domingo, 29 de novembro de 2009

Encontro bilhetes

Encontro bilhetes pela casa do tempo em que era par e o amor era uma ilusão que pairava no ar. Bilhetes que hoje me premiam com uma emoção pensada perdida. Perde-se a paixão e muitas vezes com ela vão-se as promessas – exageradas – de amor eterno. Todo o cuidado do mundo numa armadura de proteção para que não morra um sentimento que, por ser sentimento, passará, perderá a força, irá se transformando em outro.

Esse era um tempo em que orgulhosamente eu ostentava ser a primeira pessoa do plural. Quem era eu? O que queria? Não importava. O que importava era que nós não gostamos, nós não íamos, nós fizemos, nós tínhamos, nós pensamos. Era ofensivo usar o singular como se roubasse o papel do outro na minha vida. Era injusto e até poderia levar a noites inteiras de intermináveis discussões sobre o par, sobre haver amor em atitudes independentes.

Não, não poderia haver amor em não precisar do outro. Não haveria amor em quem sabe o que quer sem pensar no outro. Era como estar desidratado; era como estar doente. Amor era necessidade de alguém, não um estado de ser. Amor era o nós somos, como ser coletivo. Ai, eu vivia um trem e não sabia.

As emoções do que foi e não foi, do que podia ter sido e não foi, as lembranças dessas emoções vividas num tempo marcado pelos ponteiros do relógio, como marcação de palco, serto e não certo, essas coisas todas batendo no meu peito agora soam como um sino reticente ao longe que faz vibrar ainda uma caixa toráxica oca. Mas não fazem brilhar os olhos, não fazem iluminar as faces.

Fico inquieta com a percepção de que, despida do outro, esteja irremediavelmente nua perante a minha vida. E nua e consciente, serei expulsa do paraíso para onde voltei sendo inteira novamente. O paraíso é um lugar para seres iluminados e não para os que fazem sombra.

Então, num rompante, arremesso ao fogo todos os bilhetes achados pela casa e todos que acharei ainda em livros e gavetas. Queimo-os para sempre. Porque se não há amor eterno onde não há chama, pelo menos haverá chama onde não há mais amor nem terno.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Imagine um pássaro

Imagine um pássaro dentro da sua casca de ovo, apertado, molhado, espremido e sem saída. Fica tão imobilizado que quase não consegue pensar. Não pode levantar a pata, não pode saber a extensão de sua asa, não estica o pescoço, a cabeça baixa de encontro ao peito.

Ninguém pode fazer nada por ele. Não adianta rezar, pedir ajuda, ninguém vai ouvir. Não vai cair um raio do céu e abrir espaço para ele sair. Não vai acontecer nenhuma mágica, nada especial, nenhuma graça dos deuses. Se ficar esperando, suas penas irão crescer e ficará ainda mais apertado.

Talvez ele pense por que isso está acontecendo com ele. Talvez se pergunte como tudo isso começou. Terá errado em algum momento? É um castigo? Saberá que ter crescido foi a causa do aperto? Quando e como as coisas melhorarão? Haverá saída? Ou passará o resto da vida assim, esmagado pelo seu próprio crescimento? Conseguirá sonhar com o ar puro e frio que sopra lá fora? Conseguirá vislumbrar que perigos ainda o rondarão? Terá medo?

No entanto, lentamente vai crescendo nele uma força que lhe vem da raiva de estar tão impotente e quando menos espera ela o assombra com um impulso mortal, fazendo-o bater-se contra as paredes de sua prisão, a tal ponto que ela começa a se romper. E com tal força ainda ele se arremete que acaba por destruir o que era também sua proteção.

Desamparado, tonto e confuso, vê cair em torno suas amarras e um vento o faz perceber que tem penas molhadas em seu corpo. Abre os olhos ofuscados, não entende nada, mas pode se mexer. Estica a cabeça para além do peito e em frações de segundos compreende como o mar se abre para alguém em busca de liberdade.

Então, imagine um pássaro próximo de dar seu primeiro vôo. Se deus criou a vida, agora ela não precisa mais de deus, só precisa de si mesma.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

a quem me chama

Sim, tenho orgulho de mim. Inteligente, perscrutando os sentimentos mais íntimos em busca de significados. E sentimento tem sentido? Gosto de ver quem sou refletida no espelho que o vidro da janela faz com a luz do dia. Mas, agora que é noite, quem sou? Não posso dizer que gosto de mim sem ferir meus próprios sentimentos de manter-me ofuscada, eclipsada por algo mais brilhante, mais empolgante, mais radiante e sedutor.

De quem gosto suprime-me de alento apenas por existir, distante, ignorante de mim, mas olhando-me casual e rapidamente. Eu não conquisto mais. Eu não caço nem capturo mais. Passei a ser o vento que assiste a tudo e por tudo passa aquecendo com seu sopro frio.

Converso com gatos e com eles resisto bravamente à noite que afunda, atrai-me com cantos de sereia gregoriana, não mergulho, ao invés, fico à beira olhando, olhando, olhando. Se o tempo passa, não amanhece. E sentada à beira, mantenho-me apenas atenta aos sons que o vento faz ao passar por mim.

Sim, sim, eu sei que esbarro em um estado de ser pegajoso e grudento, escuro e profundo, que não entendo e não localizo, parece circular em meu sangue. Parece ser o interior de minhas células. Esbarro nesse que sou eu transformada em espectro, transportada em minha alma, inúmera, olhando, pensando, sentindo, ao mesmo tempo um amontoado de tons e sons. Não faço música, mas me salvaria. Faço ritmos titubeantes e divagantes entre um movimento e outro das minhas mãos. Qual o ritmo do coração agora? De vagar, devagar, divagando.

Minhas noites não são de sonhos. Sonho acordada a maior parte do tempo. Sonho o meu ritmo escolhido aleatoriamente diária e cotidianamente. Sonho o sonho de todos os tempos, o sonho da vida toda. Sonho grande para ter o que me ocupar o dia inteiro. Sonho os amores impossíveis porque eles são para a vida toda. Sonho sem acordar, sem acreditar, no entanto. Já me basta que faça isso o dia todo, à noite tiro para dormir apenas.

E agora que é noite, velo incandescente o meu dormir furtivo e falso. Velo hoje que não tem lua para não precisar ficar aqui quando for lua cheia. Eu sou um vagar de luz no meio da noite e de dia, despercebida, vivo a glória anônima de amar em silêncio.

Mas o que digo? Não existe glória em ser anônimo, não existe sentimento se não houver expressão, como me reconhecer sujeito amante ou amadora se não imprimo nos gestos o meu desejo profundo? O que desejo, esse sim, é o que me transforma. E me transformo naquele que desejo, torno-me objeto de meu desejo, eu mesma esquiva e sedutora, hesitante. (toca o telefone insistentemente, atenderei o seu chamado, coração?).

domingo, 22 de novembro de 2009

Não acredito em Deus

Eu não acredito em deus. Em um deus onipresente, onipotente, vingativo, humano. Tornado homem de tanto julgar. Tornado carne de tanto ser pensado por homens. Que consciência tenho do meu coração que bate, bate automaticamente em resposta às emoções mais estranhas e mais comuns que posso ter? Que consciência posso ter das minhas células transformadas em meu corpo, trocadas e descartadas com o passar do tempo, até que me canse e pare simplesmente.

Não, deus não pode ter respostas humanas, escolhas humanas, não pode estar em toda parte em todo o tempo. Não pode me ver e saber de mim e de você ao mesmo tempo. E se assim fosse, o que saberia? Para que saberia? Se não interferiria nos meus caminhos, nas minhas escolhas. Se não mexeria em nada meus caminhos tortos e curvos.

Eu sou uma estrada cheia de bifurcações e saídas, muitas e muitas entradas e várias porteiras. Como me seguir? Como me acompanhar? Sigo sozinha a maior parte do tempo porque meu tempo é diferente. Eu o conto por pulso e não por segundos. A cada pulsar sou e não sou. Uma estrada por abrir no meio da mata, uma picada aberta distantemente, quase uma lembrança, quase um rascunho. Mas um caminho que segue adiante. Decidido e tímido, longo e curto.

Eu não acredito em um deus que não conta histórias para crianças, que não conta que sonhos teve à noite, que gosto tem o chocolate ou que cor são os olhos fechados de um gato. Andando no meu quintal, acredito mais nas plantas que brotam, nas árvores que crescem, nas flores que se dão de graça, nas abelhas zumbindo por todo lado. Acredito no silêncio das raízes penetrando a terra. Acredito na luz que vem do vermelho e verde confundidos na primavera. Acredito no sangue que corre nas minhas veias e acredito que tudo isso está ligado por um fio invisível. Invisível como a palavra dita, como uma história contada. Deus é um fio invisível.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Quero voltar a ser índio

Quando tudo isso passar, vou voltar para a vida que tinha. Vou ter um filho com um bravo caçador que não deixará faltar alimento em casa. Vou voltar a mascar milho verde para fazer a aguardente que tomaremos todos reunidos à noite em torno da fogueira.

Quando tudo isso passar e me livrar das mesquinharias cotidianas e urbanas, vou me sentar debaixo da sombra de um jatobá, vou comer goiaba, sentir o perfume da flor da jabuticabeira, vou dançar na lua cheia refletida no espelho d'água. Lá Iara irá me acolher porque não julga, ela que é a grande mãe, me aceitará de volta com a alegria que não tenho visto.

Quando tudo isso passar e o inferno for uma lembrança nebulosa na minha memória, vou me reencontrar comigo e me perdoar. Vou saber que vivi pela fuligem na pele, pelo pó da estrada espalhado pelo corpo todo. Vou, por fim, entender o que aconteceu e que escolhas me levaram para esse caminho de ferro e duro, sem saída.

Quando tudo isso passar e a dor não for mais que uma cicatriz velha tatuada no peito e o sol amanhecer claro e transparente no horizonte, vou me despir, vou me pintar de vermelho, me adornar de penas coloridas, dormir ao relento, vou festejar com os meus a volta à vida como o nascimento de um filho desejado, amado.

Enquanto isso, vou sobrevivendo da água que purifica e do ar que renova, seguindo a vida interrompida a que voltarei amanhã, se eu pudesse só acordar amanhã...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Nesses tempos do cólera

Nesses tempos do cólera, tenho acordado de manhã, aberto a casa toda, tomado café com rosca caseira e manteiga macia, para deixar os bichos saírem e os ares entrarem. A noite foi de descanso e suor, então, o canto dos pássaros entrando pela casa faz um limpar necessário. Não consigo, no entanto, segurar que moscas perdidas entrem também. Ou uma ou outra abelha enfeitiçada e, que seja, borboletas apaixonadas brancas que em outra fase comeram todo meu nastúrcio.

Não tem sol. Mas entrevejo por trás do nublado geral que é ele o responsável pelo calor e pela sombra dispersa. Trabalho sem me importar com a bagunça do entorno. Trabalho na cozinha, pois que o que faço agora é fazer germinar os grãos acumulados no inverno. Os grãos seminais que sobraram do inverno. Os armários abertos também para que veja o momento de saídas e possibilidades onde quer que olhe.

Com o passar das horas, o calor mais intenso do fim da manhã, gatos com preguiça largados pelos lados de fora, ventos entre folhas das árvores quebrando a quietude, trabalho. Posso sentir o sangue fluindo em batidas ritmadas, piano ao fundo – sempre um piano porque minha infância pedia um piano de música de fundo – reconheço o canto do sabiá entre todos os sons. Minha vida começou a ser feita de terra quando todos os medos vieram e me assolaram num dia só. Se tivesse sido de noite, teria sucumbido.

Mudar requer força que jamais pensei ter, por mais mudanças que tenha feito ao longo do caminho. Quantas encruzilhadas, quantos atalhos, longos caminhos curtos, curtos caminhos longos, inesperadamente o erro de percurso, erro de leitura de mapas, erros os mais inomináveis. Muitas mudanças por ter fechado os olhos e acreditado que uma força maior me levaria ao lugar certo. Mas também a dúvida, o medo e o medo e o medo fazendo-me parar – por quanto tempo fiquei paralisada? – hesitando entre um pé e outro sem levanta-lo do chão, sem coragem de sair do lugar. Pode ter sido por vidas inteiras, ou horas ou segundos infinitos, pois que o segundo que se passa em paralisia não passa.

Carrego essa dor quase imaculada nos músculos das pernas, a dor de não andar de não dar atenção ao pedido do corpo de fazer movimentar sua sombra para vê-la, quem sabe, mais distante de si. No sol do meio-dia tem-se a ilusão de que não há sombras. As luzes duras ofuscam e quase não registram na memória os fatos assim desenrolados. Por isso a memória mais viva das ocorrências da noite. Quando o olhar abre mais atento para não perder gesto algum, todo o corpo desperto para os sons e vibrações ilícitas, enganos e traições.

Mas carrego também em cada célula do corpo todos os gestos ternos e doces que vivi. A delicadeza de um perfume, de uma flor, de um olhar, de um sorriso, de uma palavra, de um toque. A delicadeza não pronunciada das intenções distantes, sem gestos que a confirmem, sem testemunhas, na quietude de si mesmo, o fio invisível de Deus que nos liga um ao outro sem se embaraçar nunca. Sim, carrego em mim como uma tatuagem os nomes desses seres que me marcaram.

Nesse momento, agora, em que tomo consciência inesperada da multifaceta de quem sou, o verso e o reverso e o dentro e o fora e ambos os lados simultaneamente, magicamente como um presente divino esboçando um leve sorriso imperceptível, num encontro não marcado comigo, finalmente vivo a paz que procurava aqui. Assim, enlevada, recolho a âncora e hasteio a bandeira branca deixando que o vento me leve por essas águas calmas ao meu destino sem guia. Confiar no vento é confiar em Deus, é confiar em si. Confiar, sim, é intransitivo.

Tenho medo de quem sou

Tenho medo de quem sou. De quem, em tamanho mini, com cara de quem não sabe o que está acontecendo, acaba por mandar para o inferno o próprio diabo. É poder? É a sensação de poder maligno, descortinado no palco fechado, restrito aos íntimos. Não, não fui eu a deflagrar a Guerra no Oriente Médio, a insuflar terroristas, a detonar homens-bomba. Mas terei sido responsável pelo descalabro de outrem? Terei sido o gatilho para a infelicidade de alguém? Eu mesma, querendo ser feliz, fui trazer aflição para quem só queria amor?

Meu amor morreu na praia em completa agonia. Não recebeu socorro a tempo e não mostrou sinais de que morreria até expirar o último dos suspiros românticos. Que morresse, mas teria que levar junto algo mais? Amar não é intransitivo e ao se pôr põe junto as pessoas que dele se nutrem. Agora, sem energia suficiente, o que era minha forma de amar virou ossos secos sem miolos e brancos. Meu amor morreu sem cor, completamente desbotado de tanta luz do sol. Não o protegi de nada e não resistiu.

Acho que me perdi em alguma esquina. Virei o lado errado e não me dei conta. Deixei passar a janela aberta, a luz amarela e o cachorro dormindo na porta. Não olhei para trás e não posso mais voltar. Teria levado o olhar comigo se apenas esse fosse meu apego. Mas levei junto muito mais. Levei no mergulho minha sombra e meu silêncio, levei seu sorriso pronto e suas palavras incontidas. No mais, não me livrei de mim nem de você.

Ainda velo em prantos os momentos delicados que foram juntos para o mesmo luto. Velo sem entender ainda, sem explicar, sem suportar. Enterrem logo isso tudo para que tenham um pouco de paz meus olhos e meu respirar ainda enevoado, empoado dos mistérios do viver em par. Ou queimem tudo, não importa. Que das cinzas restantes se faça o pó dos móveis descuidados para que não ressuscite jamais em outra vida devoradora. Só quero ser alimento de amores ternos e dedicados.

Des-tempero-tempo



Tenho cozinhado o tempo para ver se ele fica mais flexível. Um pouco mais macio deste lado do equador, no alto das montanhas chorosas. Chorosas, mas sem jamais olhar para trás posto que estátuas de sal não têm muito tempo de vida cozinhando molemente.

Agora, faço dele uma conserva, fecho bem o pote para não perdê-lo nunca. Mas também, quem tem medo de perder? Perder faz parte, largar pelo caminho faz parte, esquecer faz parte. E todas as partes reunidas não fazem o inteiro novamente.

Depois, consuma com moderação, apreciando cada bocado a cada vez. Encha a boca e espere antes de atracar os dentes. O tempo pede tempo para se acostumar ao gosto, inicialmente amargo, adocicando aos poucos até melar a memória, que fica linda e perfumada se ainda for contada. Contar o tempo faz parte de cozinhá-lo. Mas contar assim, ao pé do ouvido, distraidamente.

Assim, modestamente, tenho tido mais tempo para viver os cantos e encantos destas paragens. Modestamente, digo, pois que fui deixando os adjetivos para ir unindo substantivo a substantivo sem ligar para verbos em pessoa inexistente. O tempo voa nessas ocasiões e pegando carona, desde que não enjoe, você ainda vai conseguir ver o rio virando a curva antes de cair em cachoeira. É assim que é. E haja pedra para espirrar espuma branca para todo lado.

O tempo come-se in natura quando se tem estômago forte. Destes estômagos habituados a fortes emoções, que deglutem tudo tão rápido que não lembra nem o que foi engolido. O risco, nesse caso, é de muita proteína e pouca memória. O que foi mesmo que você disse? Mas quando você disse isso? Você disse isso para mim? Muito tempo cru assim pode afetar demais seu julgamento de valor.

Por esse motivo e não por outro, dei para cozinhar o tempo todo. Faço vários pratos, poucos enfeites, e, no máximo, uns três outros ingredientes. Misturar demais também complica o conhecer e reconhecer. Nada de liquidificador, nada de processador, nada de batedeira, tudo à mão, pois que melhora sobremaneira o entendimento das coisas. E na maior parte das vezes, a receita de cabeça, de cor, de lembrança, em outras, alguns fragmentos de conversas ouvidas enquanto passava o tempo à toa.

Outra preocupação, não deixar passar o tempo demais, pois que fica sonso. Quanto mais perfume no ar, menos na panela, essa é uma certeza. Quanto mais vapor, menos água. Há que ter calma, mas sem perder o foco jamais. Sirva como preferir, quente ou frio, conforme a ocasião. Acompanhado é melhor e, se não der, aproveite assim mesmo.

Enquanto escuto o dedilhar de um piano

Escuto o dedilhar do piano um Chopin menos triste. Haverá felicidade em escrever? E quando escrevo, a quem contato efetivamente se o meu dedilhar o papel procura letras da minha paisagem, procura formas do meu olhar, procura sons onde só meu coração bate ininterrupto...

Parece que bebo e me embriago de um torpor distante, antigo, preto e branco, descalço, simples. Embriaguez de devaneio, a embriaguez titubeante de antes da meia-noite, quando todos estão vivos, quando todos estão inteiros e mágicos. Minha paz depende em parte de haver ao menos um ponto brilhante na lua nova.

Para isso saí, para essa loucura branda que queima mas não destrói, faz ferver os pulsos e provoca as mãos até que elas obedecem, colhem a maçã proibida, colhem o doce do passado recente e deixam pender ao chão o galho vazio e estéril agora. Há um tempo em que todos os galhos se tornam estéreis depois de colhida a fruta. Da mesma árvore que deu frutos, agora retorcem-se galhos secos e inóspitos. Foi a fruta que lhes tirou assim a vida? Ou foi para a fruta que eles tinham vida ainda?

Estendo a mão na esperança de colher amor e o que alcanço é apenas desejo vão. Desejo esse que louvo e idolatro como se fosse tudo que pudesse meu braço atingir. Eu mesma descrente de sua força, descrente de sua habilidade em cuidar do amor. Então, só faço frustrar o prazer cobrindo-o com a delicadeza que ele não quer, deitando-o para ouvir um piano menos triste quando o que quer ouvir é o som do meu coração batendo desatinadamente, enlouquecidamente, perdidamente.

Subi a pedra mais alta, mais adentrada no mar, para ver o bater das ondas estúpidas e estrondosas espirrarem em mim as gotas salgadas sem correr o risco de me molhar, no entanto. Ver o perigo passar sob meus pés descalços. E o mar me confrontar com a ira de todos os deuses frustrados. Mas a ira é de deuses e ela me alcança instável e repentinamente. Ergue-se furiosamente lançando a mim e a meus ideais obscenos e obscuros, pintados à mão um a um com tintas de púrpura secretamente tirada de raízes proibidas, lançando ao fundo tudo que acreditava ser. Tragada pelas ondas, vi escorrer tudo que dei em troca de ventanias, tudo que fiz em nome de calmarias, tudo que empenhei com lastro de nevoeiro.

Foi no meio desse desvario, no desencontro do meu caminho, que seu caminho cruzou o meu. Foi quando voltava já sem ar à superfície, não sabendo se me salvava ou morria, que segurei na corda solta de seu barco.

Eu não tinha jamais querido ver-me arrastada tanto tempo por um mar sem fundo, puxada pelo galope de um tornado, salva da minha morte pela morte adiada. Quem era você e o que queria? No entanto, era você a rebocar-me, fisgada, como um troféu reluzente. Tantas vezes fui obrigada a ver-me no espelho d’água irrefletida que por fim não tive escolha senão tocar-me inteira a dor ofuscante aguda de abrir-me sem anestesia.

Então, fez-se o silêncio do gesto interrompido. E na escuridão cruel em que me lancei, soltei da mão a corda que já cortava deixando você partir, fiquei na praia sereia desencantada da espuma. Eu, que nunca me supus sereia, agora fico cantando os amores passageiros da brisa do mar.

Não quero mais a dor romântica

Como dói ver desaparecer dos olhos o que a memória guarda como bons tempos vividos juntos. Dói no estômago a falta que faz aquilo que por tantos dias e noites foram dias e noites em comum. E, se passou, um dia também essa dor passará, talvez passe também da memória essa lembrança cotidiana e ainda real.

Por hora me resta sobreviver, pensar nas alegrias que me esperam um outro tempo que possa dar sentido a esse vazio no peito. Agora, no entanto, é como se não houvesse amanhã. É como se fosse o fim da estrada. A falta de escolha do fim da estrada. Arrumar coragem onde só há pedras soltas, mato e nenhum outro sinal de vida.

Nesse instante, o que escuto é o zumbido das moscas, perdidas, enganadas pela luz, o resto é silêncio. O coração batendo no peito anuncia cansaço. E tudo só está começando.

Dói amar como dói partir, a mesma friagem na boca do estômago. O mesmo relâmpago sem trovão. Partir, sim, é quebrar-se. Partir porque não se cabe mais naquela realidade tornada estreita, quando? Como foi se estreitando que não senti apertar até que não tinha mais como me mexer? Eu, que queria a liberdade do vento que passa como um beijo nas faces desprotegidas. Não vi o momento que abafava e não havia sequer uma brisa para balançar os cabelos. Não havia o ar fresco de que precisava. Sequer havia ar.

Enquanto estou em suspenso, as pessoas do outro lado do mundo estão se preparando para sentar-se à mesa, comungando o prato que fizeram juntas, das vidas que ainda se alargam com o passar do tempo.

Queria deixar de ouvir esse zumbido de mosca voando à toa, zonza, presa na minha cozinha quando há tanto espaço lá fora para voar. Agora que tenho ar, faltam-me pulmões fortes para sorvê-lo. A dor como forma de sentir a vida, não é isso que quero mais. Não quero mais a dor romântica dos amores impossíveis, não correspondidos, nem os amores explosivos, opressores, que apertam como se fosse um abraço de bem querer mas que são apenas prisão de braços.

Há alguns instantes, jurava que o que vivia era o aconchego quente dos desejos correspondidos e, repentinamente, caída de uma mudança que não vira operar-se, fiquei no meio do caminho entre o que foi – o que foi? – e o que será – que será, meu Deus? Eu própria sujeito de minha história, narradora onipresente, olhando pela janela deixei passar Carolina. Deixei passar o rio feito onda levando tudo, repentinamente. Eu não queria ficar só.

E é isso o amor? Um buraco que se abre no peito quando o tempo o faz pequeno? Uma falta na vida da gente quando se acorda no meio da noite e não há ninguém para abraçar e sorrir? Sorrir sozinho, o sorriso de quem lembra como foi o dia anterior, não importa se bom ou não, mas que naquele momento da madrugada alentada pelo calor da intimidade, faz sorrir sozinho.

Agora quero leveza

Agora quero leveza, a mesma leveza das nuvens que quando densas, descarregam-se em chuva pesada ou rápida, fina ou gelada. Quero ser a própria nuvem, passando e deixando no caminho apenas uma sombra deslizante pela superfície de tudo.

Ser como um olhar, sem tocar ou ser tocada. Ser como luz, ser a luz vibrante e colorida de um dia de sol na montanha. Sim, montanha porque elas guardam segredos, ainda assim. Porque segredos são pequenas surpresas que acontecem para fazer frente ao cotidiano.

Eu prefiro o frio da montanha ao morno dia que se arrasta sem sentido repetido e seco. O frio da montanha pelo menos traz cogumelos selvagens para serem colhidos por olhares atentos. E para paladares delicados. Cogumelos selvagens com gosto de queijo que minha memória vai eternamente me fazer lembrar de. Lembrar da alegria jovial de encontrar entre a palha do pinheiro aquela figura leve e etérea. Lembrar do tempo passado lentamente a procurar atenta algum vestígio, algum sinal de que haveria ali um gnomo escondido em seu chapéu. O vento frio e os galhos baixos das árvores fazendo do encontro casual um brilho no olhar.

E Deus. O reinado de Deus ensolarado e frio como os invernos devem ser. O Deus que faz a vida brotar da terra, brotar na pedra, brotar por nada. E que resplandece de braços abertos verdes com o perfume picante e doce dos pinheiros enfeitados. O amor sem preço e sem cobrança estendido a todos.

Sim, é possível viver a vida simples do tempo que passa gota a gota do riacho transparente, indo e indo e indo, não importa para onde, não importa quanto, não importa se. O viver incondicional das folhas que caem dos galhos soprados pelo vento. A vida pode ser cheia de mistérios tal qual o mistério dos regatos frios e murmurantes, cujos sons parecem repetir um mantra sem se deixar alterar pela correnteza.

Quando chove, como hoje, e é noite, fico ouvindo o som das centenas de milhares de gotas caindo e batendo sobre o telhado, inesperadamente nítido e mais intenso. O que posso fazer senão isso, ouvir e esperar, pois que é a lei da natureza que todo o peso das nuvens caia em desmaiadas gotas para que tudo volte a ser leve e fresco. A vida se renova na água que escoa, no verde que reluz, nos sapos que cantam. E eu esqueço o que vivi por tanto tempo prendendo a chuva, para brindar com cada gota que tilinta no telhado.

Toda vez que o silêncio me toma

Toda vez que o silêncio me toma de pronto, como quem toma o corpo de outro, e fico sozinha com minha dor, penso na vida ela mesma a face dura que se me apresenta.

Então, tudo se torna a vida toda por viver e a vida toda que vivi, um aglomerado de cenas, sons e cheiros instantâneos e imediatos aqui e agora, como um ultimato solene, como um chamado para o eterno, a voz rouca da própria morte.

Assim, entre macabro e tenebroso, adentro minha solidão intocável. E olho para as paredes repletas de quadros pintados a mão com meu sangue. Olho para as paredes repletas dos sinais mais emblemáticos do que sou profundamente e não me vejo. Não vejo nada além da sombra e o brilho seco ofuscante que vem de me olhar assim tão fortemente.

Será possível tocar-se assim intensamente o dedo de deus ao encontro da minha mão estendida e pedinte? Ou será que é sempre e somente na superfície o mais sensível da pele que pode ser tocado.

Por que dói viver?

Por que dói viver? Por que dói seguir em frente depois de tanto tempo seguindo junto? Será que não existe nenhum alívio para o peito de quem sofre tanto a dor de romper a ilusão do amor.

Eu queria pôr uma pá de terra sobre esse peito aberto, escancarado e deserto, para amaciar-me, eu que endureci na queda. Eu que caí de pé para sair correndo e estanquei. Minha fragilidade repentinamente expressa, vulnerável como a flor ao vento. Despetalei desentendida do que fui e do que serei.

Mas hoje, precisava, meu Deus, abrir os braços e aceitar de bom grado o final de tudo que se chama morte. A morte do amor que se transforma em outra coisa ainda. Do amor que, não podendo manter-se aceso, esvoaça de cinza bem vivida. O tempo que o tempo deu. Hoje eu precisava entender que nos braços da natureza viva estou mais protegida que se ofertada em oferenda no templo.

Não me basta saber que é vão, tudo vão, nesse mundo de passagem, onde um dia transcorre ao outro ininterruptamente, sem esperar, sem significado, sem precisão senão a precisão das marés. Não me alegra saber que não tem mais nada além, como os regatos que correm, correm, descendo sempre para um mar distante. Em que mar vou me derramar no meu caminho?

Quando um pássaro rouba meu pensamento num vôo flanado, eu vôo com ele no azul distante e de lá, olhando de volta para mim na terra perplexa, vejo em que me transformei, serpente esfolada e pisoteada que quis negar sua natureza de peçonha, não me tornei uma pomba da paz, não me tornei em cordeiro, apenas um bicho selvagem não domesticado esquecido de sua ferocidade adormecida. Apenas a insubmissa pedra rolando no riacho transparente, uma fantasia devota e infiel.

Quando ouvi dizer

Quando ouvi dizer que podia seguir seguindo, sai. Sai da casa de meu pai para o mundo estrangeiro desconhecido e apenas vislumbrado em sonhos semidespertos. Sai para a ilusão do mundo, para aquilo que acreditava, queria.

Foi tão duro acordar como foi sonhar os sonhos dos outros, os sonhos dos deuses, sonhar o sem fôlego doce que a adrenalina domina e que me domina. Não, não foi fácil deixar essa vida de deleites indeléveis, de delícias insuspeitas que é a velocidade da luz néon nas noites sem lua.

Então, já estava completamente tomada pela quarta-feira de cinzas. Não podia e não queria viver um dia morno e tolo de simplicidade quase sólida que podia ser tocada. Empurrei essa realidade da frente, olhei para o espelho de fundo falso que me mostrava nos outros e acreditei me conhecer profundamente.

Tanto assim, me enganei de amores por quem conseguia expressar rapidamente um amor franco e intenso. Enganei-me, aliás, em tantos braços apertados em nós indissolúveis, que me envolveram e me envolvi, em tão difícil movimento, que também me enganei ser amada.

Amada quando era apenas amassada. A cada dia me apertando em músculos rijos e de um tal carinho explícito que me machucava. Sentir dor era sentir ainda assim. E eu, que me conhecia pelos ideais que abracei, lindos, risonhos e brilhantes, deixei-me apertar por amores fortes, tonta e sem café.

A fé, que nunca tive nem em mim nem em ninguém, faltou-me quando me faltou o chão. Quem sabe teria me salvado se acreditasse realmente em um deus que salvasse sua cria – querida? – dos braços de sua natureza humana emocionada cuja liberdade me fizera viver o sem-fim de enganos e dores de amores vãos.

Todo amor é vão ou é insólito, saindo pela vida com uma cesta colhendo flores de desencanto e quimeras, porque as paixões inflamadas que varrem antes não deixa medrar brotos bons de ser colhidos.

O restante, já saberá, ficou perdido na memória baça. Quando o olhar perder-se no horizonte ao passar das horas, talvez uma brisa leve sopre o nome de quem já amei lembrando aqueles ideais com os quais sonhei, bem distantes enfim de qualquer pessoa real ou sonhada.

Diz-se de Deus

Diz-se de deus que não fecha uma porta sem abrir outra, e eu quero acreditar nesse deus. Por isso, sento-me para escrever ouvindo a chuva que cai entre trovoadas e a música ao fundo que vem de lá de dentro. Não de dentro da alma, pois que esta está vazia, esperando a outra porta se abrir.

Espera plácida, passiva, pacífica. A mesma espera de quem se atirou no rio correnteza abaixo esperando chegar do outro lado da margem. A espera dos que sopram o machucado que não cicatriza nunca.

A chuva é bruta, barulhenta e torna úmida minha face na janela. Olho e sinto a chuva passando por mim. As folhas das árvores verdejam mais ainda, brilham sua luz do fim de dia como se ouvissem o piano ao fundo.

A vida que se escorre pelas paredes deixa meu rastro por elas. E o crepitar da madeira queimando no fogão me faz lembrar que esta vida é a minha. A lenha que se consome em chama e fumo, calor e sons dançantes, eu.

Não tinha idéia dessa minha realidade sonsa e escorregadia, mole e lenta como a chuva que não pára.

Quero acreditar na chama da vela que anuncia a divindade do fogo, impune e incorruptível, que consome a ilusão até dela não restar senão cinzas revoando ao vento, até só restar o ar quente fumegante e esvaindo-se. Quero acreditar que essa chama é minha alma verdadeira e incógnita, salva e salvadora, redentora do inferno em que estou, escapulário que não uso.

A chuva que engrossa parece querer cobrir minha fala, minha pergunta sem resposta, meu grito sem eco. Não, não sinto paz em pedir perdão, não sinto paz em repetir seu nome, não me encontro comigo o encontro consigo que se faz na prece do silêncio.
Assim, permaneço sozinha a solidão do campo molhado e pingando de chuva. Meu rosto molhado de ouvir um piano ao longe entre trovoadas, a janela aberta para me lavar de chuva. Suspiro quando ele ergue a voz, não o piano reticente, mas o deus mesmo por trás do barulho das nuvens, indo embora, me deixando aqui, apenas me lembrando de si como meu coração que bate teimosamente sem saber porque.

Sonhos, Sonhos

Desistir dos próprios sonhos é desistir de si mesmo. Não há quem faça por nós aquilo que apenas nossa natureza pessoal e intransferível faria. Não há outro olhar, outro toque como o nosso. Não há outra palavra que pronunciada por alguém diria o que queríamos dizer. Não somos insubstituíveis, mas somos únicos.

Sonhos

Perseguir um grande sonho não é como voltar ao paraíso, é mais parecido com procurar um oásis: você acredita que ele existe e sabe como é, mas terá que se pôr no deserto para achá-lo. Se sua crença nele não for suficiente, você estará sozinho no meio do nada. Se for grande o suficiente para lhe dar forças para continuar entre tempestades, condições extremas e medos quase insuportáveis, então uma hora o encontrará e poderá se jogar em suas águas cristalinas e sombras refrescantes. Mas não acabou, o que você vai ficar fazendo num oásis o resto da vida?