quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eu não consigo decorar nada

Eu não consigo decorar nada que não tenha significado para mim. Esqueço datas, mesmo quando me importo com o que elas se relacionam. Não lembro letras de músicas, placas de carro, o nome das pessoas. Não lembro que marquei duas coisas para o mesmo horário, e preciso anotar tudo em uma agenda eletrônica, porque as de papel não me avisam. Enfim, só me lembro de coisas que fazem sentido, que me dizem coisas, que merecem ser lembradas.

E dentre tantas coisas, não esqueço perfumes que me reportam situações, lugares e pessoas que nunca esqueço. Aquilo de que me lembro nas pessoas é sempre o que sei delas. E gosto de saber de todas que me tocam ou tocaram. A intimidade que se dá. Não me esqueço de você cantando aquela música do Cazuza, dançando e sorrindo, olhando para mim em cumplicidade. olhando para mim para ter certeza que eu também olhava. Não esqueço a primeira vez que entrei em harmonia com o universo, nadando, cada braçada no ritmo da respiração, uma dança perfeita. Mas dessa intimidade que fica um saber, tem aquelas que quase preferi não tocar, que grudam, não lembram, que perseguem.

Eu tenho um pouco dessa matéria grudenta guardada e encaixotada, bem fechada, num quarto escuro e que preciso limpar. Tentei mexer nessas caixas, procurar tirar um pouco do pó do tempo e do descaso para que elas não ocupassem o espaço que pode servir para outra coisa. Mas ainda não consegui. São caixas cheias de lembranças amarelas e secas não como as folhas das árvores que nessa época caem forrando a terra de uma beleza nova. É de um seco que resseca minha pele e contamina meu tato. É de um pó fino acumulado de tanto tempo que basta respirar ao lado para que uma névoa esmaecida suba fazendo com que essas lembranças voltem para o peito que as deixou.

Já havia me esquecido da dor. Já havia me esquecido de ter sofrido. Já nem lembrava a tristeza que permeou meus dias em dias remotos. E como se nunca tivessem partido, somente de olhar para seu envoltório, ali estavam, presentes e fortes como se fossem alimentadas diariamente. Eu, que reaprendi a sorrir leve e solto como o vento somente de passagem pelas folhas, estava ali, perdida em recordações poeirentas e rançosas. Não adiantou sair correndo e lavar as mãos com muito sabão cremoso e perfumado. Lavar o rosto na água quente do chuveiro deixando escorrer aquelas memórias. Viver faz coleções de memórias. Vou precisar colar todas devidamente em seu lugar, hoje espalhadas descuidadas em caixas mal guardadas.

Vou abrir caixa por caixa e tirar dali tudo de que não preciso mais. Não preciso mais sofrer por ninguém e por nada. Não preciso mais ficar triste por não saber lidar com a realidade seja ela como for. Não preciso de pessoas que não me dizem senão aquilo que meus cantos mais escuros e obscuros querem me dizer porque não sei ouvir. Vou deixar a luz entrar nesse quartinho, vou deixar o ar entrar. E então todos esses gestos e palavras que ficaram estancados no tempo, nas paredes e memória, vão esmaecer até se tornarem novamente o que são, lembranças, das quais só me interessam aquelas que me fazem sorriso na boca e nos olhos. Eu quero a lembrança do picolé de creme holandês, inofensivo e gelado, cor de rosa. Eu sei que a vida não é um mar de rosas, mas na minha recordação ela pode ser.

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