minha parte no legado humano: deixo minha consciência me levar.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Cinco horas da tarde

Cinco horas da tarde e já está frio. Preparo meu fogão a lenha e acendo uma fogueira lá fora para minhas cachorras. Elas nem ligam. Parece que acendo só para mim mesma, que, aliás, adoro. Essa é a época. Fogueiras, frio, muito frio, roupas quentes, noites translúcidas, céu de estrelas.
Antes ainda andei pelo quintal. Colhi pimentas, limão e coentro para fazer uma guacamole bem picante e começar a noite aquecida. Colhi azedinhas também, pensei em fazer uma sopa de batatas com elas, reconfortante e restauradora. O frio consome muita energia, imagino, para poder manter o corpo quente e tudo funcionando direito. Então, batatas repõem energia como só o pão faria. Mas estou sem pão em casa. O paraíso é aqui, e assim sendo, não preciso de perfeição. Hoje vou fazer o contrário, vou me fazer acompanhar de vinho, embora a guacamole faça par com cerveja. Estou com a garganta irritada e não é bom provoca-la ainda mais.
E quando menos me dou conta, já escureceu. Um escuro silencioso de lua nova. A fogueira iluminando seu quinhão fez aquietar a cachorrada. Nem coloco música para deixar só o crepitar de fundo com o borbulhar da panela cozinhando. Gosto de ver a chama do fogo amarelo avermelhada dançando em meio aos vapores que sobem. Essa é a vida que fez do homem mais que um animal, um transformador. Mais que seguir seu destino, fazer deste sua herança, seu legado. E eu aqui, herdeira da subversão capital, tomando vinho e transformando com fogo uma batata em quitute quentinho e apetitoso. Transformando o fogo em aquecimento central. E fazendo de tudo isso uma bandeira da sanidade mental.
Tem gente que é louca apenas porque não descobriu que pode ser o elemento transformador de sua própria vida. Faz parte. A consciência é a parte mais dura da vida. Nem todos querem vivenciá-la. Nem todos têm coragem de admitir que é o deus de sua vida. Reze por si. Reze por seus antepassados. Reze por quem sucederá seus gestos e seus pensamentos. E eis que o peso é demais. Eu sei porque já vivi essa renúncia, esse abandono, esse medo de tudo. A loucura em suas várias facetas, da mais mansa àquela que engana, ilude, manipula. A loucura que sorri e diz bom dia, abre conta corrente, sai para a rua vestida de normalidade e só desmorona no sozinho da noite, dentro do quarto fechado. Remédios, terapias, compras, medo e vergonha: um círculo que se encerra em si. O mesmo homem, quem diria, aquele que faz o fogo e alimenta a alma e aquele que teme o calor e morre de fome e frio.
Quando vim para essa montanha, vim procurar a paz, a calma e a paciência. Não precisa me dizer que isso está dentro e não fora, na alma; agora eu sei. Eu queria ser zen e parecia mais com um palito de fósforo: era só esquentar a cabeça, pegava fogo e queimava até o fim. Eu queria transcender a dor, uma dor que não me largava, uma insatisfação que era como uma ferida aberta diariamente. Antes a insatisfação do que a inanição e a morte da vontade. Mas a natureza é um remédio que cura bastando dar tempo. O horizonte é um remédio que desintoxica até os corações mais amargurados. Corações que só precisam recuperar a vontade e acreditar. E é fácil acreditar quando se vê uma flor abrindo, uma semente brotando, e um córrego retomando fôlego depois de um inverno seco e poeirento. Tem momentos na vida que só precisamos abrir os braços e esperar pelo abraço que virá. Sem medo e sem desculpa.
Por enquanto, coloco um pouco de água no fogão para esquentar e talvez fazer um chá, adoçar com mel e me aconchegar sob cobertas quentinhas.