Há dias tento digerir a hipótese de que ninguém faz nada por
ninguém, desinteressadamente. Sim, contragosto, tenho que concordar. Sempre há
um interesse à frente ou por trás de uma ação. O que faço por você, por
exemplo, é para mim puro deleite. Portanto, eu é que ganho.
E no final, o que é que se pode fazer efetivamente de bom
para alguém? Nada. Sua vida é sua vida, como você a concebeu ou não, mas sua.
Eu não posso nem de longe, nem de perto, nem de dentro ou de fora, interferir
no seu caminho. Não ajudo em nada. Nadinha. Nada mesmo.
E meus sonhos? Bem, são meus. A ilusão de que minha vida faz
sentido para mais alguém? Inocência. Importância? Sim, importo do ar o prana,
que me dá vida mais do que o oxigênio sozinho podia me dar. Uma coisa se perde,
no entanto. Outra se ganha. Perco o referencial, um espelho, uma contrapartida
que interage comigo e me permite autoconsciência. Ganho em honestidade, em
liberdade, e, acima de tudo, leveza.
Já que não tenho que salvar o mundo, nem ninguém, no meu
caminho sigo de mãos vazias. Vejo as pedras rolando nas águas dos córregos,
mudando a cada momento sem se perturbar. E fico horas olhando, olhando. E tudo
é muito lindo, pelo meu descompromisso. O tucano passa voando lindo, seguido de
perto por dois outros pássaros menores. Provavelmente ele estava investindo
contra o ninho dos outros, mas mesmo assim, acho-o lindo no voo desiquilibrado
pelo longo bico.
Não. Definitivamente não posso fazer nada por ninguém. A não
ser seguir em frente. Por mim eu faço? Digo que sim, mas digo que não. Não
posso fazer nada por mim já que não posso fazer nada por mais ninguém. Seria
egoísmo. Inadmissível. Inaceitável. Cortinas se fechariam para mim. Aplausos
seriam poupados. Faço por mim tirar-me da cama toda manhã, toda manhã sem
exceção, para que a vida me ocorra de olhos abertos.
Certo. Não faço realmente nada por ninguém
desinteressadamente. Meu interesse é ver alegria ao meu lado, por isso, se
puder e quanto puder, promovo alegria aos que estão ao meu lado. Faço piadas,
embora nem sempre divertidas. Faço o que posso. Nada é impossível de bom humor.
E bom humor é como fogo, alastra. Com todo interesse do mundo, às vezes, sou
dócil e disponível. Tire minha roupa, meus livros eu os dou, preparo comida –
por favor, não me peça para lavar a louça – abro a porta, pago a conta. Quando
quero estar por perto, estou cem por cento presente. Interesse, puro interesse.
E tenho interesse em geral por pessoas inteligentes,
sensíveis, e descuidadas. Interesse total em ficar próxima, muito próxima, de
ouvir frases encantadoras, de ver olhares mágicos, de entender o que é difícil
explicar, o silêncio. Adoro sorrir sozinha, depois, lembrando coisas engraçadas
que pessoas engraçadas disseram para mim ou comigo. Minha vida é repleta desses
sorrisos bobos, descontrolados, que vêm à tona sem nenhum aviso. É por isso,
simplesmente, que convivo com pessoas quando seria bem mais simples viver
sozinha o tempo todo. Posso não fazer a menor diferença para alguém além dos
meus gatos e cães, mas as pessoas me encantam quando sequer esperava encontrar
companhia. Elas me fazem ressoar uma música, uma canção conhecida, coisa de
infância esquecida, adormecida, memória de pele, ou coisa parecida.
De fato, generalizando, fazer alguma coisa para além dos
meus interesses pessoais é quase impossível. Se participo de grupos sociais,
faço-o porque pertenço. E se alguém vai decidir por aquilo que me afetará,
melhor que seja eu a decidir, ou pensar que decido. Responsabilidade social é,
em última análise, cumprir etapas de interesse. Não sei viver sozinha e quero
uma redondeza melhor para conviver. Crianças mais felizes, que se divirtam de
verdade quando estiverem apenas brincando. Que não aprendam nada mais do que
estejam procurando. E que não procurem aprender nada, porque tudo lhe será
dado. Crianças que não tenham que se preocupar com comida, porque assim podem
ver bola onde não há bola, podem ver pipas quando não houver vento. Crianças,
enfim, sendo crianças na infância que é hoje. O meu hoje. Porque quero um mundo
melhor para viver. E envelhecer.