Fico pensando se o verbo perdoar não deveria conjugar assim
como o lembrar e esquecer, e aceitar a forma de verbo transitivo direto e
indireto, afinal quem perdoa, perdoa alguma coisa a alguém, necessariamente. Mais
ou menos assim: eu te perdoo a mim, ou eu me perdoo a você. Porque da outra
forma tudo fica muito genérico, abstrato, mais para espiritual do que algo
concreto, real.
Quando eu me perdoo a você, rompo laços, liberto ambos,
sujeito e objeto, da ligação indesejada. Promovo a sanidade, a cura, o
bem-estar. Uma nova troca de olhares será mais leve, certamente, mais solta,
descompromissada e verdadeira.
Um perdão amplo é espiritualizado demais, largo demais,
longe demais. Parece superior, algo que está além da compreensão humana, além
de um gesto interessado, efetivo. Soa falso, como se, para chegar até ali, não
houvesse passado pela dor, a pele arrepiada, os olhos marejados. Como se
tivesse sido uma caminhada na areia, úmida e fina, areia da praia, com
horizontes longínquos e indiferentes. Como se não deixasse marcas profundas,
cicatrizes desenhadas em giz, como se fosse o caminho da gota dágua no vidro do
carro que passa.
Não. De jeito nenhum. O perdão precisa deixar claro toda a
história que percorreu para chegar ali, frente a frente, prestes a cortar o
cordão que unia, invisível ou risível, duas pessoas. Precisa mostrar as mãos
queimadas de segurar a corda tão vorazmente, mostrar o risco no peito, as veias
dilatadas sem tempo de respirar.
Ou, talvez, assim no formato tradicional, o perdão conte com
a participação soberana do tempo. O tempo que seca a sangria, estanca as
lágrimas e ameniza o aperto entre os maxilares. Dizem que o tempo cura tudo. Mas
não acredito também. O tempo não cura vista cansada, nem palpitações no peito. Ele
apenas atua na memória, trocando as cores originais por outras mais
sensacionais, ou mudando os gestos dos personagens, tornando-os mais heroicos, estoicos,
ou estrábicos. O tempo é uma ilusão. Um disfarce, descompromissado e descomprometido.
Eufemismo de quem não quer falar o que realmente importa. Não quer tocar no que
precisa ser tocado, limpo, renovado. Pode ser uma ladeira para baixo,
despencando descontrolado o que quer que seja, rumo ao inevitável
esborrachar-se final, ou pode ser uma ladeira acima, passo ante passo rolando a
pedra pesada da memória, esperando que ela vá se desgastando e turvando no
atrito continuado.
Não, não. O perdão que espera pelo tempo perderá muitos
trens até que chegue a hora de partir definitivamente. Até que chegue aquele
que o levará rápido e certeiro para outra estação. O perdão que espera não
liberta de vez. Só promete. Só presume.
Assim, livres e em paz, as emoções sinceras e consistentes,
subliminares, podem vir à tona, desprotegidas, empoderadas de novo, inteiras de
novo, renovadas.