Não é difícil se apaixonar pela paixão. É muito fácil, até, querer o desejo. É quase impossível resistir ao apelo do enlevo. Um dia após o outro, alimentando-se de palavras românticas, gestos transbordantes, olhares que se procuram. Eu quero um para mim. Acordar no meio da noite sonhando com o beijo que beijou sem querer mas que agora quer. Acordar no meio do dia pensando que o pensar que lhe deseja é seu também.
Mas se não for? O dia nasceu cinza, todo nublado. Não há um azul brilhante como o olhar espera. Não tem um pôr do sol retumbante, deslumbrante, que impeça o sono de vir. Não tem um perfume, aquele perfume, no ar. Não tem o cheiro do cheiro que é seu. Não se reconhece naquela alegria estonteante que deveria consumir seu peito, consumir seu pensamento. Fazer o mundo sumir.
E agora? E se o coração continuar no seu eixo, sem se perturbar, se o ritmo da brisa, o fluxo do vento, a passagem do tempo, nada saiu do lugar. Nada se perdeu ou se achou. O mundo continuou a girar. A vida continuou mansa e macia, vertendo-se como um vinho rubi na taça, lágrima que escorre demoradamente, de alegria, da mesma alegria de antes.
Quem foi que me acordou para assistir ao espetáculo do cotidiano desapaixonado de uma vida que já se apaixonara por si? Quem quis mostrar-me o brilho especial do sol que se expõe sempre e sempre e sempre para aqueles que apreciam a beleza ela mesma, despejada pela torneira generosa e ligeiramente entediada da felicidade? Ah, com que autoridade alguém poderia entrar na minha vida, tirar-me do conforto de cada dia, para mostrar o que vejo ao olhar no espelho?
O amor plantado em mim já começara a brotar, florir até, e eu queria apenas que ele fosse toda a emoção que sinto agora. A emoção de quem não precisa. A emoção sincera de quem não quer. De quem está bem, está ótimo, de quem poderia muito, muito bem seguir sozinho. É por isso que hoje caminho na montanha, sobre pedras, para não deixar pegadas. Para não pensar em voltar. para não olhar para trás. Para não me acomodar mais, nunca mais.
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