Escuto o dedilhar do piano um Chopin menos triste. Haverá felicidade em escrever? E quando escrevo, a quem contato efetivamente se o meu dedilhar o papel procura letras da minha paisagem, procura formas do meu olhar, procura sons onde só meu coração bate ininterrupto...
Parece que bebo e me embriago de um torpor distante, antigo, preto e branco, descalço, simples. Embriaguez de devaneio, a embriaguez titubeante de antes da meia-noite, quando todos estão vivos, quando todos estão inteiros e mágicos. Minha paz depende em parte de haver ao menos um ponto brilhante na lua nova.
Para isso saí, para essa loucura branda que queima mas não destrói, faz ferver os pulsos e provoca as mãos até que elas obedecem, colhem a maçã proibida, colhem o doce do passado recente e deixam pender ao chão o galho vazio e estéril agora. Há um tempo em que todos os galhos se tornam estéreis depois de colhida a fruta. Da mesma árvore que deu frutos, agora retorcem-se galhos secos e inóspitos. Foi a fruta que lhes tirou assim a vida? Ou foi para a fruta que eles tinham vida ainda?
Estendo a mão na esperança de colher amor e o que alcanço é apenas desejo vão. Desejo esse que louvo e idolatro como se fosse tudo que pudesse meu braço atingir. Eu mesma descrente de sua força, descrente de sua habilidade em cuidar do amor. Então, só faço frustrar o prazer cobrindo-o com a delicadeza que ele não quer, deitando-o para ouvir um piano menos triste quando o que quer ouvir é o som do meu coração batendo desatinadamente, enlouquecidamente, perdidamente.
Subi a pedra mais alta, mais adentrada no mar, para ver o bater das ondas estúpidas e estrondosas espirrarem em mim as gotas salgadas sem correr o risco de me molhar, no entanto. Ver o perigo passar sob meus pés descalços. E o mar me confrontar com a ira de todos os deuses frustrados. Mas a ira é de deuses e ela me alcança instável e repentinamente. Ergue-se furiosamente lançando a mim e a meus ideais obscenos e obscuros, pintados à mão um a um com tintas de púrpura secretamente tirada de raízes proibidas, lançando ao fundo tudo que acreditava ser. Tragada pelas ondas, vi escorrer tudo que dei em troca de ventanias, tudo que fiz em nome de calmarias, tudo que empenhei com lastro de nevoeiro.
Foi no meio desse desvario, no desencontro do meu caminho, que seu caminho cruzou o meu. Foi quando voltava já sem ar à superfície, não sabendo se me salvava ou morria, que segurei na corda solta de seu barco.
Eu não tinha jamais querido ver-me arrastada tanto tempo por um mar sem fundo, puxada pelo galope de um tornado, salva da minha morte pela morte adiada. Quem era você e o que queria? No entanto, era você a rebocar-me, fisgada, como um troféu reluzente. Tantas vezes fui obrigada a ver-me no espelho d’água irrefletida que por fim não tive escolha senão tocar-me inteira a dor ofuscante aguda de abrir-me sem anestesia.
Então, fez-se o silêncio do gesto interrompido. E na escuridão cruel em que me lancei, soltei da mão a corda que já cortava deixando você partir, fiquei na praia sereia desencantada da espuma. Eu, que nunca me supus sereia, agora fico cantando os amores passageiros da brisa do mar.
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