O caos. Num movimento inesperado, tudo em barulho,
embrulhado, entornado. O que estava inteiro, quebrou. O que estava sobrando,
acabou. E o que era verdade, falhou. As certezas todas descem corredeira abaixo
levando a chuva que agora pouco era céu. E descendo assim, vão carregando o que
encontram pela frente: um olhar que sustenta, a mão que acena, um coração que
ainda bate forte e desgovernado.
O cais. Tudo balançando no movimento de sobe-e-desce de
barco atracado. O vento fez onda sem parar por todo lado. E a perspectiva
insólita do horizonte móvel parece enjoo. Um nó no estômago. Um grito de
socorro. Eu não sei o que quero, nem sei o que seria bom. Não sei se erro de
não saber, ou se erro por querer. Um leme que vira para a direita quando quer
ir para a esquerda. Um capitão que não deixa o navio naufragar sozinho.
O tao. Se eu pudesse não causar desarmonia, já teria valido
a vida. Mas falar é bem mais fácil que viver. E viver é o contrário de tudo que
já foi dito. Viver é um sonho de ponta-cabeça; se apoia no vazio, ruma o
inesperado, desenha na areia segundos antes do mar passar. Se eu pudesse apenas
amar e ser amada, já seria o bastante. Mas não basta nunca. O querer é um passo
atrás do que me faria feliz. E a felicidade parece uma janela embaçada, que
quase mostra o que tem dentro, que deixa passar a luz, o frio, o barulho do
vento e, no entanto, não permite que o vento toque a pele ávida.
O teu. O que eu poderia deixar para trás e seguir sem sentir
dor, o que de meu posso perder sem temer ser infeliz, o que, meu deus, de mim
pode ficar sem mim até o fim dos tempos para que o que sobrar sobreviva,
resista, reviva? O que ressoa e ecoa feito um tambor vital me fazendo crer que
ainda devo crer, que ainda devo permanecer, insistir, persistir? O que me faz
gritar quando deveria calar? Calar no sussurro de quem compreende, de quem
sabe, de quem acordou. Ao invés disso, ao invés de tudo, lanço meu olhar
perplexo ao encontro do teu, na tentativa de tatear alguma saída, alguma
resposta, alguma coisa.
O tom. Na reprovação geral dos limites e das fronteiras estendidas,
em sabendo que todo esforço atinge uma cerca de arame farpado e embrenhado, ainda
assim, a mão procura no escuro. Não sei onde dará, nem sei se dará, mas fico
esperando o trem com o bilhete no bolso, certa de que ainda passará. Mesmo que
não pare no porto, não apite na curva, que não espere ninguém, eu insisto na
estação.
O fim. Eu não acredito na morte. Não acredito em limites. Como
o adolescente que foge de casa, que não sabe de nada, e ainda assim vai para a
rua porque precisa ir, eu não acredito que tenho que partir, que a oração
chegou ao ponto final. Que não há mais nada a dizer. Que não há mais o que
fazer. Eu, que já me lancei de penhascos e mergulhei em mares bravios, que me
deixei morrer na praia, e morrer no chuveiro, morrer desnuda, descalça,
desfeita, morrer todos os amores pelos quais mataria, morrer bêbada, sem me lembrar
de nada, sem entender nada, eu talvez não queira mais a loucura. Quero o macio
do abraço, o doce da língua, o amanhã possível, sensível, visível. Quero o riso
áspero mais que a lágrima fina.
O céu. À beira do abismo, o frio subindo pela coluna
vertebral, o vento e a possibilidade do fim ou o início do voo. O risco traçado
no azul. É preciso coragem para saltar no desconhecido. Sem chão. Sem apoio. Mas
a vida pede riscos. A vida é a coragem de arriscar errar. Novamente, quantas
vezes forem. Errar sem medo. Errar na nuvem. Correr o risco de acertar, no quê?
Qual é o alvo? Qual o objetivo? A vida e o que a recheia, com gosto e com
vontade. Para além da cerca. Para além do olhar que cruza. A vida é o amor que
transpõe.