sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O que quero?

O que quero? Quero a vida que começa no chão, na terra suja por onde piso. Quero o mato que cresce desse chão se alimentando da luz. Quero a flor que nasce no mato, distraída e delicada, imperturbável ao vento e chuva, mas que desmorona com o calor do peito, da mão que toca. Quero a joaninha que caça na última pétala da flor que balança com seu peso antes que alce em vôo barulhento. Quero a sombra que o pinheiro faz em renda azul e verde escondendo o sol, quando há sol, mas quando chove, quero a gota que cai espaçada e cristalina, fria, batendo no meu rosto assim levantado e debutante.

Quero tudo. Quero estar com. Comigo, contigo, companheira. Quero a mão que espera o aperto. Quero o coração que bate com o sorriso que abre. Quero a sincronicidade de amar e ser amada, mesmo que não seja em condições normais de pressão e temperatura. O azul do céu é condicionante, o silêncio é condicionante. O mundo é cheio de condicionantes. Tudo que quero é relativo. Relativo ao tempo, ao humor do momento, ao estreito do abraço ou do abano da mão.

Quero mais ainda. Quero a felicidade declarada e não declarada. Aquela que se abre inesperadamente em instantes fugidios como o olhar de meia dúzia de cãezinhos de dentro da mala velha em que se encontram. A felicidade clandestina de reconhecer no vôo rápido um tucano de bico longo e verde. A felicidade silenciosa de se ver com o dever cumprido. A felicidade em si não, mas o que vem com ela na corrente sanguínea de prazer e evocação do belo, como se de repente a vida toda se tornasse apenas uma brisa leve de se levar, como se não houvesse mais dor ou tristeza possível de se viver, essa felicidade é que quero.

Quero tanto tanto que antes eu tinha até receio de reconhecer. Tinha medo mesmo de dizer. Mas agora estou dizendo. Quero a poesia perfeita, linda, linda, linda e tanto que faça chorar de emoção. Quero o olhar amanhecido de amor, porque se deitar de amor é mais fácil do que amanhecer amor. Quero a comida mais perfumada e saborosa que minhas mãos possam fazer para entreter minha razão que em geral é seca e estéril. Quero uma vida que se alarga com meu passar, e que seja livre das sombras que eu causo em me aproximar da luz. Quero a nota mais bela que minha voz consiga alcançar de uma vez só, um som que venha da alma, que venha de tão de dentro que eu possa ser reconhecida nela. Quero a quase dor que é o ser alegre num grito incontido.

Quero tudo isso para mim e para você quero não impedir que seja feliz, que seja quem você é, quem você queira ser. Quero não atrapalhar o seu caminho embora queira estar com você o caminho todo. Quero não causar dor em você na minha procura pelo meu querer. E se, em algum momento, meu querer seja diferente do seu querer, que possamos seguir ainda assim na companhia amorosa do querer bem.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Minha casa tem quintal

Minha casa tem quintal onde passeia o colibri. Onde passeiam as abelhas e passeia o meu olhar. Minha casa tem cachorros que pulam em cima da gente, pulam em cima de todos, e lambem e latem desgovernados. Que amo e me amam de uma forma impressionante. E minha casa tem 2 gatos que dormem preguiçosos e miam uma conversa sem fim se desafiados.

O quintal da minha casa tem um tanto de plantas que fui eu que plantei. Elas me dão alegria e perfume, beleza e sabor, elas dão ao ar uma frescura de ar assim novinho, recém-climatizado, leve e solto.

Perto do quintal e um pouco além tem muita água que passa correndo sem nem me ver. Correndo em chiadeira sem fim, dia e noite, dia e noite. Eu quero dizer para todo mundo que sou feliz, quero dizer mas não consigo. Não preciso. Na minha voz dá para reconhecer, no meu olhar sorridente dá para ver.

E eu trabalho logo ali entre os perfumes das plantas que acabei de colher. Ouvindo os pássaros em seus cantos e encantos sonoros. Eu trabalho olhando para tudo isso e sabendo que fui eu que fiz. Onde cheguei um pouco sem saber para onde ia, mas depois sabendo e me dirigindo.

Cheguei na janela de vidro que dá para o jardim interno. É madeira e barro porque assim me esquenta. E no meio do jardim que há, entre frutas vermelhas e flores amarelas, flores azuis, flores roxas, está meu atelier. Tem cheiro de comida porque as panelas cozinham os perfumes no fogão a lenha. E porque o apetite que sacia leva consigo o prazer de haver realizado. Comer é a metáfora da vida. Quero fazer poemas de brócolis e beterrabas vermelhas e doces. Beterrabas cozidas no suco da uva que alguém me ensinou e ainda não fiz mas vou fazer.

Eu já estou no futuro. Ou o futuro já é hoje. Quando reconheço que a música de fundo é meu coração batendo, quando ouço forte o espalmar dos cílios se encontrando num piscar de olhos. Quando paro para ouvir passar as formigas cortadeiras em ruidosa trilha. Quando sincronizo meu relógio interior como a sinfonia do tempo. Eu que não fiz piano porque não gostava de solfejo, agora sou obrigada e a reconhecer as semi-cheias das mãos que se encontram.

Eu me lancei na vida para ir atrás de um sentido. Muito sentido passou debaixo da ponte sem que eu mordesse nenhum anzol até me debater nas margens de barrancos que escorregavam e me devolviam à água. Por que tem que doer, meu deus. E a pergunta não ficou sem resposta. Agora que a janela me faz moldura à cerejeira do quintal, olho para fora e vejo que o mundo voltou a girar sem me deixar tonta, parece que encontrei meu lugar no lugar em que estava. E só precisou que eu declarasse o meu querer.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Não é fácil pensar

Não é fácil pensar. Sobretudo, não é fácil pensar focado. Metas. Aprendi que muito do meu desejo se perdeu por aí, entre travesseiros mal dormidos, ou na desordem do dia. Muito dele se derramou inútil. Não sei nem dizer o que queria e o que não fiz do que queria. Não escrevi. Não me comprometi. Não empenhei nenhum risco em nenhum momento. Taí. Que sucesso pode vir de uma tal empreita?

Somente o sucesso de descer a ladeira. De ser visto de dia. De ganhar de graça sem merecer. Até a flor que se dá em perfume e beleza tem um propósito. Na natureza tudo tem uma estratégia. A inteligência está perfeita e reconhecível em cada seixo que rola solto na corredeira. Qual o meu propósito? Qual a minha meta? Para onde vou?

Caminhar a esmo é fácil também. É fácil seguir seguindo, deixando a vida me levar. Não tem escolhas importantes que me tirem o sono porque têm sentido, porque são impactantes, porque são únicas. Uma escolha é única porque não tem volta. A cada virada que dou no caminho é um passo para um lado, é um tempo que não volta.

Sonhar é preciso. E se tiver clareza, nitidez e ainda por cima for escrito, então é um sonho realizável. É um sonho com data marcada. Bem sei. Olho para frente e para cima. O que vejo? Minha vida lá na frente linda! Onde estou sentada? Com quem estou falando? Estou ali num futuro visível, palpável. O que quero para minha vida? Lá está: sentada e feliz na beira de um rio de corredeira que é o rio que passa pela minha aldeia. São dez anos e é como se fosse agora. Real. Estou tranqüila porque a vida está em ordem. E lá, nesse futuro sorridente, sentada, olho para frente e me vejo. Estou me vendo num futuro mais que perfeito. Andando na minha terra entre as árvores que plantei.

Devolvo para a terra o que a terra me deu. Muitas plantas, o perfume das especiarias entrelaça-se no vento. Ando entre elas e gravo seu aroma. Devolvo para a gente o que a gente me deu. Dou o que sei em troca de ver crescer um futuro no olhar de quem me vê e se vê num longe real e palpável. Acreditar é ver nascer a fruta no pé que foi cuidado. Empenhar-se é acreditar não no acaso, na sorte ou azar. Mas na força que seu braço tem, na destreza que seu olhar tem, e na precisão de um pensamento cristalino.

Vou dizer que o que quero para minha vida é um sentido. Não há sentido em trabalhar sem ver nascer o fruto. Não há sentido em haver frutos se não puderem ser colhidos. Não há sentido na mordida na fruta que não seja doce. Porque o doce é a razão da fruta. Como a alegria é a razão da vida. Não digo mais que as coisas estão difíceis. Sou eu que não me empenhei ainda em desvelar sua ordem, sou eu que não me esforcei em desfazer seu nó, sou eu que não enxerguei a luz por trás das pálpebras fechadas. O que quero, o que quero, o que quero. Estou fazendo silêncio e atenta para ouvir o que bate meu coração para que eu escreva na pedra para não esquecer até chegar lá. E depois que chegar lá, não esquecerei também de me brindar. Porque eu sou a razão do meu sucesso.

domingo, 14 de novembro de 2010

Chovia

Chovia. Entrei no quarto escuro da minha memória esquecida e juntei os papéis velhos, guardados em caixas empoeiradas. Juntei tudo para fazer uma fogueira, mas chovia. Então, coloquei tudo no forno à lenha para cozinhar demoradamente, esfumaçadamente, esse passado grudento, pegajoso, que queria esquecer, mas não dá. O fogo transforma tudo, ao menos em cinza. Depois fiquei olhando pegar fogo e esquentar o tijolo. Fiquei vendo tudo acabar em poeira como se fosse uma lembrança distante.

Quando só restava fumaça, tirei toda a roupa do corpo e deixei a água quente escorrer por cima, reconfortante, num banho inteiro. Não tenho dó do que vivi. Nem de mim por ter vivido ora no paraíso, ora no inferno das minhas emoções desencontradas. Era eu. Agora, sentada aqui deixo o vento passar mais um pouco pela minha pele, levando o que restou nas entranhas de um tempo que passou. Ainda bem que fiquei. Fiquei para ser testemunha da vida. E a vida é incomparável.

Entro em casa para colocar fogo no fogão. O cheiro da fumaça me anima a cozinhar. Ainda tenho muita coisa para arrumar. Tudo está desorganizado, começado, em suspenso. Preciso tirar ainda muita teia de aranha dos meus ombros. Enquanto isso, vou atiçar o fogo na lenha. Já não me esforço em entender. Um dia isso virá. Virá como o ar que respiro, como o sangue que retorna ao coração, como o olhar que brilha só de pensar.

Penso que nada faria tanto por me lapidar como o que vivi. Nada também arranharia tanto. Nada tão bruto, nada tão intenso. Mas isso me faz lembrar de que minha adolescência tinha essa busca pela intensidade. A plenitude não era uma meta. A intensidade sim. Eu queria o vigor de um Beethoven, e não a beleza de um Mozart. A gente pede, a vida dá.

O fogo faz da brasa um cristal iluminado e transparente. Parece mole. Parece jóia. Vou jogar no fogo um pedido para o futuro, ele que queimou o passado até virar um misto de pó preto e fumaça, talvez transforme o meu pedido em realidade. Quero a inteireza da paz. Quero um coração mole que não derreta sem sentido. Quero uma pele que ceda ao toque e permaneça firme no abraço. Quero a permanência, e sim, finalmente, a plenitude.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Estou preste a recuperar a paz

Sinto que estou preste a recuperar a paz. Eu, que vim de longe em busca da simplicidade, agora estou na porta de encontrar também a calma. Por que me distanciei tanto do meu objetivo? E por que demorei tanto para me dar conta? Um dia ainda terei as respostas. Por ora basta que eu levante a mão e toque a maçaneta de uma nova vida. Uma nova era. Aquela que acreditei ser possível, ser tangível, ser verdadeira e para a qual dei as costas imprudentemente, há quanto tempo?

Não tem nada que se compare com isso. Talvez um riacho correndo transparente deixando um rastro cortado no silêncio. Um som de espuma batendo na pedra. Batendo e passando. Não, não tem nada que possa pagar por esse silêncio no peito que é a calma. Pode ventar agora, pode chover sem parar. E eu já não saí de casa porque chovia ou porque ia chover. Eu já fui infinitamente triste.

Não sei o que é a tristeza. Sei que não é normal. Não é normal olhar o dia que nasce com sol aberto no fundo azul por trás da renda da copa das árvores, pássaros cantando descontraidamente, e não ter vontade de sair da cama. Não ter vontade de sair de casa, não ter vontade. Não é normal ficar olhando para o tempo parado vagando um coração que não quer nada. Por que fiz isso da minha vida e por que foi tão difícil me convencer de que precisava fazer alguma coisa, eu não sei também.

Comecei mudar de fora para dentro na expectativa de que um dia conseguiria tocar profundamente minha emoção. Mudei de emprego, mudei de casa, mudei de cidade, mudei de vida, mudei meu olhar para a vida. Fui pintando um quadro bom de ver e bom de viver. E continuava um coração triste debaixo de uma pele brilhante. Como a gente pode se enganar quando quer! Cheguei a vestir a fantasia de estar realizando meu sonho quando só estava tirando a pedra de dentro do sapato que era bonito, elegante, mas não era para mim.

Posso ser feliz hoje apenas colhendo cogumelos selvagens. Posso ser muito feliz apenas aceitando as coisas que me sucedem. Levou tempo para poder respirar sem dificuldade o ar frio da montanha. Lá fora os pessegueiros estão até arqueados do peso das frutas. As amoreiras estão em flor, lindas, lindas. E meu coentro que o menino havia carpido e eu pensava que havia perdido renasceu perfumado novamente. O lugar-comum da primavera, que posso fazer? Ela é assim mesmo: um remédio até para os nervos. Para os nervos escangalhados da dor que a vida faz de não haver compreensão. Fico feliz de poder compreender agora.

Mas ainda quero muito. Eis outro mistério: por que o desejo e por que o desejo em mim deseja tão fortemente? Antes acreditava que era para eu me corrigir que eu errava. Mas não faz sentido. Não faz sentido dar um castigo para aquilo que se fez sem consciência. A consciência é o perdão de tudo, e sem ela não pode haver crime. O único crime é a ignorância. E querer é ter a vontade recuperada. Eu achava que não desejava mais porque estava deprimida. Mas eu estava deprimida porque não desejava mais. Foi mudar o cenário, mudar os atores, mudar o figurino e voltei a desejar viver como não sabia mais que ainda sabia.

O perfume da flor, o colorido do pássaro, a janela aberta, sem vidros para proteger, a chuva caindo sem pressa, o horário de verão implantado no horizonte que se alonga, tudo é um bom motivo para eu desejar de dentro da alma que brilha pelos olhos a vida que havia deixado pra trás. E estou prestes a me reencontrar, a me identificar claramente, os pés no chão e o coração alado, livre de amarras, do peso de uma âncora que teimava em me levar para o fundo. Agora, estou preste a voltar a voar.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O que fortalece uma união

Fico pensando que o que fortalece uma união, o que faz dela ser ou não importante para a vida de cada pessoa envolvida nela, é sua capacidade de passar pelas coisas boas e enfrentar problemas. Quando tudo é bom um problema é um grande problema. Porque não é fácil abandonar suas violetas na janela para cuidar de uma roseira doente, mas é preciso. É preciso ver a doença como a margem de um rio: retém a água e a corredeira, é de pedra ou areia, mas faz um canal para que ele siga seu caminho. As dificuldades não são pedras no caminho. São pontos de parada na caminhada. São momentos de reabastecer, de se reorganizar, de se refazer.

Não obstante, adversidades para mim são tão impactantes que me fazem perder o apetite. Acho que deve ter uma lição para aprender, acho que estou fazendo alguma coisa errada. Acho sempre que tenho que me curvar para essas dores. Então, uma parte de mim, indomável, selvagem como um tigre assustado, reage quase à loucura a essa atitude. Quase me parto em duas, me fragmento, duvido de mim. E, de joelhos ainda, não rezo, fico olhando para meu umbigo rompido de um parto que queria ter interrompido. Que difícil ainda é viver.

Custo a acreditar que exista uma relação humana que esteja isenta de conflito. Era tudo que eu queria, mas não consegui ainda ver nenhuma que fosse ininterruptamente tranqüila. E se puser o tempo como ingrediente, fica então mais distante. Harmonia e tranqüilidade são coisas diferentes. Não vejo falta de harmonia em relações com conflitos, com momentos tensos, com experiências de viés. Porque acho natural que haja conflito, discordância, distensão, em relações realmente abertas e intensas.

Harmonia é querer a mesma coisa mesmo quando se pensa que o como seja diferente. É estar de bem quando passou o dia todo sem comer, trabalhando muito e resolvendo uma série de pendências, muito stress e frustrações, junto com boas notícias e ovos quebrados por descuido ou força demais, e poder sentar no meio de tudo isso e, ao olhar para o outro, que também passou por tudo isso, comentar que a lua está especialmente linda essa noite. Não é fácil reconhecer o pessegueiro florido, intensamente florido, no fundo da noite quando chega em casa. Mas é isso que faz a diferença entre ficar na rua e voltar para casa.

Sei disso. Fico sempre chocada com minha falta de habilidade em viver coisas em que acredito. Falo como se fosse a primeira a ser a mais harmônica na face da terra. E, no entanto, minha natureza ígnea rompe o peito a cada tapa na face, tentando desesperadamente manter o controle sobre tudo, sobre a dor.

Apesar disso, sei também que não sou bipolar ou louca por todas minhas contradições. A vida mesma é tão contraditória. Todo esforço para a vida é um passo para a morte. A vida pede oxigênio e o oxigênio oxida, destrói. Como o fogo que consome o ar para ser labareda. Imagine, então, a convivência com outra pessoa, um outro universo complexo e paradoxal como você, com opiniões próprias, com experiências próprias e que quer seu lugar ao sol tanto quanto você. Não me refiro à atitude de competição, de conquista. Pode ser dentro da cooperação, da parceria sincera, da vontade de estar junto sempre e para o resto da vida, de querer mostrar as coisas boas que aprendeu e as coisas erradas que consertou ou aprendeu também. Mesmo dentro de toda essa harmonia – não será harmonia o querer compartilhar sinceramente o bem e o mal que fez? – a complexidade de cada um encostada na complexidade do outro é como o encontro de duas estrelas, de duas supernovas, de duas galáxias. É a contradição de um muito perto da contradição do outro. É lindo quando o encontro reúne pontos fortes de cada um. Mas é um estrondo quando reúne pontos fragilizados, escuros, desconhecidos. O tempo promove todos esses encontros, os dois tipos, ou mais se houver e puder ser. O tempo potencializa as possibilidades. E o tempo não é senão a vida que passa.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Eu sei o que é ser um anjo caído

Eu sei o que é ser um anjo caído. Aquele que foi expulso do paraíso. Aquele que tropeçou na própria asa e, ao invés de voar, foi ao fundo, caindo, caindo, sem ter fim. Sei o que é ter experimentado a alegria do infinito e depois se exilar para um quarto escuro.

Mas não sou anjo, bem sei. Sou apenas uma tentativa de metáfora. Será que deus faz poemas com as palavras que inventou? Talvez eu quisesse ser um poema divino e fiquei no meio da frase. No meio do caminho.

Agora, na companhia apenas do vento, vou tentando me reerguer. Vou andando mesmo, já que não me sobraram asas. Ontem colhia frutos do pomar mais doce que havia e hoje, hoje morro de pena de mim de não ter sabido resistir ao fruto proibido.

Não soube resistir à minha natureza dura e viril como uma flecha seguindo seu rumo em arco. Faço curvas como se fosse macia, mas os olhos fixos num horizonte distante. Sei caminhar e sei ficar quieta, só não sei a hora de um e de outro. E para tudo tem hora. Tem o tempo certo e o tempo errado.

Olho pela janela nesta noite que não acaba mais. Lá fora o barulho do vento pelas copas das árvores ou algum ruído pelas folhas secas do chão vão me atormentando como se algo fosse acontecer que não me fará bem. Espero o baque mas não me preparo. Não sei me preparar para sofrer.

Penso que meu gato, sozinho lá fora, pode estar em apuros. Então, como se adivinhassem meu pensamento, os cães latem. Se só eu caí essa noite, então, talvez o gato esteja apenas caçando como todos os outros. E os cães estejam apenas latindo, que é o que sabem fazer.

Minha dor eu a transformo em palavras para que não rolem pelo meu rosto em forma de lágrimas. Não quero emocionar mais do que já me emociono, exagerada. A dor de haver céu para voar e eu sem asas. Eu, que já vivi de bolhas de sabão, agora tenho pedras no bolso, mas não vou me afundar no tamisa.

Sinto todas as células do meu corpo como se elas repentinamente tivessem encolhido e pesado. Só minhas pálpebras não se rendem ao peso da hora e não me dão descanso. Ao invés, me fazem cismar sozinha como alguém que perdeu o trem e ficou na plataforma vazia. Vazia e silenciosa.

Vou sentir falta do paraíso, claro. Quem se acostumou com néctar demora para aceitar mingau. Se bem que há daqueles mingaus feitos com tal amor que abraça e aconchega sem estar perto. Não é deste que falo. Falo daquele que é fácil de engolir, mas não tem gosto de nada nem tem forma de nada. Apenas um amanhecer sem sol. Apenas a vez do outro ganhar e você pagar.

Agora que o sono me vence aos poucos, me derruba ainda mais, vou deixar que a gravidade faça seu papel sem resistência. Vou horizontalizar, eu que perdi o horizonte vou me fazer de fresta de luz. E assim ficar, um pouco longe, um pouco sem sentir para me proteger. Vou fazer de conta que não é comigo e vou abrir a janela. Mas amanhã, agora vou somente me deixar vencer pelo cansaço. Vou me deixar sozinha.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Quando penso nas relações

Quando penso nas relações entre as pessoas, minha impressão é de que tudo que move os relacionamentos, sejam quais forem os motivos, é o poder, muito pouco a compreensão, muito pouco a cooperação. As relações se fazem por laços de poder. Quem pode mais. Mandar sim, pedir jamais, porque pedir é expor sua fragilidade.

Fui muito controladora outrora. Hoje delego o que posso. Pensava que não podia ser frágil, sensível, não podia mostrar meus defeitos. E então era assim, no recôndito da minha vida escondida, imaginada, eu era herói, forte e destemida. Para fora do meu casulo, eu era invisível, encolhida, tímida. Detestava minha timidez como se fosse um defeito. Então, tinha tantos amigos e divertidos que nem sei dizer quem era eu.

Eu já quis ser perfeita. Não admitia errar duas vezes a mesma coisa. Tentava ter sob controle todas minhas emoções. Em vão. Elas simplesmente me dominavam e me submetiam. Quando pensava que a situação estava controlada, estava lá fazendo papel de besta. É sempre assim. Você tenta desenhar tanto sua imagem que acaba vítima de si mesmo. Marionete de si mesmo.

Fui assim montando uma auto-imagem a tal ponto desencaixada que um dia me desconheci. Me perdi de mim. Olhei no espelho e não sabia quem era aquela figura que me olhava firme e desconcertante. Deprimi. Mergulhei tão fundo que cheguei a perder o ar. E da relação de poder que me movia, fui ficar do lado dos desempoderados. Eu nunca tinha me identificado com a vítima e lá estava eu, deprimida, sem forças, sem vontade de viver ou de morrer. Sem.

Não foi fácil aceitar o que passava. Nem foi fácil tomar uma decisão diante de tanta falta de convicção. Mas parece que estar vivo tem um fio de ouro invisível que nos faz acordar mesmo quando estamos morrendo de falta de vontade e por ali, como um tubo de glicose no sangue, vai brotando sem ser percebido um certo ânimo ou reação até conseguir que um braço ou uma perna responda e se mova.

Eu quero relações iguais. De iguais para iguais. Onde as pessoas possam dizer sem medo o que sentem sem se sentirem ridículas. Que nunca pensassem que o riso que provocam seja motivo para se sentirem palhaças. O riso é o primeiro passo para a soltura, para a espontaneidade. É o primeiro traço de que as coisas estão soltas, simples. O simples é tão leve.

Há alguns anos me mudei para uma cidade pequena em busca de uma vida mais simples. Quando me perguntaram o que era uma vida simples, não soube explicar. Hoje sem nem pensar qualifiquei o simples: leve. Leve como a nuvem que passa, o vento que passa, o rio que passa. Leve como a vida que não precisa doer, que não precisa pressionar, não precisa mandar.

E a vida? Talvez não seja mais que um modo de aprender a aceitar com firmeza e não com resignação as coisas, os fatos, as pessoas que passam por nossa vida. A trama do tecido que interlaça tantos nós e ainda assim é fino e delicado. Macio. Por que é tão difícil a vida em comum? Seja ela no trabalho ou em casa. A vida que se passa em conjunto, junto, íntimo. A intimidade é desconcertante. Ela parece sempre abrir uma cortina para o palco de uma guerra. E eu queria tanto a paz. A paz de saber que faço o melhor. Que tiro o melhor de mim. A paz de saber que o dia que passa é a vida que se ganha.

Sei que meu tom é de insatisfação. Mesmo assim, agradeço. Agradeço ter vivido até aqui para poder aprender com a beleza da natureza, das montanhas, dos riachos que correm seguros e gelados, aprender que se há beleza para ser vista é porque para ela fomos criados e, como ela, assim somos. Nada devendo a nenhuma cachoeira ou regato. Leves, em paz e belos.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Já amei muitas pessoas

Já amei muitas pessoas. Muitas delas ainda amo, outras tiveram data certa e passaram. Tem gente que não lembro o nome. Outras lembro do perfume, da música, do jeito de olhar, do sorriso, do brilho ou da tristeza. Lembro de como foi passar pela minha vida, ou da minha na delas. Lembro como se fosse ontem, como se fosse agora há pouco. A memória é uma sensação. Lembrar é como viver de novo. E é novo de fato, porque o que se vive uma vez é uma coisa, mas viver na lembrança é outra vida. Tudo pode ser melhor ou pior. Tudo pode ser recontado diferente, mais lindo ou mais feio.

Eu prefiro lembrar o que é lindo. Do que me traz um sorriso espontâneo e instantâneo no rosto e nos olhos. O cheiro que remete a uma emoção, a foto que recorda uma ação, a música que lembra uma atitude. Tantas coisas que já fiz e deixei de fazer. Tantas pessoas com quem compartilhei emoções.

Acho que estou nostálgica. Deve ser a época do ano. Aniversários, meio do ano, a vida que passa pelo fio do horizonte. Consigo ver o sol se pôr em mares que já fui, em montanhas que já passei e na fronte de quem fica por mais que o tempo passe.

Gosto da vida que vivo hoje, sem detrimento do que já vivi. Já me arrependi do que não fiz e me critiquei do que fiz por fazer. Mas do que fiz porque acreditei, errado ou não, não me arrependo. Não me arrependo das dores que causei em mim, em outrem, daquilo que não tinha consciência. Já quis ser perfeita, já quis não errar nunca. Mas hoje não. Hoje aceito o que sou e fui. Aceito meus enganos, desenganos, desencontros. Podia ter chegado mais cedo, podia ter ido embora. Podia ter esperado mais ou podia ter esquecido. Mas não fiz. Quem eu era agia assim.

Tudo que fiz ou deixei de fazer me fizeram quem sou hoje. E quem sou me alegra, me deixa feliz só porque sou eu. Eu, que já fui tão triste, que já fui tímida, que já fui inteligente como forma de me disfarçar. Tenho prazer em ser o que sou. Até quando hesito não me irrito como outrora. A vida vale pelo que vivemos e não pelo que queremos, apenas. Vale pelo que sonhamos e não pelo que realizamos. Vale pelo que dá coragem não pelo que dá medo. E tive muito medo tantas vezes. Medo de viver foi meu último medo. Mas passou. Doeu, deixou marcas, mas passou.

Ter medo de viver é pior que ter medo de morrer. Morrer é simples. Viver é complexo. Viver tem decisões, tem ambigüidades, tem acertar ou errar. E dá para errar 99 vezes e acertar apenas 1, assim mesmo viver é melhor que sonhar. Com tudo que pode ser cavar um buraco para fazer um castelo ou para se enterrar.

Amei e amo. Não tem nada que valha mais a pena do que amar sem medo. Sem susto. E eu amei muitas pessoas e amo ainda. A vida vale pelos amores que se vive. No plural ou singular.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Fazia tempo que não tinha tempo para mim

Fazia tempo que não tinha um tempo pra mim. Sem nada para fazer, senão olhar as abelhas sobrevoando as flores das cerejeiras, senão observar os movimentos do gato no parapeito da janela, plácido. Senão ver o bordado verde que as araucárias desenham no céu azul de inverno. Que bom é o inverno de sol aberto, pássaros cantando, vaquinhas pastando. O silêncio de haver vida inteligente na face da terra. Sim, porque não é inteligente o ronco de motores de carros, a paisagem passando intocada pelo pára-brisa. Aliás, não há inteligência em parar brisas. Que bom o vento frio chegando manso, quase imperceptível.

Fazia tempo que não trazia na roupa o pó da estrada seca de terra batida. Agora, novamente, os cogumelos selvagens podem ser caçados quase sem nenhum predador. Quase, porque descobri que formigas gostam bastante dessa iguaria. Serão gourmets? Não entendo de formigas, entre outras coisas, e entendo muito pouco de cogumelos selvagens. O suficiente apenas para ser viciada em caçá-los e prepará-los.

Acho que não cairão mais pinhões a essa altura do inverno. Mas o zunido das abelhas nas flores me dá o sentido da vida que minha vida precisa agora. Um pouco de paz na zoadeira, quebrando folhas secas caídas das árvores com o pisar por mais leve que tente. Outro som que me faz lembrar que estou em casa é a revoada dos colibris disputando espaço com abelhas entre o cor-de-rosa geral. Antes crepitava também uma fogueira que agora só está fumegando um pouco.

Aqui, sem telefones que me façam contato, só com a eletricidade do pensamento, vou recuperando a calma e a mansidão que um dia vim buscar. Meu tempo de volta para mim num sopro. Eu queria saber identificar o canto dos pássaros, só para ficar sabendo, para nada. Já reconheço os bentevis. Também reconheço a batida seca dos pica-paus à procura de alimento. Tem o canto da seriema, sempre acompanhada, parecendo um ferro batendo na bigorna. E o piado dos gaviões. Quanto vale não fazer nada, não ganhar nada, apenas ser a liberdade leve de uma pena que voa.

Por que será que sempre penso que apenas vou conseguir tranqüilidade na vida bucólica do campo? Olhando bezerros pastarem, no entanto, não me iludo que estão apenas engordando. Tucanos lindos comem ovos de pássaros menores. Formigas devoram uma árvore inteira. Talvez seja apenas o silêncio. Ou o espaço amplo e vazio de gentes. Ou a beleza inútil de tudo, a beleza efêmera. O descaso com que uma flor brota, que uma fruta nasce em meio ao mato, e a noite cai sem aviso.

Colocar fogo num fogão a lenha não é tarefa fácil como parece. Encho minha casa de fumaça ainda antes de conseguir meu intento. Os gatos tentam fugir pela janela... depois, no entanto, eles me agradecem o calor que acendo. Tudo volta à calma de antes, embora mais quente agora. O relógio parado da cozinha me avisa uma hora antiga em que meu mundo girava ao contrário. Aproveito para limpar os armários e queimar todas as lembranças que me fizeram mal outrora. Tento retomar o ritmo bom da vida que sonhei.

Sonhar é fácil, difícil é acordar. Mas fiz uma pequena bagunça na cozinha o suficiente para saber que a casa tem gente. Tem vida. E a vida precisa de cuidado.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Quantos caminhos

Quantos caminhos podemos seguir apenas vivendo... tantos, tantos, uns de pedra, outros de terra, uns tem vista para o mar, outros para a montanha. Quantos passos em linha reta para quantos subindo um morro. E de quantas formas podemos caminhar por esses tantos caminhos. Alguns exigem calçado, outros precisam ser descalços, alguns ainda precisam da ajuda da mão, agarrar num galho do barranco para subir um degrau, ou descer escorregando para não cair. E as trilhas? E os desvios? meu deus...

Olho para o céu e vejo que daqui não posso ver a estrela polar. Para onde seguir? Para onde ir? eu, que já saí de casa há muito tempo, muito tempo na estrada. Fui me procurar, sapatos empoeirados com o pó de todos os lugares por que passei. Deixando no rastro um pouco do pó que trazia antes. E por todos os pontos que fui e deixei, nada me prendeu, nada me fixou. Mas estou aqui agora, olhando o horizonte conhecido, reconhecido, o tempo que deixei de ter. Eu vim em busca do tempo e não tenho mais. Vou me embora. Vou atrás do vento norte, quente.

Balança os meus cabelos um pouco a brisa fria da noite. Esse rio não corre para o mar, não aqui onde começa. Segue para dentro, para o sertão, engrossando o caldo de águas claras que não alimenta, mas sacia. Nessa época do ano ele corre frio, cheio de pedras e espumante. Carrega meu olhar cheio de dúvidas e de ansiedade para dentro das curvas e quedas que serpenteia pelo seu rumo. Sigo sua direção? No final todos os rios seguem para o mar, cedo ou tarde. Um mar grande ou mar pequeno, não importa. Faço mais em ir embora do que ficar a olhar a esmo.

Nada me prende aqui. Nem os pássaros que cantam alegres e voam em vai-e-vem incansável. Nem a renda das copas das árvores desenhando o pôr-do-sol, nem o aceno sincero das pessoas que passam por mim na calçada. Tudo é temporário, passageiro; a vida é um caminho, e não um destino. E assim como me preparo para seguir em frente, abro a janela para a luz e para o frio de fora, para me deixar sentir, inteira.

Vim porque aqui era o paraíso, mas vivi o inferno interminável. Se não acaba, sou eu que acabo com ele. Porque demorei tanto tempo para entender que não precisava viver isso? Eu nunca vou saber, talvez. Mas aprendi que tem pessoas certas e pessoas erradas com quem viver. Pessoas certas incitam, estimulam, instigam. Pessoas erradas deprimem, espremem, usam. Saber escolher passa também por saber não se deixar usar. Eu sei, fui sozinha ao inferno, ninguém me obrigou. O inferno fui eu. Saí de lá fugida, jogando a chave por baixo da porta. Mas meus pés ainda carregam as cinzas em que me transformei por tanto tempo.

O paraíso sou eu. Aonde levar minha paz para voar, lá será meu paraíso. Onde possa comer todas as maçãs que brilharem seu vermelho arriscado sem medo da vergonha por vir. Não há o que temer quando a paz acompanha nossos passos. Meu sonho de tranqüilidade, meu deus, meu sonho de harmonia, de bem-estar, onde me instalo novamente? Tudo que já vivi teve a importância de me fazer crescer. Mas por que quero tanto esquecer que fui ao inferno andando e não saí de lá mesmo quando já ardia a brasa fria do desamor? Por que ainda não me livrei dessa lembrança pesada, que cansa só de pensar, do qual morreria para esquecer? Por que me persegue, eu que nunca vendi minha alma? Como me livrar dessa sombra pegajosa que tem cheiro de mofo e gruda na roupa feito espinho do mato? O que me prende num tempo de espera eterna? Cansei de tentar entender. Agora só vou partir. A vida vale pelos passos que se dá e pelo que o olhar consegue tocar.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A vida é um conjunto

A vida é um conjunto de alegrias e tristezas que se revesam e se sucedem. Quisera viver somente as alegrias, o lado claro da vida. Olhar pela janela transparente da confiança, estender a mão para a fruta sempre disponível, sempre ao alcance. Quisera sentir somente o amor, amor que sinto, que me toca. Mas ao dia segue a noite. Bela quando há lua, bela quando não há. Cheia de estrelas, mas nem sempre. O sempre é uma coisa que não existe na vida.
Ainda assim, amo a vida. Amo passar o frio das manhãs geladas de inverno. Elas são límpidas, azuis, bordadas de verde da serra. O frio que aconchega porque é a vida que escolhi. Depois nasce o sol, e ele vai esquentando aos poucos, aos poucos fazendo sombra por onde vou. Não é o sol que faz sombra, sou eu. Sou eu que sou sólida e opaca, seguro um pouco a luz de passar. A gente que não é luz quer sempre carregá-la conosco. Então, fazemos sombra. Quisera não fazer sombra sobre ninguém. Pisar nela com o sol sobre minha cabeça. Mas projeto por onde ando a sombra do peso que meu corpo tem. Que minhas experiências trazem.
Como é complexo viver. Quero luz e faço sombra, quero alegria e trago as dores de outros tempos nos músculos e maxilares travados. Busco a paz, o significado, o abraço quente. E levo também a balbúrdia barulhenta dos desencontros, a incompreensão das falas desconexas, o balançar vesgo dos braços a esmo.
Queria apenas ser uma dentre tantas que sou. Vestir a roupa simples de um dia e ser eu mesma sem enfeites. Falar de amor e ver a reciprocidade do mundo no alô das mãos que acenam. E sorriem. E se dão.
Já consegui juntar muitos significados para minha vida. Ter me achado um dia no lugar da vida que escolhi foi um belo significado. O primeiro dos muitos passos que se faz a caminhada da vida. Mas quanto tempo, meu deus, para dar esse passo. Quanto tempo para entender o que queriam dizer minhas pernas, entender que direção tomavam meus pés, meu olhar desencontrado do resto, olhando para as nuvens, o sonho.
Viver é melhor que sonhar, sem dúvida. No sonho tudo dá certo. Você vai crescer e vai se dar bem. Vai encontrar alguém que te ame como você o ama e vai se dar bem. Vai trabalhar naquilo que gosta e vai se dar bem. Tudo vai dar bem. Magicamente. Lindamente. Mas viver tem surpresas, tem o inesperado. Tem aquilo que nem o sonho te daria: o fascínio e o medo do novo.
O novo é uma regalia para poucos. Que bom poder reconhecer a cada momento a novidade da paisagem. Uma flor que abriu, um galho que caiu, um olhar forte que se sustenta. Isso faz toda a dor antiga e grudada em você pelas solas dos pés parecer que são cócegas. A vida e a complexidade dela. E eu que pensava que melhor para mim era buscar o simples. Onde o simples? Só se for pela janela fechada e transparente que permite ver o lá fora sem se expor. Sem sentir o vento frio. Só se for para não sentir o arrepio que o frio faz na pele, como a alegria faz na pele, como uma boa lembrança faz no couro cabeludo.
Sim, o vai e vem da vida. Não é fácil entender os motivos. Não é fácil buscar paciência sem deixar de pensar que é filho de deus, que é o filho de deus. O escolhido. Sem pensar que o mundo gira em torno de si.
Bom viver com todas as diferenças. Todas as dificuldades. Todas as desavenças. Porque o melhor de tudo é o que se leva dela. O sentido que só sentindo se tem. Que bom que é viver.

Sonho e Realidade

Não são só homens que gostam de mulheres dependentes. Mulheres também gostam de homens dependentes. Aliás, as pessoas em geral não gostam de lidar com iguais. Iguais em estatura, em inteligência, iguais em direitos, sensibilidade.
É muito mais simples definir o mundo pelo seu próprio olhar. Julgar, criticar, condenar o outro é tão simples como não mudar. Mudar é um problema. Mudar é muita desorganização, é desestruturação. A vida dessas pessoas é em geral simples como elas resolvem as coisas. Intransigentemente. É porque é. Sim porque sim. Não porque não. O mundo imutável dos que têm medo. Medo de transgredir, de ir além.
É por isso que dói tanto a elas qualquer possibilidade de mudança. Seu pensamento fixo não admite nenhum viés. Tudo é literal. Tudo é como parece ser. Vítimas de seu próprio pensar fixo. Qualquer variação do vento que faça balançar os cabelos é uma ameaça. E diante de negar o que sempre pensou, o que vai morrer consigo sem alteração, preferem negar o mundo. Nada que for diferente do que acreditam pode ser igualmente certo. Nada do que foge do esperado pode ser verdadeiro. A fronteira entre essa simplificação e a anulação da vida é uma porta entreaberta. O sonho, então, é uma projeção banal de uma realidade que se multiplica pelo óbvio. O sonho que a poesia transcende e faz verdadeiro sucumbe ao ângulo reto.
Existe uma distância muito grande entre a justeza de princípios e a dureza de pensamento. Pensamento inflexível é uma incoerência porque é próprio do espírito ser flexível, tanto quanto lhe é próprio ser ético. Não existem estados imutáveis nem na rocha sólida. Estados de permanência plena, em que o olhar não se deixa surpreender, chocar, vibrar. Talvez gurus?
Não acredito no silêncio dos que não respondem para não agredir. Porque o silêncio que não é uma prece é a traição. A traição dos sentidos, traição de si mesmo. Quando eu parar de falar é porque não vale mais a pena. É para poupar energia.
Não, não são iguais os que pensam igual, mas os que valorizam os outros como a si mesmos. De resto, não existem superiores ou inferiores, mas ignorância, obtusidade.
Embora minha desilusão com pessoas que teimam em não ousar sobre si mesmos, ainda acredito em algo que é maior que todas as inflexibilidades, que todas as incongruências, que anula todas as negatividades. Acredito no amor. E pelo amor eu sei que você está entre os que querem seus pares.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Não sou tão brilhante para acompanhar você

Eu não sou tão brilhante para acompanhar você. Dá para aprender a ser alegre? Ou tinha que ter nascido assim? Dá para aprender a viver em paz? Eu que vim da guerra tenho chance de aprender a calma? Se para viver ao seu lado tenho que aprender o colorido da vida, que eu amo intensamente, conseguirei aprender sozinha?

Ando desajeitada. Desajeitada, tento compreender o que se passa. Desajeitada e errando muito arrisco alguns passos na sua direção, que é luz, é plenitude. Não sei se reconhecerei a tranqüilidade quando chegar lá. Quando puder abrir a janela do quarto de manhã querendo comer a vida que pulsa lá fora depois do amanhecer. Parece que continuo no escuro. Parece que continuo entrincheirada.

Fui atraída pela sua luz como as borboletas noturnas. A noite era minha vida. E agora que saí de onde estava sem chegar a lugar algum, não sei mais se continuo cinza ou começo a amanhecer também. Eu queria ter podido aprender com você um pouco de fazer luz. Mas não consegui.

Vou embora sem ter aprendido a amar. A confiar. Eu que pensei ter confiado na vida, acho que nunca confiei em nada. Estou presa no escuro. A cabeça no céu, os pés enfiados na terra dura e seca. Estéril. Seca e sonhando com o mar transparente do seu olhar. Também não tive tempo de aprender com você a ser transparente como o mar. Ao invés disso, fiquei invisível.

Quanta dor tenho no peito por amar o amor! Ou não é amor o que penso que sinto. Quando amanheceu a minha vida recentemente, pensei que não voltaria a anoitecer. Pensei que seria dia claro e iluminado o resto da minha vida. Que poderia levantar e tomar café porque a vida continuaria brilhando por horas e horas a fio. Eu pensei que o sol que se abriu queimaria todas teias e cinzas que se acumularam em mim com tanta tristeza.

Por que carrego essa dor em mim como se fosse parte da minha alma? Por que não aprendi a confiar, a dar simplesmente. Por que deixei quem amava na primeira dificuldade? Por que não deixei quem não amava depois de tanto peso? Por que erro insistentemente no amor? Peço demais, talvez. Quero demais, certamente. Sonho mas não creio em sonhos. Realizo mas não valorizo. Presa de um círculo vicioso de querer errado, doer, me esconder e voltar a querer errado. Quero apenas a luz.

Como reconhecer minha luz no meio da tristeza instalada há tanto tempo que não consigo mais desaloja-la? Talvez tenha apenas que ficar iluminando meu coração abrindo o peito sem medo. Sem amor. Achando tranqüilidade não há nada mais. Achando que vale a pena o caminho que não tem promessa alguma. O que deus espera me mostrar com isso? Paciência para aprender, talvez. Paciência e paz no meio da fome.

terça-feira, 30 de março de 2010

Quando você partiu

Quando você partiu, chaves sobre a mesa, o drama, o gesto largo, não foi como das outras vezes. Das outras milhares de vezes. Não foi nada parecido com todas as vezes que nos separamos porque você estava apenas testando o efeito de seu poder sobre mim.
Quando você partiu como se fosse sério, como se fosse definitivo, como tantas e tantas outras vezes em que o espetáculo foi ao ar, me imprimindo um ar dejá-vue, me fazendo parecer mais uma vez um boneco – que fui sem prazer – um jogo não combinado nem tacitamente, não foi parecido com nenhuma outra vez que convivi com isso.
Você queria testar mais uma vez seu poder de sedução? Ou queria ver o alcance de seus tentáculos, que deixei crescer por fraqueza, por não querer simplesmente viver uma relação vazia de significados? Ou queria ver quantas vezes conseguiria me manipular mais uma vez?
Será que quando você partiu, desta vez, você tinha idéia do que poderia vir e veio? Do que aconteceria com um relacionamento que foi construído tijolo por tijolo com argamassa da aposta, da aposta de que as coisas poderiam mudar e ser realmente boas, verdadeiras, sinceras?
Queria entender um pouco do que motivou sua partida. Mas agora já não importa mais. Quando você partiu, como tantas outras vezes tinha feito, desta vez foi diferente. Porque eu não aceitei mais a volta. Não aceitei mais o bis. Não aceitei mais pagar para ver o que não mais acreditava.
Quando, então, você partiu e entendi o que acontecia, finalmente me libertei. Libertei meu coração de uma armadilha, da falta de amor-próprio, do excesso de brilho que ofusca e faz gerar o medo. Libertei-me do medo.
Hoje, quando penso quieta e calma sobre tudo o que ocorreu, fico ainda impactada pelo quanto me deixei prender pelo medo. Medo de acreditar em mim. Medo de acreditar na violência. Medo, medo, tanto medo.
Hoje, quando descubro quanto engano acumulei no meu coração em acreditar que as coisas poderiam se tornar boas a qualquer momento, como a promessa de todo amor intenso, sinto uma alegria inusitada de me ver liberta desse círculo.
O inferno é circular, é sem saída. É esse o verdadeiro inferno na vida de qualquer pessoa. Hoje sei que me libertei do círculo sem saída que era uma vida de apostar que poderia haver companheirismo onde só havia ego. Que poderia nascer carinho onde só havia vaidade. Que poderia haver verdade onde havia tanta mentira.
Eu acreditei por demais no inferno. E que uma vez comprado o bilhete, não havia volta. Fiquei tanto tempo parada na mesma estação, tanto tempo pensando que o trem estava apenas atrasado, mas chegaria. Bastava perder o bilhete para não perder a dignidade, a amorosidade, a alegria.
Perdi as malas, perdi a hora, perdi o trem na esperança de que o bilhete fosse premiado, e que tudo voltasse e que tudo se tornasse magicamente harmônico, sincero. Perdi a esperança na vida, em mim, em deus. Não sobrou nada a não ser escombros. E escombros inabitáveis, cheios de ratos, insetos nojentos, animais peçonhentos. Nunca vivi nada antes que pudesse resultar tão negro, tão inútil, tão vazio e doloroso.
Nem a perda de um grande amor foi tão impactante, nem uma separação pungente e pulsante foi tão impressionante, tão amarga quanto foi o não terminar no tempo que precisava, que foi o tempo que se arrastou nessa sequência de cenas absurdas, surreais, magnânimas, a sequência da agonia de um relacionamento que acabou antes de acabar, que respondia a choques, a gritos, mas sem perdão.
Naquele dia em que você partiu, aí sim pude ver que o muro era baixo e fácil de transpor. Que era fácil, mais fácil do que jamais imaginara me libertar de um exílio. Um exílio de mim mesma. Um interminável exílio de quem era eu. Finalmente pude voltar para casa, me reencontrar, saber o que vim buscar e o que queria de fato.
E o que queria era a tranqüilidade perdida há muito. Era a paciência que nunca tive antes, mas que agora encontrei. Era o não ter medo de ser. Ser eu, ser frágil, ser inocente. Eu precisei passar pelo fogo que queima e destrói até o ferro mais duro para virar quem eu era, oculta, rebaixada, encoberta pela cinza dos tempos que queimam e esvanecem. Mas depois o vento ou a brisa, nem sei, passou limpando o que restou. Eu restei. E agora vou recomeçar apenas com a alegria perdida, reencontrada, verdadeira. Voltei para mim. Passei a página de uma ilusão, desculpe. E se me libertei te libertei também. Então, não precisamos mais seguir o mesmo caminho, não precisamos mais pegar o mesmo trem. Deixe-me na estação ou me deixe ir só. Meus paraquedas só suportam um, e já estou neles. Prepare os seus e boa viagem.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Calma, calma

Calma, um dia após o outro, respira, expira, respira, expira calmamente. Tudo passa, tudo é cíclico até o momento que acaba o carma. Calma. Respira, expira, relaxa. Pode-se ver a beleza da vida até mesmo onde é menos provável, até mesmo na morte. O fim. O fim que quase tudo parece ter na Terra. Mas até uma vida com fim esperado um dia vai acabar. E se deus é eterno, somos todos enfim. E um dia escapamos desse infindável começar-acabar.
E o que espero agora é acabar. Acabar com aquilo que se arrasta por tempo demais, por vida demais, carregando tanta emoção perdida, seca de ter sido esquecida ao sol dias e dias e noites. Uma emoção que já não pulsa, que já não consegue nem falar de si mesma. Acabar com aquilo que já findou muito antes da curva desse rio capturar a falta de força e ir represando, juntando folhas secas, galhos secos, tudo seco apesar da água do rio.
Meu olhar já se foi. Meu corpo já se foi. Minha alma há muito partiu. Nada mais está como antes. Ainda tenho um pouco de pó em cima dos móveis que não foram espantados com o barulho da tempestade. Ainda tenho um pouco de escuros nos cantos dos cômodos, incômodos, apesar dos relâmpagos lá fora. Eu já fui para o lá fora. Eu estou no lá fora. Nada senão memórias gastas e desgastadas restam pelo caminho. Acabou há tanto tempo que nem percebi a hora que abri os olhos e dei por mim. Velo não por mim ou pelo que fui, mas pelo que em mim morreu de tanto esforço, de tanto resignar.
Na saída, esbarrei no vaso de flores plantado com tanto cuidado e tanto amor – vou dizer a palavra proibida para não me arrepender depois – e mesmo assim, mesmo assim, secou como o resto. Terá faltado água? Terá faltado verdade? Terá faltado o quê meu deus? Agora seca e esquecida no vaso que caiu, a planta nem é mais planta. A flor nem é mais flor. É galho seco, cheio de espinhos e desconhecido. Carrapicho que agarra na perna da calça quando passamos no meio do mato. Até o mato, agora, ficou para trás.
A dor de partir sozinho é a mesma dor da noite escura quando criança. Tudo grande demais, tudo perigoso demais. Não sou mais criança e nem vai ser a última noite escura que passo sozinha. Só que tenho que acordar um dia azul e calmo daqui a pouco. Como queria que já fosse daqui a pouco. Como queria que já fosse amanhã e tudo que me restasse fosse um pouco de suor frio na roupa que visto. E tudo que me restasse do que já passou e morreu como as pedras largadas do caminho fosse uma memória vaga do pó e da aridez por que passei.
Por enquanto, enquanto não amanhece o azul que a vida me promete e já deu tantas outras vezes, enquanto não clareia a janela aberta da minha alma, tento apenas respirar, expirar, não conter nada dentro do peito, apenas encher e esvaziar de ar, retirando disso a calma que preciso, a lucidez que regenera as veias, para que meu sangue não se derrame demais, para que ele não circule senão onde precisa: num coração que não cansa de acreditar no amor.

terça-feira, 9 de março de 2010

Quero casar com você

Todos os dias que amanhece assim, com céu azul por trás da copa verde das árvores, quero casar com você. Quero amanhacer também azul enfeitada de renda verde com o canto dos pássaros alegremente no fundo. Quero prestar meu voto de alegria quando houver bonança, quero gentilmente sorrir com o calor do sol no vento frio que faz aqui.

Sim, quando amanhece chovendo, nublado e cinza também quero casar com você, mas ainda uma vez mais para renovar meus votos de alegria e felicidade, a alegria incontida pela vida que jorra dentro das veias e de um coração incansável. A alegria que a correnteza da água passa descendo o rio sob a copa das árvores, escorregando pelas pedras, movimentando meu dia, nublado ou cinza ou chovendo.

De tudo, não é seu amor que me faz amanhecer alegre a ponto de querer casar com você, mas é a promessa de que tudo será sempre, sempre e sempre motivo de alegria e felicidade. Nada de tristeza ou dor na vida que começa todo dia bem cedo. Nada que possa quebrar o encanto de haver um deus ou deusa fazendo com que a vida respire e pulse através de mim e de você pelo laço que nos une.

Sei que os dias acabam e anoitece. E quando anoitece às vezes tem lua, às vezes não. E no escuro, quieta, pequena, olhando o mundo, de mãos dadas às suas, também quero casar com você. E se você me olha e consente, a noite se ilumina do brilho do meu sorriso feito criança. A criança que há em mim não sabe o que é casar, não sabe o que é acordar todo dia com a mesma pessoa e querer passar o dia todo com a mesma pessoa e querer passar todos os momentos da vida que há ainda por ser com a mesma pessoa. A criança desentendida que sou só espera poder brincar um bocado cada hora que passa. E desse amor infantil e sonhador tiro a terra necessária para plantar meu cotidiano de rotinas e repetições com você.

Vou repetir sempre a alegria renovada das manhãs, me lavando sempre dos efeitos da noite dormida e refastelada com você. Vou repetir sorrisos de bom dia, vou repetir que te amo te amo te amo com a boca de café quentinho que vai se repetir em todas as manhãs. Minha rotina de alegria que faz do céu um azul azul azul sem nuvem, frio ou não, que importa? se me aqueço do seu abraço ao amanhecer da minha vida. Não tenho medo desse cotidiano não rebelado que no entanto me revela e revela quem você é para mim. Um sonho, um desejo, uma vontade, sei lá, mas no qual acredito verdadeiro o suficiente para eu querer casar com você.

Aproveito o silêncio da noite

Aproveito o silêncio da noite para pensar na vida um pouco. Já está chegando o outono. As quaresmeiras floridas enfeitam os verdes da mata que agora apenas vislumbro a silhueta. Tem árvores que perdem as folhas, outras perdem pinhões nessa estação. Um pouco perdi também, um pouco ficou para trás. Não me arrependo.

Mudei de cidade, mudei de vida, de casa, de companhia. Mudei sem medo de me perder e quase me perdi. Tantas são as coisas que se perde numa vida. Já perdi o olhar em outro olhar quase sem perceber, quase sem querer. Mas depois quis. É assim, no fundo de casa o rio passando levando com seus sons os sonhos que não tiveram tempo de se realizar. E os que foram mal realizados. Mal dormidos. Mal sonhados.

Quase não tem estrelas lá fora, bem escuro a ponto de não me reconhecer na noite. Fico pensando, pensando, um pouco olhando para fora. O peito vazio para o que vier. Os pulmões vazios para todo o ar que puder respirar e expirar para seguir em frente. Sim, porque não olho para trás, não penso no que ficou, acabou, morreu.

Aliás, é difícil para mim aceitar a morte, o fim. Deverá haver um fim para tudo? Mas se depois que o dia acaba o que vem é a noite e depois o dia de novo? E se depois que acabar a infância e acabar a juventude e acabar a maturidade e acabar a velhice vier uma nova infância? Não pode haver morte para o amor que nasce forte e macio como um bebê. Os bebês não morrem, eu sei. Eles seguem crescendo em outro lugar, nos braços de um vento morno, sob os cuidados de uma outra terra.

Meu amor vem crescendo na mata solto como os cães caçadores que já não existem mais. Em casa, preso, se entedia e dorme o dia todo. Na mata, liberto e sem comida, tem que buscar seu alimento pelo seu instinto. Tem que acreditar naquilo que não vê. Eu já acreditei, já desacreditei, voltei a acreditar em outra coisa ainda. Quem sou hoje já pulou cercas, já passou por baixo de pontes, já se escondeu em árvores, já viveu em árvores. Já caiu também.

Hoje prefiro andar. Caminhar o caminho dos que sabem, mas esqueceram. Os novos inocentes. Ainda bem que posso caminhar assim com você ao lado. Posso estender o braço e tocar sua mão ao alcance. Posso virar a cabeça e encontrar seu sorriso pronto, verdadeiro, lindo como o caminho que às vezes se estreita, às vezes se alarga. Tudo passa, tudo parece voltar depois, outro, diferente, tão diferente que nem se pode dizer que é o mesmo.

Não tenho medo de me perder, de perder. Mas já tive medo. Só porque queria ser sempre o herói, sem medo, ganhando sempre, de qualquer jeito. Melhor mesmo é ficar vendo o rio passar em corredeira, sabendo que ele está descendo, carregando o que lhe atravessar o caminho, abrir um vinho, bom vinho e esperar o frio que vai chegar. A montanha tem dessas coisas. Esconde atrás de um horizonte perto um mundo imenso e surpreendente. Detrás dos morros vai surgir uma lua, vai se pôr também, e desse lado ou do outro da serra vai nascer o sol depois. Ventos sopram as nuvens deixando azul azul o céu de quase outono. Mas por enquanto, ainda é noite, estou viva de calor no peito forte, as mãos dadas às suas, quentes também. É o sobe e desce da vida. Colorida.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Meu sonho de felicidade

Meu sonho de felicidade passava ao largo do que vivo hoje. Errei feio. Sonhava azul e branco e hoje no meio de tanto amarelo e laranja é que estou feliz. No meio de verde e rosa, de cheiros de temperos, azeite fritando, cebolas, pimentas, no meio do dia e não da tarde. Manhãs perfumadas de café e pão assando, dourando e derretendo manteiga. Sim, meu sonho era mais selvagem, eremita de mim mesma, escondida das pessoas e da vida que passa simples. Hoje entendo onde errei o plano e quanta disposição perdida.

Percebia de viés, pela janela, sem abrir o peito de verdade. Na defesa de um coração arrebatado e indefeso, sonhador por natureza estranha e estranhamente melancólico. Sentia como quem pensava, palavras de um dicionário de jornal. Hoje não, sentir é perceber na pele a brisa leve quase imperceptível que nem move a cortina, balançando os cílios, fazendo piscar os olhos. Sonho sem grandeza, pequeno pequeno como a vida que se alarga ao microscópio. A felicidade palpável e invisível como o ar. Respirar a vida que reage à luz do sol, à luz que reflete na superfície dos rios, na corredeira agitada dos riachos, nas pedras momentaneamente iluminadas pela água.

A felicidade é um destino que não estava programado quando acordei um dia qualquer e me deparei ao espelho, eu e meu olhar surpreso, com um sorriso espontâneo sem pestanejar sequer. Que sorriso era esse? De onde vinha? Por que tanta graça meu deus? E era simples, era simples como a nuvem que passa sem ninguém ver, a não ser por uma sombra tênue sobre o campo longe. Felicidade desamarrotada depois de um abraço de urso, como podia ser?

Não, eu nem sequer sabia o que era felicidade. Como chegava, se vinha de fora, como entrava e se instalava, a casa cheia ou vazia, como fazia para se mostrar inteira, plena, tal como me sinto agora. Eu, que nem acreditava em plenitude no meio da vida. Achava que era coisa de final de linha. Plenitude? Era o fim. Que fim. Era como querer comer algo que nem conhecia, comer algo que só imaginava, ou nem imaginava. Um sonho debulhado no quintal, feito milho para galinhas, esperando ser devorado. Eu não sabia o que era ser feliz, sentir o peito alegre e repleto, derramando por todos os lados feito leite ao fogo.

Meus sonhos eram outros. E agora, isso. Uma vida inteira para ser aquilo que não fui até o momento. Uma vida que só agora começa. Sem medo, sem arrependimento, sem a estupidez de quem se antecipa e grita gol antes da bola atingir a rede. A estupidez de quem quer, quer e quer sem se perguntar se dá para ser, se pode ser. A alegre estupidez da criança descontraída brincando na beira do mar. Pensando bem, com um pouco de estupidez.

Eu não queria que o vinho me deixasse tonta novamente. Nem queria ficar nos braços amontoados e adormecidos da torpidez. Eu queria essa leve irreverência e bobeira que me dá pensar que faço o que queria fazer, fácil, fácil e fácil como se fosse dado, encontrado na rua, como se fosse pura sorte. Minha sorte é haver conseqüência nas atitudes, é pagar aqui o que é feito aqui. E pagar e receber aqui. Merecer é uma sorte incrível. Mas incrível mesmo é poder contar, acreditar e sonhar, sonhar com uma felicidade que nunca antes havia passado pela cabeça, e que o coração advinha.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Não queria acordar

Não, eu não queria brigar. Eu queria continuar a acreditar que a pureza de coração podia existir entre os homens e mulheres, entre as pessoas que se cruzam o tempo todo nessa vida; que não era coisa exclusiva de anjos, ou que anjos pudessem estar vivendo entre nós. Eu queria continuar a acreditar que bastava minha palavra, meu olhar e minha mão estendida para garantir minhas intenções e que não precisaria de trazer testemunhas. Eu queria continuar pensando, mas pensando de verdade que podia acreditar simplesmente.

Quem eu sou hoje vem de quem fui antes. Mas quem fui antes, já passou. Desceu correnteza abaixo junto com muitos sonhos e ilusões do que seria ou gostaria de ser. Foi lavada de alma e corpo e sangue na água que purifica, o batismo de deus na terra, entre homens e mulheres e crianças.

A imagem mais linda que reúne minha crença nas pessoas é a da flor do lótus que nasce no lodo, no pântano. Nasce no que é sujo sem se contaminar, lindo e perfeito, imaculado. Se é possível a uma planta que não tem liberdade de escolha, deve ser assim também entre as pessoas que são livres. Livres para ser o pântano ou a flor, para ser o que é sujo ou para ser o que cresce apesar do sujo.

Não queria acordar desse sonho de que o amor pode ser fruto de confiança mútua, irrestrita e acima de todas as crenças. Não acredito que para amar seja preciso ética. Talvez amor seja a nova ética. A ética da confiança, a ética da beleza e reciprocidade. Uma atitude que pode mudar todas as outras, pode trazer novidades e mudanças tão repentinas e duradouras que nem o mar teria tanta força. Como a atração da lua nas marés, como a atração do olhar que magnetiza.

Onde está o amor que sinto? Quando falo alto e me descontrolo por não saber ouvir o que não queria ouvir? Quando as coisas não saem como gostaria e – mimada que devo ser – não aceito simplesmente, não aceito diferente? Mas é amor, eu bem sei. É amor o que me faz gravitar nessa atmosfera de incertezas, ora verdadeiro e forte como um farol no mar bravio, ora verdadeiro e fraco como as copas das árvores que se retorcem na passagem do vento bruto. Verdadeiro, ainda assim. Verdadeiro e sincero como a água cristalina do riacho revolto. Cristalino como a lágrima que escorre depois da dor.

O amor é a água que espelha minha imagem na sua quando inexplicavelmente estamos nas margens opostas do ribeirão. É amor, no entanto, amor que une num brado inaceitável de haver realidade como pedra no andar descalço. Eu nunca antes havia andado descalça como hoje. E as pedras no primeiro contato duro e escorregadio me fazem doer o estômago. O amor, por fim, não é um sonho de noites bem dormidas, é uma realidade de vai-e-vem que faz acordar de noite, isso sim. Acordar, ainda assim, não é tão duro e frio quando tem seu abraço certo e perto.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

De um dia para outro

De um dia para outro, tudo mudou. Mudou a direção do vento, que antes era frio e vinha do sul, mudaram as estrelas como se a Terra tivesse girado um pouco mais para lá. Mudou meu olhar, antes perdido no horizonte à espera do quê nem sei. Mudou minha cabeça que era triste e passou a brilhar como a lua nas noites que tem lua. Tudo mudou tão fácil e rápido que pensei que era eu a mudar, que era eu a sentir diferente, que era eu.

Não era. O mundo inteiro virou uns 45 graus para a direita, pouco mas muito para quem já estava até acostumada a ver as coisas tendo que entortar a cabeça. A gente se acostuma muito fácil mesmo com aquilo que fica machucando. Acostumar, aliás, é tão simples que basta encostar-se na cadeira e ficar sentado o resto da vida numa boa, só se acostumando, se acostumando.

Então, quando tudo mudou e eu nem reconheci mais meus olhos tristes no olhar brilhante e sorridente que se me abria ao espelho, quando tudo se abriu como uma caixa de surpresas e novidades dessas que ambulantes não vendem mais, quando tudo mudou à minha volta eu entrei em êxtase. Conectei-me com deus imediatamente numa conexão com o rio de corredeira que passa pela minha cidade, com as formigas que sobem enfileiradas os galhos das árvores num movimento tumultuado e organizado ao mesmo tempo, indo e vindo com folhas; conectei-me com deus pela presença das pessoas que contatei diretamente num instantâneo quase fotográfico, um flash. Minha foto deve estar sendo enviada agora no universo paralelo.

Mudou tudo. Nada ficou no lugar e tudo ficou mais lindo. Parece que o rio num único movimento levou todo o entulho preso nas suas curvas, levou tudo que lhe prendia pelas encostas, e num único cair pelas pedras, jogou tudo que sobrava e atrapalhava cachoeira abaixo. Minha vida nesse turbilhão ora dentro da água, ora fora, escorrendo vertiginosamente nas margens antes estreitas do rio, foi se transformando em outra vida, numa vida que nunca havia sonhado ou buscado. Sim, existe vida depois da vida. Eu testemunho.

Agora, as noites são calmas cheias de vento. As árvores são verdes e floridas com o perfume que toda mata tem. Dá para caminhar no escuro sem medo. Dá para seguir o caminho tornado espaçoso a ponto de caber outros caminhantes, outros como eu que seguem o rumo que o coração traçou, errando, é verdade, mas acertando também e gostando, acima de tudo, gostando, amando apaixonadamente a vida que é possível e impossível, que o braço nem sempre alcança, que, muitas vezes, nem o olhar alcança. Essa vida cujo avesso é mais aconchegante que o lado certo, virada assim, mudada assim, foi um presente. E de tudo que pude entender de tudo mudar assim, o que ficou para mim é um grato, enorme sorriso, completamente confiante e entregue.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Nasci no interior

Nasci no interior do estado de São Paulo o que faz de mim uma caipira. Ainda criança meus pais me levaram para morar na capital, mas já era tarde: em minhas veias já corria a necessidade de ouvir pássaros pela manhã, ouvir os riachos descerem em corredeira, a necessidade de ver entrar pela manhã o sol bordado de folhas de árvores, de sentir o cheiro de mato entrando pelo quarto ao abrir a janela.

Então, quando estava preparada, voltei para minha casa que é a roça. Aqui meus vizinhos mais próximos são ervas daninhas que crescem por todo lado, independente de qualquer coisa. São flores silvestres que nascem e desaparecem sem mais, são trepadeiras ou árvores frondosas, são uma quantidade enorme de frutas que plantei e vejo brotar a cada temporada como uma dádiva. Privilegiada que sou, vejo e acompanho o nascimento de cada fruto pela flor. E ando calma pelo meu quintal de vida dada amassando folhas secas, galhos caídos, meus gatos atrás de mim espantando os passarinhos. O perfume que vem da minha passagem, não tem como descrever. Essa conexão é a mais online que faço no dia. É minha mais íntima conversa com deus.

Foi minha escolha voltar para casa. Tem gente que sai e nunca mais volta. Nem olha para trás. Nem sente falta alguma. Tem aqueles que sentem falta, mas não voltam. Têm sempre um motivo que impede. E tem aqueles que colocam a volta como um prèmio que só será ganho se ele comer toda a comida, se ele terminar tudo que tem para fazer, se ele resistir à toda falta que lhe fez a vida. A vida que escolheu para viver. Voltar para casa não é bem voltar para onde nasci. Eu gosto mesmo é do frio, da montanha, do ar emoldurado por árvores enormes, verdes e coloridas, contra um azul que traz em si um friozinho gostoso, que pede aquecimento extra.

A vida é um patchwork de escolhas, às vezes um resultado lindo, às vezes nem tanto. E a gente pindura na parede da sala, ou pindura na janela, pindura no banheiro, ou pisa em cima. Escolhas que nos levam daqui para lá quase sem sentido muitas vezes. Ou com sentidos paralelos, ou com sentidos duplos. Escolhas que definem uma série de conseqüências, quase nenhuma prevista no momento da definição. Porque a vida não acontece dentro de um plano de negócios que foi estrategicamente montado. Mesmo os planos de negócios muito bem estruturados precisam de alguém para explicar porque algo não aconteceu como o previsto.

Minha colcha de retalhos da vida tem muitos tons diferentes. Ora muito vermelho, amarelo e laranja, mostrando os momentos de grande movimento e audácia, ora muito azul e lilás, naqueles em que fiquei contemplando os resultados. Tem lugar para tudo. Mas não sou original. Só faço copiar o que vejo por todo lado. Junto as cores naturais com um pouco de terra, um pouco mais de água, ou mais cor.

O que hoje é diferente é que antes eu abria a janela e ficava vendo o mundo lá fora, lindo, ou cinza, ou sujo. Agora, abro as janelas para entrar o vento. E abro a porta, o portão e a porteira e saio andando no meio do que é lindo, cinza ou sujo. Vou caminhando, seguindo meu rumo confiante. Sei onde está minha casa, e sei que deixo espaço no caminho para alguém mais que queira seguir comigo. Tem dias que vou longe, noutros quase nem saio das cercas do quintal. E ao encontrar alguém levanto o braço e balanço a mão, aceno com a cabeça e sorrio. Pode ser que o acompanhe um pouco, pode ser que sigamos em caminhos contrários, mas do encontro fortuito e sem plano pode surgir quem me acompanhe um pouco ainda até virar aquela curva, ou mais para frente um pouco, e de pouco em pouco vou transpondo meu caminho feito mais feliz e mais alegre porque esse é meu lugar e esse o momento.

Acordo no meio da tarde

Acordo no meio de uma tarde especial e vou seguindo em frente. Vou vivendo, porque acho que o maior desafio da vida, ela mesma, é conseguir manter-se ereto e firme independente dos altos e baixos do entorno. Já vivi muito em gangorras sem sentido de sobe-e-desce como se fosse minha a falta de rumo. Como se fosse eu que descesse vertiginosamente a onda que quebra, sem me segurar no turbilhão.

As ondas são para surfar. Não para nos mandar para o fundo. Nada na vida foi feito para nos levar para o fundo. A tristeza só é boa para a indústria farmacêutica, agora eu sei bem disso. A vida é uma seqüência de infinidade de fotos que podem ser lindas ou não. Que podem nos mostrar em momentos alegres ou não. Mas não dá para ficar subindo e descendo sem leme, ora bem ora não, num instante o mais feliz do mundo, no outro o pior entre os piores. A inconstância do ritmo não pode me levar a dançar feio. A paz é uma descoberta interior que não pode ser adulterada pela ignorância externa.

É claro que sofro a dor que não é minha. Sofro principalmente a dor dos que me são caros. A dor real e cortante das perdas anunciadas ou não. Daqueles que são tão próximos que chegam a ser minha carne. A dor alheia é uma dor que comove e faz viver aquilo que de outra forma teria que ser multiplicada na teia da vida para que todos passassem pelas mesmas dores. Mas isso não é escola, é vida. Na escola todo o conteúdo da sala de aula deve ser transmitido a cada um presente, independente de sua vontade em aprender. Mas a vida não. Quem quer aprender vive a dor e a delícia de ser alguém que importa ao mundo, sendo sua ou não essa dor e delícia.

As dores e delícias de viver não podem nos pôr nessa gangorra sem sentido de subir ou de descer. As certezas e os saberes que se vão somando de haver sangue correndo nas veias, de haver luz brilhando nos olhos, de estar aberto às experiências que se apresentam, esse verdadeiro saber que inclui o haver amor no coração – nada vale a pena se não houver amor no coração – trazem paz de espírito, a paz de deus que não se muda nunca, que é constante, vibrante de calma, a calma alegre e reconfortante que faz da vida algo maior. Simplesmente porque deus não brinca de nos colocar em infernos cotidianos só para ver como nos saímos. Aliás, ele não nos coloca de maneira alguma em inferno algum.

A paz é como a nuvem que passa, o céu azul da tarde que vai se transformando em rosa, amarelo, dourado, púrpura, até finalmente se transportar em negro, um negro que engole toda luz. O céu não está indiferente à minha dor pessoal, mas olha para ela seguindo seu rumo inquestionável de amanhecer e voltar a ser azul. Ou cinza se chover, ou se não houver sol, independente da minha alegria ou tristeza. Esse ritmo inquebrantável é um farol. Dá a direção a seguir. É deus presente na vida de todos e na minha em particular, na sua em especial, na dele se ele quiser ou se não quiser. Quando quiser, no entanto, estará lá o farol iluminando o caminho. E tudo poderá voltar a ser bom, porque não deixou de ser. E tudo poderá voltar a ser calmo, porque sempre será.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A vida se imortaliza no filho

A vida se imortaliza no filho. No filho gerado do sangue e das emoções mais íntimas. No filho que olha para o pai e se reconhece nesse olhar, como se o para-sempre passasse a existir desde esse momento. No filho que é capaz de entender que veio do amor e para o amor se fez. No filho que agradece simplesmente por que pode olhar a vida por seus próprios olhos, numa herança que não tem tamanho nem pode ser retida, e cuja moldura em sua retina é a presença de quem veio antes.

A vida não se perdeu porque se foi. A vida permanece linda e sonhadora no peito de todos que se abraçaram em sua fonte. E, na fonte da alegria e jovialidade, moram a compreensão e a amorosidade, tudo que eterniza o momento, eterniza os laços, torna terno e eterno cada dia passado junto, ou passado longe, ou passado conjunto. Não morre nunca aquele que abraça a vida acima de tudo, que ama acima de tudo e que cria um mar profundo nesse seu abraço onde tantos outros podem navegar.

Sim, a vida se fortalece naqueles que se presenteiam para os que lhe rodeiam, a generosidade da entrega que não pede nada em troca. Não pede retribuição, não pede reconhecimento, não pede nada mesmo. A entrega que circula nas veias alimentando as células do corpo todo apenas porque o coração bate, o sangue que aquece os sorrisos, aquece a lembrança, aquece ainda que um vazio repentino tenha se feito, porque o vazio é um abstrato mental, não existe de verdade.

Ah, a vida que não se apaga quando a noite vem, nem quando amanhece chovendo, nem quando esfria lá fora, porque dentro, aqui dentro, profundo e enraizado como a alma mesma, aqui o sol do amor inquebrantável se fez no momento do primeiro sopro, quando deus, invisível pelas mãos e emoções de quem gerou, soprou o alento infindável da confiança e do amor. O amor é o grande antídoto para a morte, porque não há fim onde o amor se fez.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Amanhã não vou te querer

Amanhã não vou te querer. Eu te quero hoje. Hoje à noite não vou te querer. Eu te quero agora. Nesse instante que passa líquido deslizando por mim, quero tua pele macia recostada e quente na minha pele que te quer agora. O mundo que pode ser amanhã, logo mais, não importa.

Meu amor se esparrama pela cama numa procura calma e tranqüila do teu corpo que me espera enrodilhado de preguiça. Eis o que quero agora. Nada mais. A eternidade de um amor romântico ou o prazer inteiro de um instante? Meus instantes nos teus olhos não passam, não passam como se o passado deixasse de existir, como se o futuro deixasse de existir. O tempo do meu amor por você é esse tempo presente em que olho teu sorriso, mordo teu olhar criança, aperto tua mão na minha forte, forte e tão forte que te machuco. Então, a vida flui pelas minhas veias bombeada por um coração recompensado.

Agora tenho um coração amassado pelo seu peso que é leve e perfumado, que bate ritmado só para ver você dançar bonito e só para alegrar o dia que nasce. Todo dia nasce um novo dia. Todo dia milhões de células do meu corpo se despegam e se vão na água do chuveiro, na água que engulo porque minha garganta está seca, e vou me mudando aos poucos, renovando como o dia a promessa de ser outra, quem sabe melhor, quem sabe mais leve, mas outra. Quem sou agora te ama como nunca.

A manhã já abriu sol, já fechou, já prometeu azul, agora cinza, já correu alegre na corredeira do rio, já se turvou no vento pelas folhas das árvores. Tudo em contínua mudança me faz nascerem flores no peito. Flores como as que te dou e recebo, perfumadas, amarelas, azuis, brancas, com abelhas, lambidas pelo beija-flor talvez, sem abelhas, movidas pela vida que flui em torno. Ao som dos pássaros que toda manhã, renovada mesmo assim, vêm cantar na minha janela, acompanho o amanhecer calmo.

Essa calma de agora reflete o tom do meu desejo. Sei que ele é teu e não me pertence. Sei que novos amanheceres sobrevirão a esse, com chuva ou sem, com vento ou sem, e esse vai e vem suave me reconforta e diz que posso confiar no para sempre. Sempre acaba o para sempre. Como acaba o reinado do néctar na flor antes de virar mel. O doce se sobrepõe ao doce. Outro doce, sem tempo porque o tempo que começa e termina é o tempo contado para fora. Não é o tempo que fica nas retinas, na pele dos dedos, na ponta da língua.

Para o amanhecer que já vai longe, abro meus braços e espero o abraço certo. Abro meu peito para o encontro dos corações que se amam. Abro um sorriso também. Agora que te amo, sei que nasci de novo. E sei que acertei o passo com vida.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Encantamentos

Todo mundo já foi pego por um encantamento. Tem quem já viu lobisomem, outros acharam que viram velhinhos de chapéu no banco de trás do carro. Mas também tem aqueles encantamentos que encantam para o resto da vida. O canto da Iara, a boca de Iracema, a independência de Capitu.
Quando fui encantada – e sinto isso até hoje – fui fisgada por um olhar que parecia passear até aquele momento, então, virou-se para mim como um caminhão no escuro, os faróis acesos me ofuscando. Fiquei parada, esperando o que poderia ser meu último encontro profundo. Era Iracema. Vinha calma e senhora de si. E foi doce comigo, seus lábios de mel me atraindo. Às vezes foi medrosa como uma virgem que se entrega, tremendo e gostando, às vezes foi intensa como quem sabe o que quer e sabe como conseguir.
Eu, abelha africanizada, não-domesticada desde que nasci, encantada por um olhar que seduz e captura mais que néctar, mais que o perfume das flores, presa de minha própria natureza em não negar um beijo ao doce que pode se tornar minha vida.
Gosto de doce, mas sem excesso. O doce enjoa, sacia rápido demais, provoca um vazio difícil de segurar, o peito exposto demais, vulnerável como pele ao fogo. Iracema, que enfeitiça e atiça, foge pela noite me deixando perdida, no escuro, atrelada na corda mesma que me amarrei e cuja ponta solta pende no precipício à beira do qual me encontro.
Mas um encantamento é um encantamento. Para me livrar dele terei que me esforçar muito. Terei que desacreditar muito. Eu, justo eu, que acredito tanto. Que quero tanto continuar acreditando. Eu, que me lancei no vôo antes mesmo de saber se tinha pára-quedas, se havia rede em baixo, se estava pronta. Eu nunca penso quando o que está em jogo é o que quero. Porque para mim não tem substituto ao que quero. Não tem nada que possa me satisfazer senão a satisfação do meu desejo. Firme como montanha, instável como a pedra que rola no rio. Em parte sabendo o que quero, em parte negociando prazos.
Gosto de Capitu e das dúvidas que ela propõe. Mas confio nela. Se ela me trai, jamais saberei, não importa agora. Suas dúvidas são minhas dúvidas. Encantamentos à parte, não me basta somente Iracema, seu olhar de flor e seu beijo de néctar, não é suficiente ter ciúme de Capitu, independente, arguta, inteligente. Melhor juntá-las numa única, amar as duas, querer as duas e ser delas separadamente. Assim meu amor não se cansa nunca e no encantado da hora vamos indo pelo caminho que se ilumina.

Um sonho é um sonho é um sonho

Um sonho é um sonho é um sonho. Por um dia pensei que sonhos se realizassem. E melhor ainda, que sonhos não sonhados se realizassem. Só porque nesse dia acreditei em deus. Eu nunca tinha falado com ele, é verdade. Nunca tinha tido sequer um colóquio ao pé da cama. E eis que me encontro ao pé da cama em conversa paralela, sonhando com aquilo que apenas vislumbrei sem desejar, que me pareceu como uma promessa – de quem? Por quê? – e que era apenas uma nuvem desenhando formas num céu azul.
Eu amo o etéreo, senhor. Amo a forma que a nuvem faz no céu, uma brincadeira de elfos, do vento, todos que agem para o senhor. Todos filhos do mesmo senhor. Eu, que não falava com deus, não creio no mal, num mal que age pelas pessoas, ou que investe contra o que deus criou. Seria como acreditar que um filho não ama um pai, mesmo que não o conheça, mesmo que não seja o que gostaria que fosse.
O amor entre pessoas, o amor que completa, que investe, que liberta – ah, a liberdade de ser sem amarras, sem fronteiras – esse amor não tem outro sentido senão provar que deus existe. Existe pela transparência do olhar. Existe pela alegria da pele macia, do toque relaxado, da comida viva. O amor é um sonho que não precisa ser sonhado antes. Que não precisa de plano estratégico. Que não precisa ter sentido. Que sentido teria o amor? É para alguma finalidade, o amor? Não. Veio e volta a deus como o ar que respiro, como tudo que há. Como toda beleza, toda alegria.
Estou quase triste e a tristeza não é divina, bem sei. Ela é humana como as fraquezas próprias da carne. Humana e corrosiva. A tristeza é um mal que está aí para lembrar que deus existe. Quem mais para salvar da tristeza um coração que vislumbrou o clarão divino num olhar que passava? Sim, o olhar que passava era divino e capturou meu coração com seu anzol de carinho. Capturou-me, senhor, para quê? Apenas para satisfazer um capricho? Ou porque era para seguir acreditando como sempre, porque se deus existe numa fração de segundo de uma vida inteira então é porque ele sempre esteve lá, sempre estará.
Eu quero acreditar que a tristeza que me ocorre agora é apenas minha imaturidade querendo crescer, sair de casa, tornar-se autônoma, livre de mim. Pois que vá. Hoje eu quero apenas o que me dá alegria. Apenas o que pode ser inteiro, mesmo que ainda não seja. A promessa é um teste para a fé.
Eu quero viver a experiência direta de haver deus no universo só porque posso acordar e sonhar. Não vou desistir de sonhar, nem de me alegrar com todos os lugares comuns, cartões postais, que a janela aberta – já abri irreversivelmente – me traz. Mesmo à noite, mesmo sozinha na cama, ao pé da cama, na minha primeira conversa com deus. Se tudo vem dele, hoje estou voltando um pouco para seus braços que acolhe. Acolhe sim, e então sei que não estou sozinha.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Seria Melhor

Seria melhor, talvez, ser como o rio que passa correndo, sem nunca ficar. Amar como os marinheiros que partem. Ser como o vento que toca tudo e vai deixando seu rastro no movimento das árvores.
Hoje não chove e no meio do azul azul azul e nuvens, pássaros que não se agüentam de felicidade, em vôos alucinantes, fazem uma serenata matutina na minha janela.
A alegria do dia transborda por mim. E eu me deixo ser esse meio entre haver felicidade e sonhar com ela. Deixo que esse dia faça o encontro entre o que nunca sonhora nem nos meus sonhos mais delirantes com a realidade que sabe ser doce e meiga quando quer surpreender.
Logo ali, depois da montanha, tem um vale e depois ainda tem um mar que deve se abrir sem fim na união perfeita de azuis. Daqui ouço o ritmo espumante de suas águas claras batendo nas encostas e sinto a umidade da maresia na pele exposta.
Não sou uma árvore plantada fincando raízes eternas em lugar algum, nem sou o vento que passa frio. Minha vida não parou para te esperar, nem me esperar. Por isso esses encontros de rio de corredeira marcados nas cachoeiras um minuto antes da queda vertiginosa, esses encontros carregados de toda emoção do caminho me fazem quase gritar no meio da praça pública, mas ela não inaugurou ainda.
Enquanto tudo isso passa pela janela aberta, vou ficando, ficando a mão eternamente estendida à espera da tua. Quando enfim puder tocar seus dedos nos meus, vou entrelaçá-los como farei com seu corpo para que fique no meu e eu puder passar como o rio, partir como o vento, você em mim e eu o oceano.