Hoje já é
primavera porque as flores abriram para todo lado. Flores brancas de pitangas.
Flores vermelhas de amaryllis. Até o capim floriu em tufos. A natureza segue
seus fluxos e ciclos, quase indiferente ao nosso passar ou pensar nela. Na mata
ninguém pergunta se um arbusto que não conseguiu virar árvore porque o dossel fez
sombra se ele se sente fracassado por isso. E ele continua lá, criando um
sub-bosque que faz nossa passagem mais difícil ou a paisagem mais complexa e
profunda.
Mas nós,
seres humanos, pensamos e sentimos em palavras. Somos criadores de nós mesmos,
criando-nos no abstrato e no concreto. No fluir da vida, trocaremos todos os
átomos do corpo, todas as células, de modo que quem nasceu não será quem
morrerá.
Nós inventamos
tudo que é certo e tudo que é errado, tudo que é belo e tudo que é feio,
inventamos deus e deusas, a igualdade, as diferenças, a liberdade e o tempo.
Por
duzentos mil anos nós nos escravizamos uns aos outros, achando certo. Há apenas
duzentos anos passamos a achar errado. Mas ainda resolvemos questões de
diferenças de opinião com mortes, violência, manipulação.
É um
processo de transformar o animal que somos em algo mais transcendental, mais
equilibrado, parecido com um avião que corrige a rota e traça o plano de voo no
ar. Mas somos uma frota, não somos uma única nave. Somos bilhões de aviões
corrigindo a rota no meio do céu, ao mesmo tempo. Esbarrando, derrubando,
explodindo, aterrissando, subindo. O que é errado? Todos temos o direito de
errar, de corrigir, de errar, de errar. Por que alguns de nós insistem em
chamar isso de fracasso?
Se o
próprio deus é uma invenção não compartilhada por todos, nesse tempo todo
jamais consensada, e somente diante de um deus haveria os da sua direita e os
da sua esquerda, os certos e os errados, então, como poderemos chamar-nos de
perdidos ou salvos? Vencedores ou fracassados? Quem venceu, venceu quem?
Sob o julgo
da liberdade controlada, seguimos escravos. Sob o domínio do certo e do errado
– de quem? – seguimos escravizados, sujeitos a punições como há tanto tempo
vimos infringindo uns sobre os outros.
Não temos
mais aquela escravidão enorme, explícita, em que os escravos se sabiam sem
direitos, restando-lhes apenas a opção de se rebelar em alguns momentos, e em
que os seus proprietários se sentiam no total direito de debelar tentativas de
fugas.
Não.
Vivemos a escravidão velada com correntes invisíveis chamadas tempo, correria,
progresso, crescimento, sucesso. Como antes, podemos nos rebelar, e tentar uma
fuga, deixar de compactuar dos valores de competição, que nos colocam sempre
acima ou à frente de outras pessoas. Deixar de fazer o papel esperado: sair
correndo em busca do sucesso e do crescimento que está sempre além, que está no
futuro, que está intocável, inacessível, que exige esforço do braço e das
pernas, que exige uma mente cada vez mais calculista, pragmática, fria.
E cada vez
que nos tornamos assim, intelectualizados, represamos os sentimentos, esse
sexto sentido perdido e simplificado, que nos aponta onde dói. Não pode haver
sucesso sem felicidade, nem pode haver felicidade com dor, seja própria ou
alheia, infringida ou auto imposta. Então, a frieza ou indiferença parece ser o
antidoto para seguir em frente. Escravos.
Esse jeito
de ser, agressivo, competitivo, arrojado, talvez nos tenha salvado diante da
natureza e suas forças. Foi preciso dominar animais mais fortes, nas condições
ambientais as mais variadas e inesperadas. Foi importante sair do interior de
uma floresta e andar pelas savanas, rumo ao resto do mundo.
Mas hoje transformamos
em selvas as cidades. Provocamos desastres climáticos, desordens naturais; para
corrigir problemas, criamos tantos outros. Não existem mais animais selvagens
nos nossos caminhos, a não ser nós mesmos: outros de nós.
Na escala
de progresso que criamos, inventamos a igualdade, mas dissemos categoricamente
que, quem tem mais, pode mais. Que, em detrimento dos direitos, alguns têm
poder sobre outros. Que alguns podem mais, porque são bem-sucedidos. E os que
não podem, é porque não se esforçam. Num mundo de recursos limitados, se alguém
tem mais, necessariamente outros terão menos. Mas não importa. Esse modelo é
inquestionável. Aceita-lo é entrar para um presídio do qual não sairá jamais.
Exceto pela
rebeldia. Mas a rebeldia também é um recurso do modelo: promove a guerra, vende
armas, polariza ainda mais.
Então,
talvez só nos reste, como Gandhi, a rebelião da paz: o agir feminino. Sem
competições, sem exaltação da voz, sem o uso da força, sem mecanismos
inibidores, debilitadores, restritivos. O feminino da mãe que acolhe os
defeitos, os erros. O feminino que defende os fracos – porque têm direito em
sê-lo. O feminino que vai além da seleção natural do mais forte. O feminino do
igual, sem comparativos, sem qualitativos, sem defesa.
Talvez só
nos reste como libertação, não aceitar as regras impostas para o sucesso. E, na
nossa marcha para a transcendência de quem somos, parar para ajudar quem não
possa caminhar junto. Ouvir quem não sabe falar. E tentar explicar para quem
não consegue entender. Parar e ser contemplativo. Não se prender ao tempo que
passa. Não se ater ao que não fez ainda. Fazer poesia. Fazer arte. Soltar os
sentidos e sentimentos da prisão em que se encontram num peito que não sabe
lidar com as ideias que tem. Sobretudo, a libertação se dará quando entendermos
que não há divisão entre corpo e alma, entre coração e mente, entre emoção e
razão.
Que somos
um todo.