quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eu não gostava de gatos


Eu não gostava de gatos. Preferia cães. Cães pulam, alegres, mostram vivazes a sua estima. Gatos são quietos, observadores, parecem ranzinzas. Então, um dia, me apaixonei por um filhote persa, vermelho. Por alguns anos viveu ele em minha casa, com seu mau-humor e estranhezas. E então sumiu num carnaval. Sem camisa amarela. Sem deixar rastro. E aí, era tarde, eu já me acabava apaixonada derradeiramente por gatos. Sofri muito sua falta, mas passou.

Depois, ganhei outro gato persa, agora bege, meigo, carinhoso e muito relacional. Persas parecem não perder nada com aqueles grandes olhos vermelhos, têm aquela cara de mau-humor, mas é só cara. Leon, o gato, era rei absoluto na minha casa. Talvez porque acreditasse ser um cachorro, passeava entre os cães no quintal sem se vexar. Os latidos não o amedrontavam tanto quanto os passos de uma pessoa. E era de sua natureza diferente gostar de água, brincar com água, sentar na água com aqueles longos pelos finos. Andava comigo pelo quintal, nos bosques de árvores floridas, nas ervas perfumadas do quintal, passando por um cão. Eu falava com ele, ele respondia.

Animais entendem? Sim, entendem, só não sei o quê. Eles serão gente um dia? Ou já foram? Talvez sim, talvez não. Sei que não foram criados para nosso prazer. Não existem para nos satisfazer a existência. Não vivem para que possamos usá-los. Eles têm vida própria. Têm vontade própria. E têm sua própria consciência das coisas e de nós. Enchem a casa de alegria, mas não é para isso sua vida. É porque não sofrem como nós por nada. Brincam com qualquer coisa que puder fazer barulho, correr ou cair por suas patas, sem pensar em amanhã, em consequência, em sentido. Procurar sentido na vida é o que nos move. E, em alguns momentos, essa ação nos tira um pouco a alegria. Toma lugar o pesar, o sentir, o querer o que não há, o que não temos.

Eu tinha um gato ou ele me tinha? Eu cuidava de sua comida, sua água, suas pedrinhas, deixava-o dormir no sofá, beber água do chuveiro – por que gatos gostam de água morna? – mantinha sua vida calma, como ele gostava. E talvez eu fosse seu animal de estimação. A deixar que subisse na cama e dormisse aconchegado. Ele me tratava com carinho. Silencioso e cúmplice, me defendia nas noites, com seu olhar atento. E aceitava com volúpia a sardinha que lhe ofertava.

Então, sem me falar nada numa surpresa, de repente, dormiu à tarde no quintal de que tanto gostava. Dormiu para sempre, como sempre, calmamente. Eu quis chorar. Quis não crer. Quis mais uma vez aquilo que não tinha mais. Depois passou. Sua carinha linda ficará comigo, ficarão comigo suas doces lembranças. E assim, posso voltar a falar com ele, silenciosamente. Me espere, Leon, que um dia eu chego por aí.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Spazio Pirandello


Spazio Pirandello – assim é se lhe parece. Passo na frente desse que foi o meu restaurante preferido e não existe mais. Será que a comida era realmente muito boa ou minha memória desse tempo é que me deixa com ar nostálgico e repleto de boa vontade? Não, era sempre muito divertido ir lá, encontrar amigos, conversar, beber e, claro, comer. Tinha uma vivacidade cultural.

Fui para São Paulo e acabei indo no bairro que já morei. Era um festival gastronômico. Onde está o Longchamp? Ia comer lasanha, tomar um bom chopp e desfrutar de uma sobremesa que nunca mais comi sequer parecido: compota de goiaba com catupiry. Parece trivial? Normalmente era bem tarde da noite, talvez madrugada e o seu copo não poderia esvaziar que era logo substituído por outro novinho e gelado, colarinho apropriado.

Desci a Frei Caneca a pé. Será que o prédio em que morei continua igual? Não, no lugar dele um shopping. Minhas madrugadas insones eram repletas de caminhadas por essas ruas. No Orvieto ia comer filé à fiorentina, com um molho de espinafre que me dá água na boca só de lembrar. Também não há mais. Mas a Bologna continua. Nesse tempo ainda comia carne e a melhor coxa creme de frango era na esquina da Augusta com Marques de Paranaguá. 

O tempo passa e as lembranças ficam intactas. Hoje a rua está decadente, suja, com portas pintadas e rabiscadas por alguém que não tem a menor noção do que é grafite de verdade. Eu antes era da cidade, me perdia nela e me achava. Sabia o lado da rua que devia andar. Cheguei a deixar as chaves do carro no contato numa daquelas noites. Sem querer, obviamente. Quando me dei conta, já estava sentada no restaurante esperando meu prato. Uma correria e nenhum problema: ninguém acreditou no que viu, imagino.

E no Bexiga? Cafés, comidas italianas, pães de padarias tradicionais, restaurantes onde o garçon a certa altura começava a cantar ópera – ou o que parecia ser – no meio do salão. Garçons que deveriam trabalhar na casa a vida toda, tão íntimos eram da comida, tão íntimos dos clientes. Naquela época eu pensava que tinha sangue italiano correndo nas minhas veias, tanto eu gostava de morar no bairro e frequentar aquelas cantinas.

Pão de linguiça, perna de cabrito, pizza com massa grossa, berinjela à parmegiana. Lasanha à bolonhesa, talharini à parisiense, penne al funghi secchi. Tudo isso povoou minhas fantasias mais famintas principalmente à noite. Fantasias prontamente realizadas bastando colocar-me à rua. Hoje tudo é muito melancólico. Lugares fechados, ruas sujas, nomes estranhos nas portas. Tudo muda e tudo passa, bem sei. O bom é que continuo sentido o gosto dos pratos que me faziam sair de casa. Mudei muito também, já não como carnes, mas mesmo assim, lembrar é fazer água na boca, é sentir o gosto de novo. Viver não precisa ser heroico quando se tem memória da vitalidade de um dia como todo dia. E, afinal, não faz tanto tempo assim, apenas o bairro mudou, não há mais os mesmos pratos. Até eu não moro mais lá. Somente uma teimosia reticente continua me levando para quando a felicidade era uma promessa do lado de fora casa, no movimento da rua, no passar dos faróis dos carros, enfim, num lugar em que o tempo passava correndo. Urbis. Definitivamente não sou mais um ser urbano.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Feliz por estar comendo cogumelos selvagens


Feliz por estar comendo cogumelos selvagens em pleno novembro. Nem os próprios cogumelos entenderam 15°C num quase verão. Mas de qualquer jeito, entendendo ou não, eles foram refogados em azeite de oliva, cebolas crocantes e alho cremoso, flambados em saquê e servidos em pão tostado, delicioso. Claro, e vinho branco torrontés. Bom. 

Colhi os cogumelos quando chegava em casa, sob os pinheiros. E não me lembro sequer de estar com fome, mas logo já os preparei e devorei. Deixei um pouco pois o pão acabou antes e sei reparar no meu apetite, como o prazer de comer. Cebolas douradas e brilhantes de azeite sobre lâminas de cogumelos me olharam desapontadas. Só mais uma garfadinha, pediram. E resisti sem sacrifício.

Os tempos são outros. Alguma coisa no ar informando que algo mudou. Vento frio lá fora. Muito frio. Cogumelos de inverno no verão. Céu azul, azul, sem chuva. Silêncio de vento. Sempre que algo sai do normal, eu penso na vida. Será que em outro tempo, na idade média, alguém parou um dia de verão com sol de inverno e pensou que algo mudou? Será que sempre houve mudanças e fim dos tempos? Um dia foi a virada do milênio, outra foi o fim do calendário maia. E nós sempre e sempre pensando que é chegado o momento do juízo final.

Tenho entendido mais do que já entendi em toda minha vida, eu que passei toda ela pensando e pesquisando sobre. Lendo sobre o lado oculto, o lado obscuro, as sombras, a vida ela mesma, em si, em mim. Hoje, mais do que nunca, estou calma. A calma justa dos que puderam viver, acordar, sentir mais do que entender.

E comer cogumelos do bosque, com perfume de terra e ervas, é meio que me sentir novamente um ser terreno e vivo. Bicho. Os bichos são felizes, não pensam. Pensar é um pouco morrer ou passar o tempo. Pensar é doer como os ombros que pesam. É doer. Doer é pensar. Quem sabe da dor senão pensa a respeito? A dor é um pensamento sem tino. E pensamentos passam, se soubermos deixá-los livres, aceitá-los, deixar que vivam o tempo que precisam. E que passem depois. Passem como as lembranças, passem como sorriso que abre a boca sem palavras. A dor passa antes que nos acostumemos com ela.

Cogumelos debaixo de pinheiros, esperando o momento de ser colhidos por mãos que os reconhecem. A vida pode ser melhor quando a fazemos como o jantar colhido do quintal e levado ao fogo para dar prazer mais do que alimentar. A vida, sujeito, agente, ativa. A vida no presento do indicativo, primeira pessoa do singular. Feliz, mesmo se não houvesse cogumelos.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Domingo à noite


Diga-me sinceramente quem você conhece que pode estar, num domingo à noite, comendo salada de ovos caipiras com ervilhas frescas orgânicas, cozidas, tudo envolto em molho de maionese caseira, de alho poró? Ervilhas orgânicas tão frescas que chegam a ser doces. Sim, e pão integral tostado, claro, claro e clarissimamente acompanhado de um vinho branco torrontés refrescado. Agora, certamente você conhece quem pergunte: “maionese caseira? que medo! Ovo faz mal ainda mais à noite!”. Mas, na verdade mesmo, seria apenas e puramente despeito: imagina que isso acontece num domingo à noite!
Quanto medo em torno da mesa. Poucos os que se sentam ainda à mesa, em conjunto, para comer a comida preparada por ambos, cuidada por seus olhos atentos, mexida com sua colher. Parece mais um trabalho do que um prazer! E é mais do que prazer, é diversão. Entrar numa cozinha branca e fria, tudo organizado e limpo, tirar panelas, acender fogão, fazer um bocado de bagunça. Num momento a geladeira aberta prenuncia que há fome por perto. No outro, panelas fervendo exalando o perfume do amor que compensa qualquer colesterol alto, excesso de sódio ou glicose.
De mim, uma certeza: se um dia for proibida de comer pão, por favor, desligue os fios e vá embora porque deixei de merecer a confiança da vida. Pão é vida, meu deus! Com manteiga e café, obviamente, a essência da vida. O pão alimenta o apetite dos que têm fome transcendental. E a fome transcendental chega em geral nos domingos à noite. Devagar, inesperadamente e se instala com aquele jeito de interrogação: e agora? Bem, primeiro saciar a fome existencial, depois as outras fomes.
A beleza, a leveza e o sabor, uma tríade que facilita a passagem de qualquer portal, qualquer outra dimensão da vida. É como rezar. É como agradecer. Agora, eu só preciso aprender qual a comida do perdão porque, pelo que me consta, preciso perdoar muito. Preciso olhar para mim, para dentro da panela, antes de qualquer azeite, de qualquer tempero, olhar para o reflexo que aparece lá no fundo e sorrir com compaixão, me perdoar de tudo que não fiz, tudo que não quis, que renunciei, que amarguei um não, que me implorei silêncio em vão. Preciso colocar mel em toda a pimenta que já despejei antes, para adoçar um pouco um coração que ardeu uma tristeza até virar cinza. E, no passe de mágica que transforma o leite em queijo, a uva em vinho, me refazer em perdão por mim mesma. Lavar-me na torneira aberta desesperadamente fluindo até sentir o frio que a pureza provoca na pele. Abrir os dedos da alma, um a um, para deixar passar a luz do sol. E quando começar a aquecer, murmurar baixinho: perdoa, meu deus, perdoa. Deixa o vento soprar, deixa o pé pisar a terra tornada fértil novamente. Perdoa e sopra o som divino da vida em meu ouvido. Poderei, então, repartir o pão da minha mesa abençoado e renovado, compartilhar a alegria tornada transparente e solta, e comer salada de ovos com ervilhas com a imensidão invisível que brinda comigo!

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Equilíbrio é uma questão de escolha


Certa vez li uma coisa intrigante: que o homem era o único ser natural que investia contra a natureza. Assim, levantou-se em duas pernas e, contra toda lei da aerodinâmica, passou a andar em equilíbrio. Se tudo nasce, vive e morre, o homem luta contra a morte, criando estratégias para prolongar ao máximo a sobrevida em qualquer situação. A natureza deixa que uma inteligência maior lhe dirija os rumos; o homem tomou para si o papel de co-criador, interferindo, desviando e tentando de todas as maneiras assumir o controle. Não é um elemento dentro da humanidade, é a maior parte dos homens. Então, isso deve ter um significado.

Agora em meio a um novo momento de renovação, escuto outra frase: o equilíbrio é uma questão de escolha. Pessoal. Ninguém deve ter falado para aquele primeiro humano a tentar andar em duas pernas que isso era improvável. E se falaram, ele não escutou. Você pode ter medo em circunstâncias de risco, pode ter medo em momentos de grande felicidade, é uma questão de escolha. Há quem tenha medo de altura, há os que têm medo de espaços amplos, os que têm medo de tudo. É uma escolha.
E os percalços que a vida nos propõe? E as rés no barranco? E quando a coisa não dá certo quando tinha tudo para dar? Não existe aquilo de errado. Difícil aceitar isso, mas tenho que. O rio começa torto antes de seguir para o mar. Parece indeciso, parece fraco. E é. Talvez por isso nossa percepção de tempo, tão absoluta e tão necessária. A criança engatinha até firmar-se. Precisa de atenção até sair por sua própria conta.

Talvez, então, o que ocorra é que não nos preparamos para as fases seguintes, com a cabeça. Porque o coração está sempre preparado. O coração pega a estrada e sai procurando uma emoção que o prenda. E depois, se desprende, emocionado ou esgotado. A cabeça quer ficar de fora. Quer entender tudo. Quer se preparar para a morte, se preparar para a perda, se preparar para o pulo. Mas quem pensa não pula. Quem pensa não escorrega para o outro lado do abismo. Ou, pelo menos, tenta.

Queria conseguir alinhar esses dois teimosos: fazer com que uma cabeça muito distante se torne próxima, e que um coração intenso amenize suas crises. A felicidade não é um momento perdido entre muitas dores. Começa no primeiro gesto que tenta. Tentar andar sobre duas pernas, tentar passar por um espaço exíguo, tentar fazer de sua vida uma existência significativa. A cada tentativa, mesmo as que minguam. A lua míngua todo mês e desaparece.

No final, tudo é uma questão de interpretação. Que natureza é essa que dizemos conhecer onde o homem não pode andar sobre duas pernas? Que sabemos nós do que é o universo para achar que a vida acaba com a morte? Será que estamos na idade média do medo em pensar que a lua que desaparece nunca mais vai voltar? Que o equilíbrio está em acreditar mais do que em entender? Acreditar, sim, é a união do pensar com o sentir.