sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Tudo por interesse


Há dias tento digerir a hipótese de que ninguém faz nada por ninguém, desinteressadamente. Sim, contragosto, tenho que concordar. Sempre há um interesse à frente ou por trás de uma ação. O que faço por você, por exemplo, é para mim puro deleite. Portanto, eu é que ganho.

E no final, o que é que se pode fazer efetivamente de bom para alguém? Nada. Sua vida é sua vida, como você a concebeu ou não, mas sua. Eu não posso nem de longe, nem de perto, nem de dentro ou de fora, interferir no seu caminho. Não ajudo em nada. Nadinha. Nada mesmo.

E meus sonhos? Bem, são meus. A ilusão de que minha vida faz sentido para mais alguém? Inocência. Importância? Sim, importo do ar o prana, que me dá vida mais do que o oxigênio sozinho podia me dar. Uma coisa se perde, no entanto. Outra se ganha. Perco o referencial, um espelho, uma contrapartida que interage comigo e me permite autoconsciência. Ganho em honestidade, em liberdade, e, acima de tudo, leveza.

Já que não tenho que salvar o mundo, nem ninguém, no meu caminho sigo de mãos vazias. Vejo as pedras rolando nas águas dos córregos, mudando a cada momento sem se perturbar. E fico horas olhando, olhando. E tudo é muito lindo, pelo meu descompromisso. O tucano passa voando lindo, seguido de perto por dois outros pássaros menores. Provavelmente ele estava investindo contra o ninho dos outros, mas mesmo assim, acho-o lindo no voo desiquilibrado pelo longo bico.

Não. Definitivamente não posso fazer nada por ninguém. A não ser seguir em frente. Por mim eu faço? Digo que sim, mas digo que não. Não posso fazer nada por mim já que não posso fazer nada por mais ninguém. Seria egoísmo. Inadmissível. Inaceitável. Cortinas se fechariam para mim. Aplausos seriam poupados. Faço por mim tirar-me da cama toda manhã, toda manhã sem exceção, para que a vida me ocorra de olhos abertos.

Certo. Não faço realmente nada por ninguém desinteressadamente. Meu interesse é ver alegria ao meu lado, por isso, se puder e quanto puder, promovo alegria aos que estão ao meu lado. Faço piadas, embora nem sempre divertidas. Faço o que posso. Nada é impossível de bom humor. E bom humor é como fogo, alastra. Com todo interesse do mundo, às vezes, sou dócil e disponível. Tire minha roupa, meus livros eu os dou, preparo comida – por favor, não me peça para lavar a louça – abro a porta, pago a conta. Quando quero estar por perto, estou cem por cento presente. Interesse, puro interesse.

E tenho interesse em geral por pessoas inteligentes, sensíveis, e descuidadas. Interesse total em ficar próxima, muito próxima, de ouvir frases encantadoras, de ver olhares mágicos, de entender o que é difícil explicar, o silêncio. Adoro sorrir sozinha, depois, lembrando coisas engraçadas que pessoas engraçadas disseram para mim ou comigo. Minha vida é repleta desses sorrisos bobos, descontrolados, que vêm à tona sem nenhum aviso. É por isso, simplesmente, que convivo com pessoas quando seria bem mais simples viver sozinha o tempo todo. Posso não fazer a menor diferença para alguém além dos meus gatos e cães, mas as pessoas me encantam quando sequer esperava encontrar companhia. Elas me fazem ressoar uma música, uma canção conhecida, coisa de infância esquecida, adormecida, memória de pele, ou coisa parecida. 

De fato, generalizando, fazer alguma coisa para além dos meus interesses pessoais é quase impossível. Se participo de grupos sociais, faço-o porque pertenço. E se alguém vai decidir por aquilo que me afetará, melhor que seja eu a decidir, ou pensar que decido. Responsabilidade social é, em última análise, cumprir etapas de interesse. Não sei viver sozinha e quero uma redondeza melhor para conviver. Crianças mais felizes, que se divirtam de verdade quando estiverem apenas brincando. Que não aprendam nada mais do que estejam procurando. E que não procurem aprender nada, porque tudo lhe será dado. Crianças que não tenham que se preocupar com comida, porque assim podem ver bola onde não há bola, podem ver pipas quando não houver vento. Crianças, enfim, sendo crianças na infância que é hoje. O meu hoje. Porque quero um mundo melhor para viver. E envelhecer.

domingo, 23 de setembro de 2012

Me desculpe


Me desculpe. Tenho certa incompetência em falar o que realmente importa. O que realmente me importa. Olho para o lado, fico sem jeito, falo do tempo, morro de medo, desconverso. Depois, desato numa conversa sem fim sobre valores humanos, parece que as pessoas deixaram de acreditar na vida, na beleza da vida, na alegria descompromissada e leve que pode ser a vida. Reflito sobre a mudança de rumo, revisões, reposicionamentos, sobre o pensar diferentemente. Às vezes, falto com a verdade. Com a verdade do que precisava dizer, e não digo. Ou não precisava dizer, mas queria. Nada é impossível. Só o desejo é inalcançável e previsível. Sempre por realizar, sempre à frente do momento. O desejo que interrompe o rio, o riso, o curso natural da brisa. Foi um quase. Foi só o risco despontando na superfície para então já escorregar reticente. Queria apenas dizer o que sinto. O mais difícil.

Sinto muito. Sinto tudo impossivelmente ao mesmo tempo agora. Sinto intensamente. Pareço menor do que sou, tal o tamanho do mundo. Criança perdida numa feira de rua atônita não encontrando as pernas da mãe que se descuidou. E de sentir tudo e tanto, perdi-me dentro de mim. Calabouços, cavernas incrustradas de pedras e frio e escuro, labirintos de sentimentos desconexos, mapa sem norte. Todos os caminhos do mundo perfazem minhas veias, minha pele de toque, despencando vertiginosamente como cachoeira de sentidos. Hoje, ao me resgatar, debruço-me à beira, no vazio profuso de haver um além entre o pensar e o sentir. Debruço sobre todos os julgamentos do que penso sentir e do que sinto sem saber. Piso a estrada com a força de quem entende o que faz, mas faz sem pensar. Arrasto no meu andar raiz um bocado das pedras do caminho. Assim, vou levando na retina os espinhos despercebidos de estar descalça. Grata de ser quem me descubro a cada clareira.

Muito obrigada. Muitíssimo obrigada por me aceitar sem eu conseguir me explicar, e, em me explicando, complicar mais do que esclarecer. Muito obrigada por me deixar fluir sem medo e sem culpa, por abrir o peito e o coração e a alma numa exposição sem limites e sem pudor. Por me deixar tomar pela beleza, pela beleza até onde não há beleza, porque o olhar é o sujeito da oração, e vê o que quer, o que não quer, o que nem sabia que haveria. Obrigadíssima por me ouvir, sobretudo os meus silêncios infinitos, as minhas dores insolúveis, as minhas dúvidas onde expresso puro consenso, puro consentimento, pura presença. E eu me apresento no sorriso alegre de frases inteligentes, e me apresento na distância impassível de um gesto. A alegria é o sol do meu dia, há dias e dias sem chover. Muito obrigada pela generosidade em tentar me entender, eu que não me entendo, que falo alto quando queria cantar, murmuro quando precisava gritar, e me descabelo quando o que faria era derreter. Muito muito obrigada porque o dia se abre no meu peito a cada momento que encontro você.

Te amo.

sábado, 15 de setembro de 2012

O amor diz sim


Eu não concordo com a proposição de que tudo que é bom é difícil. Muito capricorniano para alguém de fogo. Mas cada vez mais acredito que tudo que seja realmente importante custa caro, e na mesma proporção. Sim. A vida pede sangue, acontece no sangue, se nutre de sangue. Dói e se arrepia, emociona e faz rir, fascina e faz medo: neurônios existem para sentir.

O que é de graça só faz passar. Quanto do que você ganhou era o que procurava? Ou ainda, quanto do que ganhou você se lembra agora? Assim, não estava querendo, não estava procurando e ganhou. Se esqueceu, não era assim tão importante. O que importa é algo que grava na pele, como tatuagem. O que importa fica na retina, você vê de olhos fechados. O que importa custa caro. E você paga.
Agora, tem aqueles que naturalmente não pagam. E ficam muito irritados de não conseguirem. E se revoltam, viram a cara, não dormem. Sendo importante, pague o preço. Você pode imaginar alguém barganhando o amor de outro? Aliás, tem quem considere o amor uma conquista e ainda quer paz na relação! 

Tudo que é muito importante tem um risco. Vale mais quanto maior o risco. Quando você quer uma coisa, muito, corre o risco de se frustrar e, claro, também há sempre o risco de ser feliz. É o que é a vida. Beleza e feiura, mas em intensidade suficiente para fazer a diferença. Porque a mornidão da vida que passa, escorrendo como água de bacia, é a falta de memória no fim da vida. É a falta de lembrança. É o esquecimento.

Bem, você pode argumentar que tem coisa que promete, mas não cumpre. Parece que vai ser bom, e não é. Vai ser um sonho, e é um pesadelo. E eu concordo com isso. Na verdade, olhe com calma. A coisa parecia ser boa ou você é que queria que fosse? Era o amor de sua vida ou você se fez crer nisso? Todos os sinais mostravam o contrário, todas as pessoas já tinham sacado o dissenso, mas você insistiu. Remar contra a maré parece ser um bom exercício físico, molda o caráter, fortifica a vontade. Mas não leva à felicidade. 

Felicidade é um atingimento. Para chegar, você precisou partir, precisou definir objetivos, precisou dizer o que queria, precisou saber o que estava fazendo. Felicidade é extenuante a certos momentos de visão. Por isso alguns desistem. Ou fingem que estão tentando. Correm na esteira desregulada de sua imaginação, contando mentiras e guardando ressentimentos. Não é fácil ser feliz. Exige comprometimento, empenho. E é isso que chamo pagar a conta. Chegue no balcão, no belo e estonteante balcão da vida, peça o que quiser, pergunte quanto é, enfie a mão no bolso, pague e leve. Por que não haveria de pagar? 

Eu também queria ganhar tudo. Tudo a ponto de não precisar nem declarar o meu desejo, de não descobrir que desejo. O tudo que faria uma pessoa feliz. Só tem um problema: aquilo que me faz feliz não precisa ser o que faz você feliz. Por isso, posso estar ganhando tudo o que não queria. Se eu disser que o que queria era você, posso receber em resposta que você não é um prêmio para ser ganho. E meu amor por você pode ser apenas uma coincidência.
Gosto do dar-se de graça da flor. Bela e exposta, dada já por natureza, com perfume de jasmim ou a beleza da orquídea, com a bravura da rosa ou a doçura da violeta. Um amor assim era fácil, era só ficar olhando, olhando, sem nunca querer levar no peito, para que não o queimasse com o calor da pele, não lhe sufocasse com a pressão do abraço. Então, algumas vezes, até o que custa caro e é pago, não dá para levar. 

Ainda assim, correndo o risco de não levar, continuo acreditando no amor. E mais: hoje eu quero o amor que tem coragem de dizer sim.