- meu bem,
senta aqui um pouco. Tenho uma coisa importante para falar com você, por favor.
- o que é,
Jorge? Tem que ser agora?
- sim,
querida, é uma conversa séria. Fique calma e sente aqui um pouco.
- como
assim, conversa séria? Você quer se separar?
- não é nada
disso, venha aqui. É uma coisa que preciso contar para você já há algum tempo.
- você tem
outra? Você está apaixonado por outra pessoa? Você está me traindo?
- sim, quero
dizer, não é nada disso, Aurélia. Por favor, não torne tudo tão dramático.
- me diga
logo, Jorge, você está tendo um caso com alguém?
- Aurélia,
você está dificultando ainda mais as coisas. Você vai entender tudo, você vai
ver.
- não faça
mais mistério, Jorge, conte logo!
- Aurélia,
eu não sei como dizer isso.
- comece
logo, desembuche.
- meu amor,
sabe aquela semana que você ficou fora, em São Francisco Xavier? E me deixou
aqui sozinho?
- o que
aconteceu? Conte logo, conte tudo!
- bem,
então, eu me senti muito sozinho. Fiquei pensando na nossa relação, nesse tempo
que estamos juntos.
- você não é
feliz, Jorge? Você me traiu, eu já sabia.
- sabia o
quê, Aurélia? Deixe-me terminar. Então, eu fiquei sozinho e pensando na nossa
vida juntos. É boa, em geral.
- como
assim, em geral é boa? Jorge, você quer me deixar louca? Fala o que aconteceu
naquela semana.
- tanta
coisa que deixei de fazer para não magoar você, não desapontá-la. Sabe, não
está certo isso, a gente deixar de fazer as coisas que gosta por causa de outra
pessoa. Nem que seja por amor.
- ah, meu
deus do céu, você não me ama mais. Eu estava sentindo isso. Você vai me
abandonar?
- Aurélia,
eu continuo te amando, você não está entendendo. Deixa eu terminar. Mesmo
amando, a gente não pode se inibir, não pode deixar de ser quem somos, entende?
- não, você
me ama, mas me traiu? É isso? Você me traiu, Jorge?
- Aurélia,
eu comi miojo! É isso. Comi. Foi naquela semana, estava em casa, sozinho,
morrendo de fome, você tinha ido fazer um workshop, não tinha nada em casa, é
isso. Comi. Comi mesmo. Eu comi miojo!
- não. Você
não fez isso comigo! Nós estamos juntos há meses! Nós somos almas gêmeas,
lembra-se? Nós prometemos não mentir nunca um para o outro.
- eu não
menti, minha querida, e estou contando tudo para você agora. Por favor,
entenda. Eu estava sozinho, fraquejei.
- mentir ou
omitir é a mesma coisa, Jorge. Nós nos prometemos fidelidade. E isso já
aconteceu há um mês, você está me contando só agora! Como você quer que eu me
sinta?
- não
aumente o problema, Aurélia. Eu não tive forças para contar antes. Mas isso
estava me atormentando, não me deixava dormir. Eu precisava confessar tudo. Agora
estou melhor.
- ah, está
melhor, queridinho. Que bom. Por que eu estou péssima. Saber que você estava me
traindo esse tempo todo.
- traindo
não.
- ah, não? O
que foi então, foi uma vez só? É isso que você está querendo me dizer?
- sim, foi
uma vez só. Acredite em mim, por que eu iria mentir?
- e se foi
uma ou foi mil vezes, pouco importa. Você mentiu para mim. Estou arruinada.
Desiludida. Você não podia ter feito isso comigo, Jorge. Eu te amava tanto. Eu
fiz tantas coisas por nosso amor.
- mas não
está certo, Aurélia. A gente não pode deixar de fazer o que gosta para estar
com outra pessoa.
- outra
pessoa? Você também está com outra pessoa? Além de comer miojo você tem outra?
- eu não
como miojo, eu comi. Uma vez. Isso não me faz um comedor de miojo, entendeu?
Seja coerente, tente entender o que estou falando. E não tenho outra.
- ai, Jorge,
mas tinha que ser logo miojo?
- (chorando,
falando baixo) é que eu gosto, me desculpa. Eu tentei, eu tentei com todas as
minhas forças me livrar disso. Mas não consegui. Eu estava indo bem. Esse tempo
todo jantando juntos, não tinha como sucumbir. Aí, você tinha que sair uma
semana. Logo uma semana.
- ah, agora
a culpa é minha. Você é um fraco e a culpa é minha. Desde quando você come
miojo?
- eu sempre
comi, sempre gostei, não é um vício. A hora que eu quiser parar, eu paro. Veja
só, depois que você me disse que era gourmet e fomos morar juntos, eu não comi
mais. Foi só essa vez.
- bem, o que
será depois? Hoje foi miojo e amanhã, será o que? Não, não e não. Chega, para
mim foi o máximo. Eu estava fazendo um curso, sabe Jorge, um curso para ver se
ficava melhor. Eu queria ser melhor, uma pessoa melhor, para mim e para você.
Enquanto isso, você estava se aproveitando da minha ausência. Não sabe se
conter? Não sabe conter os seus instintos?
- não
exagera, Aurélia. Vem cá, me dá um beijo.
- beijo?
Nessa boca que comeu miojo?
- já beijei
você umas dezenas de vezes depois disso, agora vai vir com essa?
- já beijou
mas não vai beijar mais. Chega, entendeu?
- Aurélia,
por favor, seja razoável.
- Jorge, por
favor, me solta, solta minha mão.
- dá uma
trégua, Aurélia, amanhã conversamos com a cabeça mais fria. Acalme-se, meu
amor.
- Jorge, eu
não sou mais seu amor. Você não vê, o miojo foi um símbolo. Não é isso que
importa. O que importa é que você faz coisas longe de mim que não faria na
minha presença.
- é disso
que estou falando. Não pode ser assim, a gente tem que ser natural, não pode se
restringir pelo outro.
- não, não
vou mais restringir você, meu queridinho. Pode ficar certo. E pode pegar suas
coisas também e ir para o outro quarto.
- ok. Então
será assim. Daqui para frente você prepare sua própria comida, eu não
cozinharei mais para você. Estou farto de arroz integral!
- meu deus
do céu, você não se cansa de me surpreender! Vamos parar por aqui antes que
fique insuportável continuar conversando. Antes que eu descubra que você nem
gosta de fazer sexo comigo!
- sexo eu
gosto, mas desse seu perfume, aiai.
- vá dormir
no outro quarto, Jorge, e não fale mais nenhuma palavra. Infame.
- boa noite,
querida. Amanhã você estará mais calma.
- boa noite já
é demais e não espere clemência.