terça-feira, 26 de abril de 2011

Abri um vinho

Abri um vinho, servi uma taça e brindei à saúde de todos os que fazem de suas escolhas um motivo para ser feliz. Brindei às escolhas que, muitas vezes doloridas ou difíceis, ainda assim são escolhas e por si sós são um bom motivo para brindar. Já havia colocado umas fatias de pão integral para tostar um pouco e começava a derreter manteiga com pasta de sal e alho poró. Depois do brinde, derramei um ovo caipira – mas caipira mesmo, desses que a galinha cresceu e cisca em quintal, solta, comendo milho e pastando, lá encima nos altos dos Venâncios – um ovo perfeito sobre a manteiga que se movia verdejada e, por cima de tudo, creme de leite fresco.

Pensei se as pessoas que vivem com alguém o tempo todo podem desfrutar de um momento desses. Um momento em que você está ali preparando um jantar leve mas que era o que você realmente queria sem ter que negociar nada com ninguém. É ótimo se relacionar emocionalmente com alguém. É ótimo trocar idéias, ouvir e crescer em casa, sem nenhum esforço. Mas dividir com outra pessoa o mesmo espaço exige uma energia extra. Exige negociar o tempo todo o que, como e quando. Não tem jeito. É claro que tem aquelas pessoas com quem podemos apenas pensar, cuja harmonia é tão real que chega a ser silenciosa. Parece que conectou uma antena, que a radiação do pensamento foi capturada pelo outro instantaneamente a ponto de ser quase uma extensão de seu braço, de seu corpo.

O certo é que meu ovo ficou maravilhoso. Normalmente faço isso no forno, mas estava com preguiça, então, cozinhei na frigideira mesmo. Para ficar como gosto, a clara branca e a gema mole, tampei e abaixei o fogo. O creme de leite tem que ser fresco, pois ele ferve e de outra maneira talharia, o que daria uma impressão ruim ao prato. Servi à mesa na própria frigideira para continuar bem quentinha. O pão integral recebeu um pouco de manteiga antes de molhar delicadamente na gema amarela amarela amarela.

Nesse instante, esqueci completamente minha conta corrente, a vida que roda lá fora, lá onde engrenagens se movendo parecem ser mais fortes que a vontade, esqueci de pensar o que farei amanhã, depois de acordar, no trabalho, com os cães e gatos e o que farei da minha vida. A vida é um pouco uma taça de vinho: cheia é linda, vermelho rubi e perfumada, mas só tem sentido enquanto se esvazia, enchendo de alegria enquanto se vai. O que ficou? não importa mais. Não fica nada. A vida vale pelo que passou, no instante exato em que está passando. Nem mais, nem menos.

Por isso, olho sem arrependimento o prato vazio e um pouco raspado de pão. Pelo contrário. Acho que todo mundo deveria dedicar um tempo para dizer-se “eu te amo” assim, de forma concreta e real, mensurável. Eu te amo em cada ingrediente que coloco. Eu te amo em cada bocado que levo à boca, querendo, já adivinhando o gosto pelo perfume que inalo, eu me amo. Quem não se ama certamente não reconhece nem valoriza o amor de outrem. E ademais, amar é uma atitude, não um desejo. Amar é repleto de gestos, movimentos e dedicação. Se não der para você parar e se cuidar, se olhar longamente no espelho, cobrir-se com afeto, sobretudo em noites sem lareira, se não der para você sair do seu lugar de conforto, claro e acessível, para abrir a janela e deixar o vento entrar, frio ou forte, desarrumado, então o que você tem feito da vida? Da sua vida. O que faz sentido quando você se encara sem desculpas, sem promessas, completamente desamparado como um bebê que acabou de nascer? Bom, muitos bebês vão receber o abraço quente e reconfortante de mamães que os esperam. Hoje, você só vai se amparar nas suas certezas.

Agora, não tirei o prato da mesa não. Nem a taça vazia foi parar na pia. Deixei a manteiga destampada, deixei a mesa assim posta e decomposta. Deixei tudo sem obrigação. Um mimosinho. Um excesso. Amanhã, quando for preparar o café da manhã, eu cuido disso. Amanhã é amanhã e hoje estou viva. Que bom que é poder chegar a entender o valor de sair de casa e de voltar. E poder ir dormir tranquila só porque fiz uma comida para mim. (vou dormir antes que algum psiquiatra comece a achar anormal minha conversa íntima e solitária, autosolidária, e venha me trazer algum remédio. A vida que passa pelos gestos que fazem sentido não precisa de remédios).

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Chegou a noite

Chegou a noite em que pude usar todos os ingredientes de que gosto e tinha em mãos para fazer mais que uma comida para mim, um laço, uma refeição para integrar, para brindar a alegria que é estar em harmonia com alguém. Por esse motivo, manteiga de garrafa com azeite na frigideira, e bastante cebola em rodelas finas para fritar, enquanto o feijão verde cozinha apenas na água e sal. A cebola vai ficando transparente e depois levemente dourada, perfumada que só.

Arroz cozinhando em outra panela, vou preparando um pimentão vermelho para assar com queijo-coalho, tudo devidamente importado da terrinha. O queijo vai derreter bastante e um pouco vai escorrer e fazer uma casquinha crocante na assadeira de ferro, importante para dar uma mordida boa no prato. Gosto de comer coisas com texturas variadas, um pouco macia mas também crocante, com mordida.

É uma orquestração. Uma amiga sempre dizia que para começar a saciar a fome o bom é pôr a mesa e colocar água para ferver, todos os comensais já ficam mais animados, certos de que logo serão atendidos. Então, testo o feijão, ele está macio mas inteiro, perfeito para despejar na frigideira quente de cebola frita. Refogo um pouco ainda para pegar bem o gosto dos temperos e despejo a melhor farinha de mandioca amarela que consegui, na verdade, ganhei feliz, tudo isso foi um presente.

Esse ingrediente é fundamental numa boa refeição: felicidade. Felicidade em fazer, em preparar e em receber. Sem ele um prato é apenas comida. O que você comeu? Não sei, não me lembro. Mas basta um toque, uma pitada de boa qualidade de alegria verdadeira, interior, daquela que você não consegue conter, nem esconder, e aí pronto, está feita a diferença. Pode fazer só arroz e salada, ou ovo ou massa. Tudo muito simples, nem sempre rápido – porque o rápido não é valor para a alegria – e dividir a mesa com todos aqueles que você ama e quer bem. É como um abraço. É uma declaração de amor.

Por fim, um molho lambão – de tomate, azeite de oliva, sal temperado e pimenta da boa, picante e perfumada, muito coentro – porque coentro fresco combina à maravilha com pimenta – um molho para colocar sobre o feijão, sobre o pimentão, sobre o queijo derretido, para amortecer a boca e os sentidos, uma ilusão para derreter os temores que ainda restem nos músculos, e trazer, por fim, o descanso.

Preciso dizer que essa comida não fiz sozinha?