segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Era de Aquário

 

Muito já se disse sobre a Era de Aquário. Um momento de renovação, mudança de enfoque do pessoal para o coletivo, responsabilidade ecológica, social e espiritual, igualdade, fraternidade e liberdade. O que não se disse ainda é que ela vai colocar em xeque todas as formas religiosas e moralizadoras porque exatamente fala de autorresponsabilidade, autoconsciência e liberdade. Vai questionar a necessidade de haver gurus, mestres, guias espirituais, pastores ou quaisquer tipos de sacerdotes, e toda classe de semideuses para que cada um de nós atinjamos nossa iluminação. Mas, acima de tudo, ela vem dizer que qualquer um, mesmo o mais reles dos humanos, mesmo o mais desgarrado do rebanho, aquele que fez ouvidos moucos aos ensinamentos sagrados, mesmo esse pode atingir a iluminação.

A Era de Aquário já começou há muito tempo. Nenhuma forma de mudança chega repentinamente, como um meteoro, para acabar com uma cultura inteira de patriarcado, de moralização, de escravidão de homens pelos homens, de exploração, e de concentração de riqueza. Nada profundo pode começar de repente e se instalar de repente num nível social. Mudanças, mesmo as revolucionárias, foram engendradas internamente, foram se formando como uma semente germina – você tem ideia da quantidade de energia necessária para uma semente germinar? – mudanças irrompem a superfície visível depois de tomarem forma num plano mais amplo.

Já não temos escravidão formal – ainda mantemos algumas formas lícitas, tais como os sistemas de castas, hierarquias sociais e de gênero, cobrança de impostos, propriedade privada, a servidão doméstica – mas não mais a escravidão opulenta e escrachada. Foi um início.

A história sempre foi contada pelos vitoriosos, opressores, invasores, colonizadores, homens. A Era de Aquário é a subversão desses valores a partir de quem não teve voz ou teve sua boca calada, suas mãos controladas e seus pés atados, não porque clamem justiça ou se mostrem como vítimas do sistema, mas porque se tornam protagonistas quando os deuses não são mais necessários, quando os mestres não mostrem mais seu caminho, quando reivindiquem para si a maestria sobre suas próprias vidas.

Muitas pessoas ainda estão clamando pelas maravilhas da Era de Aquário. Até que ela comece a questionar seus direitos herdados até aqui.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A Felicidade não é uma Ilha

 A praia me parece infinita. Para todo lado água, para todo lado areia. Andando, vou marcando o caminho com minhas pegadas, pés descalços, destemidos. Vou caminhando olhando para o horizonte sem fim. Tanta liberdade e tantas possibilidades, que até parece que caminho para lugar nenhum.

Recolho algumas conchas, galhos retorcidos, algas coloridas. Um caranguejinho corre para a água. Acompanho com a cabeça. Parece que de repente, no horizonte, surge uma ilha. Olho com atenção, parada, e uma onda inesperada me atinge em cheio.

Algumas conchas se vão com a onda que já retorna para o mar, e me molho um bocado, refrescante. Alguém passa correndo, espirrando o resto da onda que não me atingiu, e o vento espalha toda água levantada. Quem passou? Eu conheço? Eu não vi. Estava entretida demais olhando o horizonte tentando desvendar o mistério longínquo, e só me dei conta da água respingando, do vento cobrindo meus olhos com os cabelos.

Olho de novo, não está mais lá. Se foi. Uma ilha não se vai. Terei visto realmente? Era um barco? Estará encoberta pela maresia? Sem resposta, firmo o olhar. Onde? Ali onde gaivotas revoam. Ali onde uma nuvem toca o mar. Não sei mais. Perdi.

Volto a caminhar pela areia. Vou distraindo novamente, chutando areia com os dedos dos pés. Então, está lá outra vez, a ilha. Sigo com o corpo a direção que os olhos apontam. Sigo com o corpo entrando na água, agora sem me importar com as ondas que insistem em vir aos montes, aos transbordões. Já deixei as conchas caírem, já abandonei os galhos, levados pelas ondas, já estou nadando de braçada sem perder de vista a ilha. Ela aumenta aos poucos, parecendo mais próxima.

Não olho para trás, mas já passei a arrebentação e estou seguindo num correnteza que parece querer me ajudar no percurso. A ilha cada vez mais próxima, maior, mais atraente.

Então, como se fosse uma armadilha, ela me fisga, as ondas carregam meu corpo para sua praia, arremessada na areia. Recupero o fôlego, os músculos trêmulos do esforço, recompensados com a chegada. Tudo em volta é areia e mar. Para além da praia, uma mata que começa baixa e sobe em árvores, rochas, me impedindo de ver o outro lado.

Onde cheguei? Para a vida que almejei? Para o sonho que me impulsionou até agora? Para a felicidade? Não sei dizer. Tudo parece igual. Tudo parece o mesmo. Olhando atenta, parece que voltei para a praia de onde saí. Se procurar com atenção, acho as conchas que joguei na areia antes de me atirar ao mar.

Os braços e pernas ainda tremem pelo esforço. O cansaço é visível no peito. A alegria que me encontrou de eu ter atingido a ilha, agora parece um sorriso bobo na boca. Onde estou? Não cheguei? Foi em vão?

Olho de volta para o lugar de onde vim. Olho e é uma ilha no horizonte.

domingo, 15 de março de 2020

Quem é dono do seu tempo?


Quem é o dono do seu tempo? Quem decide o que é prioritário para você? Quem define o que é melhor para você? Porque, se há alguma coisa realmente sua nessa vida, essa é o seu tempo. Talvez, da mesma forma que o amor esteja na base dos sentimentos, o tempo está na fonte das ações.

O que você tem feito da vida é exatamente o que você tem feito do seu tempo. O que dá tempo de fazer e o que não dá? E por que não deu? Era importante? Realmente? Esse movimento externo, uma infinidade de compromissos, é realmente necessário? Mas se todos são resultados de suas escolhas, por que alguns dão e outros não?

A liberdade das pessoas foi uma necessidade fundamental do mundo moderno. Não haveria a sociedade que vivemos hoje, nem o sistema financeiro atual se não houvesse liberdade, se algumas pessoas tivessem que ser tratadas como escravas, alimentadas, cuidadas as suas doenças, que se tivesse que pensar em tudo para sua existência. Um escravo é um ônus, apesar de ser um bem, precisa sobreviver para continuar exercendo suas funções de escravos e fazer valer os investimentos.

Mas, por outro lado, a liberdade total é uma ferramenta que impede controles. Portanto, eis que uma solução para deixar de se preocupar com a sobrevivência dos escravos é dar-lhes liberdade relativa mantendo o controle sobre condições fundamentais de modo que essa liberdade nunca seja efetivamente exercida.

Liberdade sem tempo para escolher, refletir e agir é apenas desamparo, uma esteira de academia onde, por mais que você corra, não chega em lugar algum.
A farsa da liberdade é uma das melhores ferramentas de controle já implantadas na humanidade: melhor que qualquer arma nuclear – porque não oferece risco ao poder de exercê-lo. Essa farsa também pode ser chamada de escassez. Quando falta o básico não se tem tempo de pensar no fundamental.
Pessoas que estão em busca de alimentar-se não têm tempo de pensar nas suas deliberações, decisões, na vida enfim. Quais serão suas escolhas? Não há. A vida na escassez é uma forma brilhante de manter escravos sem precisar se preocupar mais em alimentá-los e em como sobreviverão: pois, por não serem mais bens que exigem cuidados, se não sobreviverem, não empobrecerão ninguém.

Além do mais, a escassez é autoimune. Ela se corrobora, se nutre de modo a permanecer na pequenez, ela se reforça ao olhar no espelho: a imagem vista é do fracasso, um conceito amplamente disseminado do que é bom e desejável e aquilo que você não tem com seus esforços. Todo o sucesso é medido por bens que você corre muito por adquirir, sejam bens materiais que indicam seu status social, sejam bens imateriais como conhecimento e cultura. No entanto, a pirâmide de que você faz parte e mantém diariamente com muito empenho, correndo na esteira, é fortemente estruturada no tempo. A escassez não é de condições, mas de tempo. Aquilo que você persegue como um objetivo à frente é algo que sempre estará à frente, longe do seu braço pois você está firmemente preso por uma corda chamada tempo.

Onde você pretende chegar sem tempo? O sistema assim estabelecido não tem como falhar nem como ser derrubado. Dentro dele você só se esforça muito, mas sempre o manterá intacto.

Como subverter esse sistema? Parando. Parando de correr atrás de tudo que você pensa que está à sua frente, num impossível amanhã. Parando de acreditar que tudo que você tem é pouco e tudo de que precisa está fora de você. Parando de dar prioridade para tudo e qualquer coisa externa, seja essa coisa algo tão louvável como filhos, casa, emprego, casamento, contas para pagar, comida na mesa. Porque essas coisas todas estão ali exatamente para você estar aí: na prisão.

O tempo é uma medida interna, mental, como tudo. A escassez só existe na pirâmide. Ela é uma invenção muito boa para os que estão na ponta; no entanto, a natureza não é piramidal. Você quer e realmente se dispõe a exercer seu tempo, deixando de se sentir desamparado? Para sair dessa pirâmide há que assumir todos os riscos por si e parar de se justificar. E isso é um crescimento para dentro, que exige prioridade para si. E muita coragem.


segunda-feira, 6 de maio de 2019

a borboleta e a tarde


Ele era mais velho, mais calmo, e era padre. Ela era Madalena. Eram apaixonados reciprocamente em silêncio. Jamais nenhum demonstrou o seu amor ao outro; ele por fé e crença no conhecido amor a cristo; ela pela descrença em si, por pouco entender do amor.

Quando se encontravam na igreja ou na caridade comum, era com sorriso sem graça que ela o olhava, quase às escondidas. E ele, pelo que se esperava de um padre, retornava com um olhar paternal, protetor.

Assim ela teve tempo de crescer, teve tempo de viver outros amores, outras rodas. A liberdade, que estava em seu dna, em sua herança, a levou para longe, atravessou o mar, o oceano. Foi olhar outras paragens, foi pisar outras areias.
Ele insistentemente ficou a mirar o horizonte imaginando que ventos balançavam os cabelos dela, talvez soltos, talvez caídos nos ombros. Ficava contemplando o nascer do dia por trás do violeta da madrugada, a se pegar sozinho na sua rotina escolhida.

Ela foi militar, sonhar, perder e ganhar. Ele foi militar, sonhar, ganhar e perder no mundo. Como se fossem múltiplos, plurais, imprecisos, se deixaram levar um do outro por fraca convicção. E o mundo girou, como uma borboleta que entra na praia em direção ao mar alto, sem saber ainda o que é morrer no mar.
Ela voltou um dia.

E, um dia, eles se reencontraram.

Ele a achou muito mais linda, sob sua fé já desgastada. E ela já não respeitava limites.

Encontraram os olhares no final da tarde, quando quase não havia luz, mas um brilho difuso, vindo de lugar nenhum, talvez do outono, mas que conseguia iluminar seus rostos. Ela sustentou uma alegria indisfarçada na boca.

O que nele esse tempo todo foi negado, agora aflorava sem culpa, um vazio no estômago, um torpor na cabeça. Pensou que desmaiava e não pensou mais. Deixou-se levar pelo sangue que lhe corria nas veias em ritmo frenético.
Foi ela quem deu o primeiro passo, a primeira palavra, que estendeu a mão. Ele, contagiado por uma aragem que subia pelos pés arrepiando sua pele, se deixou tocar.

O tempo que afasta pessoas, que esquece as mágoas, apaga dores, aumentou a vontade dos dois. Fez saber que não haveria mais tempo pra depois. Fez unir as mãos, num enleio, os olhos se firmaram, e então as bocas chegaram. Uniram-se num beijo como se nada fosse para sempre, mas naquele dia era.



domingo, 9 de setembro de 2018

A nova rota


Hoje já é primavera porque as flores abriram para todo lado. Flores brancas de pitangas. Flores vermelhas de amaryllis. Até o capim floriu em tufos. A natureza segue seus fluxos e ciclos, quase indiferente ao nosso passar ou pensar nela. Na mata ninguém pergunta se um arbusto que não conseguiu virar árvore porque o dossel fez sombra se ele se sente fracassado por isso. E ele continua lá, criando um sub-bosque que faz nossa passagem mais difícil ou a paisagem mais complexa e profunda.

Mas nós, seres humanos, pensamos e sentimos em palavras. Somos criadores de nós mesmos, criando-nos no abstrato e no concreto. No fluir da vida, trocaremos todos os átomos do corpo, todas as células, de modo que quem nasceu não será quem morrerá.

Nós inventamos tudo que é certo e tudo que é errado, tudo que é belo e tudo que é feio, inventamos deus e deusas, a igualdade, as diferenças, a liberdade e o tempo.

Por duzentos mil anos nós nos escravizamos uns aos outros, achando certo. Há apenas duzentos anos passamos a achar errado. Mas ainda resolvemos questões de diferenças de opinião com mortes, violência, manipulação.

É um processo de transformar o animal que somos em algo mais transcendental, mais equilibrado, parecido com um avião que corrige a rota e traça o plano de voo no ar. Mas somos uma frota, não somos uma única nave. Somos bilhões de aviões corrigindo a rota no meio do céu, ao mesmo tempo. Esbarrando, derrubando, explodindo, aterrissando, subindo. O que é errado? Todos temos o direito de errar, de corrigir, de errar, de errar. Por que alguns de nós insistem em chamar isso de fracasso?

Se o próprio deus é uma invenção não compartilhada por todos, nesse tempo todo jamais consensada, e somente diante de um deus haveria os da sua direita e os da sua esquerda, os certos e os errados, então, como poderemos chamar-nos de perdidos ou salvos? Vencedores ou fracassados? Quem venceu, venceu quem?

Sob o julgo da liberdade controlada, seguimos escravos. Sob o domínio do certo e do errado – de quem? – seguimos escravizados, sujeitos a punições como há tanto tempo vimos infringindo uns sobre os outros.

Não temos mais aquela escravidão enorme, explícita, em que os escravos se sabiam sem direitos, restando-lhes apenas a opção de se rebelar em alguns momentos, e em que os seus proprietários se sentiam no total direito de debelar tentativas de fugas.

Não. Vivemos a escravidão velada com correntes invisíveis chamadas tempo, correria, progresso, crescimento, sucesso. Como antes, podemos nos rebelar, e tentar uma fuga, deixar de compactuar dos valores de competição, que nos colocam sempre acima ou à frente de outras pessoas. Deixar de fazer o papel esperado: sair correndo em busca do sucesso e do crescimento que está sempre além, que está no futuro, que está intocável, inacessível, que exige esforço do braço e das pernas, que exige uma mente cada vez mais calculista, pragmática, fria.

E cada vez que nos tornamos assim, intelectualizados, represamos os sentimentos, esse sexto sentido perdido e simplificado, que nos aponta onde dói. Não pode haver sucesso sem felicidade, nem pode haver felicidade com dor, seja própria ou alheia, infringida ou auto imposta. Então, a frieza ou indiferença parece ser o antidoto para seguir em frente. Escravos.

Esse jeito de ser, agressivo, competitivo, arrojado, talvez nos tenha salvado diante da natureza e suas forças. Foi preciso dominar animais mais fortes, nas condições ambientais as mais variadas e inesperadas. Foi importante sair do interior de uma floresta e andar pelas savanas, rumo ao resto do mundo.
Mas hoje transformamos em selvas as cidades. Provocamos desastres climáticos, desordens naturais; para corrigir problemas, criamos tantos outros. Não existem mais animais selvagens nos nossos caminhos, a não ser nós mesmos: outros de nós.

Na escala de progresso que criamos, inventamos a igualdade, mas dissemos categoricamente que, quem tem mais, pode mais. Que, em detrimento dos direitos, alguns têm poder sobre outros. Que alguns podem mais, porque são bem-sucedidos. E os que não podem, é porque não se esforçam. Num mundo de recursos limitados, se alguém tem mais, necessariamente outros terão menos. Mas não importa. Esse modelo é inquestionável. Aceita-lo é entrar para um presídio do qual não sairá jamais.

Exceto pela rebeldia. Mas a rebeldia também é um recurso do modelo: promove a guerra, vende armas, polariza ainda mais.

Então, talvez só nos reste, como Gandhi, a rebelião da paz: o agir feminino. Sem competições, sem exaltação da voz, sem o uso da força, sem mecanismos inibidores, debilitadores, restritivos. O feminino da mãe que acolhe os defeitos, os erros. O feminino que defende os fracos – porque têm direito em sê-lo. O feminino que vai além da seleção natural do mais forte. O feminino do igual, sem comparativos, sem qualitativos, sem defesa.

Talvez só nos reste como libertação, não aceitar as regras impostas para o sucesso. E, na nossa marcha para a transcendência de quem somos, parar para ajudar quem não possa caminhar junto. Ouvir quem não sabe falar. E tentar explicar para quem não consegue entender. Parar e ser contemplativo. Não se prender ao tempo que passa. Não se ater ao que não fez ainda. Fazer poesia. Fazer arte. Soltar os sentidos e sentimentos da prisão em que se encontram num peito que não sabe lidar com as ideias que tem. Sobretudo, a libertação se dará quando entendermos que não há divisão entre corpo e alma, entre coração e mente, entre emoção e razão.

Que somos um todo.

sábado, 14 de julho de 2018

No final do mundo


No final do mundo nos encontraremos, com um pouco de sorte, com um sorriso no rosto. Sempre é muita sorte encontrar um sorriso no rosto quando o mundo acaba. Mas, se assim for, nosso encontro será diferente dos outros todos de nossas vidas, porque será definitivo. Nada é definitivo na vida, nada é tão supremo que corte como um bisturi ou abismos separando dois mundos. Essencialmente o mundo é um só.

Então, naquele momento em que nada mais passa a ter importância, eu olhe para você e pense no que fomos e no que desejamos ter sido. Porque, como um rio, a vida escorre pelos caminhos possíveis, e despenca pelos impossíveis. Saberei entender o que fui buscar e o que encontrei, sempre dois tempos nos tempos dos amantes.

Até lá, não levarei comigo senão o pó do caminho. Estradas poeirentas no inverno e lamacentas no verão fazem dessas coisas conosco: marcas arrastadas que desaparecerão tão logo passe o próximo vento, desses ventos que apagam o gesto perdido na distância. Ficarão somente as pegadas vislumbradas pelo último olhar antes de levantar a cabeça e seguir em frente.

Sim. O mundo há de acabar num derradeiro momento, mas enquanto isso, vou perdendo meu tempo olhando para as montanhas de manhã quando acordo, ou ouvindo o farfalhar das folhas umas nas outras, inocentemente. Dá para sentir o aroma das flores que amanhecem o orvalho da madrugada quando se anda ao lado delas sem fazer barulho. Elas retribuem com um aceno leve, cúmplice, discreto, muito simples, quase imperceptível. Eu vim buscar essa vida.

Mas sabendo que nos encontraremos no final do mundo, ficarei desapercebida de sua presença nos cotidianos que se intercalarão até lá. Vou riscar com os pés na terra um pouco da suavidade do momento. Vou me entregar a esses prazeres que são os dias que escolho não fazer nada ou fazer tudo ou fazer e desfazer. A vida é uma liberdade que se escolhe nos ciclos que se sucedem.

Sim, algo ficou de tudo, na verdade, de tudo fica um pouco. Talvez uma poesia escrita na retina, talvez uma pedra que fique no caminho. Mas nenhuma, nem a poesia nem a pedra, é quem sou agora, depois de tê-las passado na pele, a rudeza de uma e a realidade da outra.

No final, nada tem tanta importância que nos faça parar a estrada ou sentar para recuperar forças. A força está em seguir em frente, e a deixar-se expor ao sol, sem medo, com ou sem dor. Eu não gosto da dor de jeito algum, parece inumano, parece que não é próprio dos neurônios, mas sentir é isso. Quem escolhe viver o sentido da vida precisa passar pela dor necessariamente. Precisa arranhar as unhas nas encostas dos barrancos tentando galgar um passo acima, ou tentando segurar-se para não escorregar. E qual é a verdadeira diferença entre a dor e o prazer? Um consentimento, talvez.

Se posso dizer o que farei ao encontrar você no final do mundo, então já fica aqui o meu recado e não precisaremos nem trocar palavras ou gestos, porque o que quer que eu aprenda até lá, não importará a mais ninguém, o que quer que eu mude nesse tempo, é apenas uma escolha minha. Dispo-me de todas as palavras que permearam nossos encontros, de todas as possibilidades, e também de todos os acertos e erros.

Assim, desnuda, deixo nessa beirada da estrada, perto da cerca para não atrapalhar mais ninguém, deixo seu nome gravado na efemeridade do pó, o último resquício ainda preso na minha bagagem. Depois, deixo-me levar pela aragem leve feito pólen indo fertilizar outras flores.

domingo, 1 de julho de 2018

Um exercício para estar junto


Estar só é uma realidade ao mesmo tempo libertadora e assustadora. Porque, se de um lado você não deve satisfação a ninguém, por outro não é tão ruim assim ter alguém que cuide de você, ou que você tenha que cuidar. A liberdade mesma é assustadora. Agora você pode fazer o que quiser: e o que quero mesmo?

A mim parece que a vida toda é um misto de dores e alegrias que se sucedem ou se permeiam, se confundem. Às vezes me emociono em dizer “eu te amo” como se aquilo fosse uma avalanche descendo como lágrimas dos olhos. Às vezes um adeus é repleto de silêncio e ar seco, não ecoa, não reverbera, não incide. Mas pensa bem: o problema é do ralador ou do queijo? O queijo se esfola todo, mas não dá para culpar o ralador, afinal, ele é um ralador.

Sempre pensei na dor como algo entre lutadores, alguém que acerta outro no seu descuido. Isso é muito fácil quando parece que é o outro o responsável pelas dores que surgem. Agora, viva sozinho e me explique quem foi que deixou acabar o gás, o café ou a pasta de dente. Quem deixou a luz acesa, ou esqueceu de dar a descarga. Esse é outro aspecto do “viver só” que assusta: não tem mais ninguém para pôr a culpa.

Então, aprender a viver só é um grande passo para saber conviver com outras pessoas. Porque se você estiver esperando que vai poder deixar de fazer as coisas que tinha que fazer por falta de mais alguém, então encare: convivência para você é conveniência. Fala sério.

Ter um sócio, na vida ou nos negócios, não é largar tudo na mão do outro, porque isso é um peso, não é sociedade. Sociedade deve ser um movimento em que todos ganhem, não apenas um, detentor do poder de decisão ou da estabilidade. É muito cômodo colocar sua vida nas costas de outra pessoa e se isentar de tudo que der errado. Porque errar é inerente a quem age, mas quem não faz nada não está imune. Às vezes o erro esteve no ficar calado, omisso.

É muito difícil encarar os próprios erros, mas mais difícil é se perdoar. Eu sei. Por isso a dor. Dói muito admitir, e não é por orgulho, só, é que recebemos uma educação tão moralizadora que parece um pecado capital errar. Parece que só nos restará o inferno, que devemos pagar pelos erros, aquela coisa toda dramática e fatalista.

E afinal, o que é acertar? É o sucesso? Mas sucesso é tudo, todo o resultado atingido é um sucesso. Não ganhar em primeiro lugar é fracasso? Bem, a mim parece que inventamos um sistema de tortura e estresse quando colocamos elementos da vida em disputa. Porque a vida é uma história com fim previsto e certo. Morrer é certo. Certíssimo. E tem tantos caminhos possíveis para chegar lá que as escolhas confundem um indivíduo, imagine se ele está indo acompanhado e ambos tenham que decidir juntos o traçado.

Definitivamente, para mim, o pior de um relacionamento é quando existe um medo – explícito ou implícito – de errar. E fica aquele jogo de empurra-empurra, deixa-que-eu-deixo, e tudo mais. Talvez por isso o amor de amigo não seja problemático: na relação de amizade existe a cumplicidade, mas não a sensação de que, se o outro errar, vai levar você junto. Você não quer ver seu amigo mal e, ainda assim, aceita nele o direito de fazer o que quiser, e de que, muitas das vezes, ele vai bater com a cara no muro. Você reconhece a individualidade dele. No amor afetivo é muito fácil ultrapassar esses limites e se entender como uma unidade. De almas gêmeas a irmãos siameses. E a dor.

Uma coisa eu aprendi: a dor é um erro. E se estiver doendo muito, tenho que mudar, se quiser que pare de doer. Essa é uma decisão minha e de mais ninguém. Não é o carro que está indo na minha frente que tem que aumentar a velocidade, sou eu que tenho que acelerar e sair de trás – se tiver motor. Se não tiver, não adiantará brigar.

Sim. Estar só não é uma solução, é apenas um passo. Nunca vou desistir de me relacionar com alguém, e eu ia dizer com alguém em especial, mas no final, todas as pessoas que você escolhe para se relacionar são especiais (exceto para os cínicos). Porque, sendo a vida boa na essência, quero compartilhar isso com outra pessoa.