quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Preciso contar uma coisa



- meu bem, senta aqui um pouco. Tenho uma coisa importante para falar com você, por favor.
- o que é, Jorge? Tem que ser agora?
- sim, querida, é uma conversa séria. Fique calma e sente aqui um pouco.
- como assim, conversa séria? Você quer se separar?
- não é nada disso, venha aqui. É uma coisa que preciso contar para você já há algum tempo.
- você tem outra? Você está apaixonado por outra pessoa? Você está me traindo?
- sim, quero dizer, não é nada disso, Aurélia. Por favor, não torne tudo tão dramático.
- me diga logo, Jorge, você está tendo um caso com alguém?
- Aurélia, você está dificultando ainda mais as coisas. Você vai entender tudo, você vai ver.
- não faça mais mistério, Jorge, conte logo!
- Aurélia, eu não sei como dizer isso.
- comece logo, desembuche.
- meu amor, sabe aquela semana que você ficou fora, em São Francisco Xavier? E me deixou aqui sozinho?
- o que aconteceu? Conte logo, conte tudo!
- bem, então, eu me senti muito sozinho. Fiquei pensando na nossa relação, nesse tempo que estamos juntos.
- você não é feliz, Jorge? Você me traiu, eu já sabia.
- sabia o quê, Aurélia? Deixe-me terminar. Então, eu fiquei sozinho e pensando na nossa vida juntos. É boa, em geral.
- como assim, em geral é boa? Jorge, você quer me deixar louca? Fala o que aconteceu naquela semana.
- tanta coisa que deixei de fazer para não magoar você, não desapontá-la. Sabe, não está certo isso, a gente deixar de fazer as coisas que gosta por causa de outra pessoa. Nem que seja por amor.
- ah, meu deus do céu, você não me ama mais. Eu estava sentindo isso. Você vai me abandonar?
- Aurélia, eu continuo te amando, você não está entendendo. Deixa eu terminar. Mesmo amando, a gente não pode se inibir, não pode deixar de ser quem somos, entende?
- não, você me ama, mas me traiu? É isso? Você me traiu, Jorge?
- Aurélia, eu comi miojo! É isso. Comi. Foi naquela semana, estava em casa, sozinho, morrendo de fome, você tinha ido fazer um workshop, não tinha nada em casa, é isso. Comi. Comi mesmo. Eu comi miojo!
- não. Você não fez isso comigo! Nós estamos juntos há meses! Nós somos almas gêmeas, lembra-se? Nós prometemos não mentir nunca um para o outro.
- eu não menti, minha querida, e estou contando tudo para você agora. Por favor, entenda. Eu estava sozinho, fraquejei.
- mentir ou omitir é a mesma coisa, Jorge. Nós nos prometemos fidelidade. E isso já aconteceu há um mês, você está me contando só agora! Como você quer que eu me sinta?
- não aumente o problema, Aurélia. Eu não tive forças para contar antes. Mas isso estava me atormentando, não me deixava dormir. Eu precisava confessar tudo. Agora estou melhor.
- ah, está melhor, queridinho. Que bom. Por que eu estou péssima. Saber que você estava me traindo esse tempo todo.
- traindo não.
- ah, não? O que foi então, foi uma vez só? É isso que você está querendo me dizer?
- sim, foi uma vez só. Acredite em mim, por que eu iria mentir?
- e se foi uma ou foi mil vezes, pouco importa. Você mentiu para mim. Estou arruinada. Desiludida. Você não podia ter feito isso comigo, Jorge. Eu te amava tanto. Eu fiz tantas coisas por nosso amor.
- mas não está certo, Aurélia. A gente não pode deixar de fazer o que gosta para estar com outra pessoa.
- outra pessoa? Você também está com outra pessoa? Além de comer miojo você tem outra?
- eu não como miojo, eu comi. Uma vez. Isso não me faz um comedor de miojo, entendeu? Seja coerente, tente entender o que estou falando. E não tenho outra.
- ai, Jorge, mas tinha que ser logo miojo?
- (chorando, falando baixo) é que eu gosto, me desculpa. Eu tentei, eu tentei com todas as minhas forças me livrar disso. Mas não consegui. Eu estava indo bem. Esse tempo todo jantando juntos, não tinha como sucumbir. Aí, você tinha que sair uma semana. Logo uma semana.
- ah, agora a culpa é minha. Você é um fraco e a culpa é minha. Desde quando você come miojo?
- eu sempre comi, sempre gostei, não é um vício. A hora que eu quiser parar, eu paro. Veja só, depois que você me disse que era gourmet e fomos morar juntos, eu não comi mais. Foi só essa vez.
- bem, o que será depois? Hoje foi miojo e amanhã, será o que? Não, não e não. Chega, para mim foi o máximo. Eu estava fazendo um curso, sabe Jorge, um curso para ver se ficava melhor. Eu queria ser melhor, uma pessoa melhor, para mim e para você. Enquanto isso, você estava se aproveitando da minha ausência. Não sabe se conter? Não sabe conter os seus instintos?
- não exagera, Aurélia. Vem cá, me dá um beijo.
- beijo? Nessa boca que comeu miojo?
- já beijei você umas dezenas de vezes depois disso, agora vai vir com essa?
- já beijou mas não vai beijar mais. Chega, entendeu?
- Aurélia, por favor, seja razoável.
- Jorge, por favor, me solta, solta minha mão.
- dá uma trégua, Aurélia, amanhã conversamos com a cabeça mais fria. Acalme-se, meu amor.
- Jorge, eu não sou mais seu amor. Você não vê, o miojo foi um símbolo. Não é isso que importa. O que importa é que você faz coisas longe de mim que não faria na minha presença.
- é disso que estou falando. Não pode ser assim, a gente tem que ser natural, não pode se restringir pelo outro.
- não, não vou mais restringir você, meu queridinho. Pode ficar certo. E pode pegar suas coisas também e ir para o outro quarto.
- ok. Então será assim. Daqui para frente você prepare sua própria comida, eu não cozinharei mais para você. Estou farto de arroz integral!
- meu deus do céu, você não se cansa de me surpreender! Vamos parar por aqui antes que fique insuportável continuar conversando. Antes que eu descubra que você nem gosta de fazer sexo comigo!
- sexo eu gosto, mas desse seu perfume, aiai.
- vá dormir no outro quarto, Jorge, e não fale mais nenhuma palavra. Infame.
- boa noite, querida. Amanhã você estará mais calma.
- boa noite já é demais e não espere clemência.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Escrevo porque



Escrevo porque a palavra pesa quando não se expressa. Pesa nos intestinos, no peito. É como um dia sem descanso. Depois de rolar uma pedra montanha acima. E vê-la escorregar novamente no dia seguinte. Porque dói como um grito sufocado, uma hérnia de disco, um joelho atarracado. Porque pesa como pálpebras que não se mantêm abertas na frente de um livro, quando o dia acabou antes da tarefa.

Escrevo porque não tenho escolha. A palavra me escolheu, não fui eu a ela. A palavra procura outra incessantemente, desenfreadamente, dentro ou fora. Procura por outra para se conectar, como um elétron, como um átomo procura outro, como a maçã procura o chão.  E assim, como teias entranhadas, elas vão girando a boca do estômago, enjoando, vertigem de significantes, o ombro mareado. Não adianta dormir, não descanso. Nem tentar esquecer, é uma tatuagem que não para de doer.

Escrever, quando não é cotidiano e não escorre feito lágrima, lenta e quente, desmorona como tempestade. 

Assim, no rodopio sem medo da noite, elas surgem. Frêmito subindo pela coluna vertebral. Calculadamente. E depois, uma chuva de flechas certeiras. Veias em erupção vulcânica. A alma em relâmpago destroçada. No trabalho de recompor-se, muito sereno e febre. E o perfume obstinado de sândalo e musgo.

Não. Escrevo porque me dói como se fosse a cabeça, me dói como se fosse descalça. É como ter bebido demais na véspera. E olhar no espelho de manhã, encarar a alma nua, perdida, e se encontrar. A palavra dura feito vento frio endireitando os ombros. Escrevo. Quando todos já foram dormir, e a noite silenciosa a tudo envolve, quando a coruja pia lá fora, e o estômago pede algo mais. Não adianta olhar para o telefone, nem pensar em falar com ninguém. Escrevo porque é urgente. O mundo está se acabando, o telhado ruindo, a enxurrada correndo por dentro da sala. Eu queria dormir, mas a palavra. 

E então, depois, como o gozo dos que sabem o que querem, sabem e pedem de que gostam, a palavra, enfim, desponta num estremecimento, deságua, descortina, desvirgina. Irrompe a secura na garganta, enlaça e vem à tona numa trama sem nós. E sim, agora viro de lado e durmo sem fim.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Quanto custa quanto vale?



- oh, meu grande amor! O quanto quero teus abraços nos meus braços! Quanto desejo o desejo de teus lábios! O mar infinito de águas claras eu te dou como o meu amor que é tanto tanto maior que o infinito! Anseio por teu sorriso que ilumina o dia, por teu brilho que me encanta a vida, pelas noites que ainda serão minhas, quentes, doces, envolventes. Sonho em ter teu corpo macio no meu arrepio de pele. Sonho em fazer-te esquecer que outra vida já tiveste. Faz de mim teu refúgio, tua aventura, tua fortuna! Que eu possa ser toda magia de haver alegria em cada gesto. Minha mão estendida te oferece o sangue pulsante de um coração que só faz bater por ti. Todo amor do mundo não perfaz o caminho que trilharei para te alcançar. Sou todas as promessas de amor eterno, de amor inconfesso, de amor silencioso e brando. E sou também todas as ousadias apaixonadas de uma rosa. Aceita essa flor encarnada no meu querer que nenhum outro ser poderia trazer consigo, perfume de sândalo e jasmim, enternecido na melodia suntuosa e simples de uma flauta doce. O que mais posso dar-te? O que mais podes querer de mim? Dou-te tudo quanto tenho em meu alforje de magia, encantamentos, sonetos e beijos. Espera de mim que a vida toda possa ser tua morada mais alegre, tua comida mais pungente, teu sonho mais ardente. E de todos os teus desejos, o que mais queres de mim?
- Que? Não, nada. Obrigada, é muito lindo, tuas palavras e tudo, mas agora, de verdade, eu só quero um copo d´água. Gelada.