Resolvi ficar em casa, ouvindo o som da corredeira que passa à sombra das araucárias. Monótono, intenso, preenchendo meu dia quente. Dormi mal e agora esse lado da noite me retorna no claro do dia fazendo um peso nos olhos. E a mim bastava ser apenas um regato solto descendo a corredeira à sombra de árvores, esquecido das pedras.
Mas não esqueço. A cada borbulha que a água faz descendo, a pedra está lá para me lembrar de que ainda estou viva. Que ainda tem sangue correndo nas veias, num ritmo de coração. Acho que é normal só sentir o bater do coração quando ele acelera muito, num sobressalto, num arrepio, num estrondo de trovão quando o relâmpago passou fulminante pelo estômago. Na brisa leve nem lembro que tenho um motor funcionando no peito. Nem lembro que ele funciona. E a vida vai passando feito bote em lago no entardecer. Fazendo sombra e luz na superfície, tocando o céu com a mão na água.
Vou buscar um perfume conhecido no ar que passa subindo pelas minhas pernas. Ou talvez não suba, talvez apenas passe, mas eu sinto correr fresco um pouco de alfazema. É do meu banho, não do vento. Então percebo que me enterneço com as emoções mais fluídas, mais líquidas do que nunca, escorrendo elas também pelas mãos que querem frustradamente segurar tudo, controlar tudo, entender tudo.
O que quero e o que não quero se desencontram por essa passagem, se atropelam e se confundem numa só coisa, num só emaranhado que me paralisa diante da janela aberta. Saio ou não saio, corro ou não corro? E fico. Vou ficando olhando e sentindo como se um cordão invisível esticasse de um lado ao outro do rio, segurando os galhos, os gravetos, as folhas secas caídas sem querer. Segurando minha mão para que não vá embora na cachoeira vertiginosa em que o rio desemboca. Tudo lindo. Tudo infinitamente lindo. Se conseguir escapar de viver ao ritmo do coração talvez eu flua pelo seu leito sem medo. Mas por ora me afogo. Afundo e volto presa no redemoinho que tanta água faz na minha cabeça.
O novo me assusta como se levantasse e desse os primeiros passos antes de cair de novo. Mutante de mim mesma. Fisgada na minha isca, a linha que dei e dei e dei, até enrolar-se pelos meus cabelos, intrincadamente nos pelos. O mel na pele que a língua anseia. Abraço e me enlaço no momento em que quero voar, as asas pendendo pesadas molhadas. Eu podia ser um regato solto, mas ao fim, me torno apenas as veias pulsantes de um coração truculento. Eu podia ser um pássaro planando, mas retorno o plano do voo, a ponta do lápis marcando o céu. Nas linhas das mãos, as emoções pingando sem sentido. O que sinto, me perde de mim, me leva correnteza abaixo. Excessivamente abaixo. Então, numa fagulha, consigo sair da água, jogar os cabelos para trás, e respirar profunda para mergulhar novamente no silêncio e no gozo plácido antes do grito.