sábado, 14 de julho de 2018

No final do mundo


No final do mundo nos encontraremos, com um pouco de sorte, com um sorriso no rosto. Sempre é muita sorte encontrar um sorriso no rosto quando o mundo acaba. Mas, se assim for, nosso encontro será diferente dos outros todos de nossas vidas, porque será definitivo. Nada é definitivo na vida, nada é tão supremo que corte como um bisturi ou abismos separando dois mundos. Essencialmente o mundo é um só.

Então, naquele momento em que nada mais passa a ter importância, eu olhe para você e pense no que fomos e no que desejamos ter sido. Porque, como um rio, a vida escorre pelos caminhos possíveis, e despenca pelos impossíveis. Saberei entender o que fui buscar e o que encontrei, sempre dois tempos nos tempos dos amantes.

Até lá, não levarei comigo senão o pó do caminho. Estradas poeirentas no inverno e lamacentas no verão fazem dessas coisas conosco: marcas arrastadas que desaparecerão tão logo passe o próximo vento, desses ventos que apagam o gesto perdido na distância. Ficarão somente as pegadas vislumbradas pelo último olhar antes de levantar a cabeça e seguir em frente.

Sim. O mundo há de acabar num derradeiro momento, mas enquanto isso, vou perdendo meu tempo olhando para as montanhas de manhã quando acordo, ou ouvindo o farfalhar das folhas umas nas outras, inocentemente. Dá para sentir o aroma das flores que amanhecem o orvalho da madrugada quando se anda ao lado delas sem fazer barulho. Elas retribuem com um aceno leve, cúmplice, discreto, muito simples, quase imperceptível. Eu vim buscar essa vida.

Mas sabendo que nos encontraremos no final do mundo, ficarei desapercebida de sua presença nos cotidianos que se intercalarão até lá. Vou riscar com os pés na terra um pouco da suavidade do momento. Vou me entregar a esses prazeres que são os dias que escolho não fazer nada ou fazer tudo ou fazer e desfazer. A vida é uma liberdade que se escolhe nos ciclos que se sucedem.

Sim, algo ficou de tudo, na verdade, de tudo fica um pouco. Talvez uma poesia escrita na retina, talvez uma pedra que fique no caminho. Mas nenhuma, nem a poesia nem a pedra, é quem sou agora, depois de tê-las passado na pele, a rudeza de uma e a realidade da outra.

No final, nada tem tanta importância que nos faça parar a estrada ou sentar para recuperar forças. A força está em seguir em frente, e a deixar-se expor ao sol, sem medo, com ou sem dor. Eu não gosto da dor de jeito algum, parece inumano, parece que não é próprio dos neurônios, mas sentir é isso. Quem escolhe viver o sentido da vida precisa passar pela dor necessariamente. Precisa arranhar as unhas nas encostas dos barrancos tentando galgar um passo acima, ou tentando segurar-se para não escorregar. E qual é a verdadeira diferença entre a dor e o prazer? Um consentimento, talvez.

Se posso dizer o que farei ao encontrar você no final do mundo, então já fica aqui o meu recado e não precisaremos nem trocar palavras ou gestos, porque o que quer que eu aprenda até lá, não importará a mais ninguém, o que quer que eu mude nesse tempo, é apenas uma escolha minha. Dispo-me de todas as palavras que permearam nossos encontros, de todas as possibilidades, e também de todos os acertos e erros.

Assim, desnuda, deixo nessa beirada da estrada, perto da cerca para não atrapalhar mais ninguém, deixo seu nome gravado na efemeridade do pó, o último resquício ainda preso na minha bagagem. Depois, deixo-me levar pela aragem leve feito pólen indo fertilizar outras flores.

domingo, 1 de julho de 2018

Um exercício para estar junto


Estar só é uma realidade ao mesmo tempo libertadora e assustadora. Porque, se de um lado você não deve satisfação a ninguém, por outro não é tão ruim assim ter alguém que cuide de você, ou que você tenha que cuidar. A liberdade mesma é assustadora. Agora você pode fazer o que quiser: e o que quero mesmo?

A mim parece que a vida toda é um misto de dores e alegrias que se sucedem ou se permeiam, se confundem. Às vezes me emociono em dizer “eu te amo” como se aquilo fosse uma avalanche descendo como lágrimas dos olhos. Às vezes um adeus é repleto de silêncio e ar seco, não ecoa, não reverbera, não incide. Mas pensa bem: o problema é do ralador ou do queijo? O queijo se esfola todo, mas não dá para culpar o ralador, afinal, ele é um ralador.

Sempre pensei na dor como algo entre lutadores, alguém que acerta outro no seu descuido. Isso é muito fácil quando parece que é o outro o responsável pelas dores que surgem. Agora, viva sozinho e me explique quem foi que deixou acabar o gás, o café ou a pasta de dente. Quem deixou a luz acesa, ou esqueceu de dar a descarga. Esse é outro aspecto do “viver só” que assusta: não tem mais ninguém para pôr a culpa.

Então, aprender a viver só é um grande passo para saber conviver com outras pessoas. Porque se você estiver esperando que vai poder deixar de fazer as coisas que tinha que fazer por falta de mais alguém, então encare: convivência para você é conveniência. Fala sério.

Ter um sócio, na vida ou nos negócios, não é largar tudo na mão do outro, porque isso é um peso, não é sociedade. Sociedade deve ser um movimento em que todos ganhem, não apenas um, detentor do poder de decisão ou da estabilidade. É muito cômodo colocar sua vida nas costas de outra pessoa e se isentar de tudo que der errado. Porque errar é inerente a quem age, mas quem não faz nada não está imune. Às vezes o erro esteve no ficar calado, omisso.

É muito difícil encarar os próprios erros, mas mais difícil é se perdoar. Eu sei. Por isso a dor. Dói muito admitir, e não é por orgulho, só, é que recebemos uma educação tão moralizadora que parece um pecado capital errar. Parece que só nos restará o inferno, que devemos pagar pelos erros, aquela coisa toda dramática e fatalista.

E afinal, o que é acertar? É o sucesso? Mas sucesso é tudo, todo o resultado atingido é um sucesso. Não ganhar em primeiro lugar é fracasso? Bem, a mim parece que inventamos um sistema de tortura e estresse quando colocamos elementos da vida em disputa. Porque a vida é uma história com fim previsto e certo. Morrer é certo. Certíssimo. E tem tantos caminhos possíveis para chegar lá que as escolhas confundem um indivíduo, imagine se ele está indo acompanhado e ambos tenham que decidir juntos o traçado.

Definitivamente, para mim, o pior de um relacionamento é quando existe um medo – explícito ou implícito – de errar. E fica aquele jogo de empurra-empurra, deixa-que-eu-deixo, e tudo mais. Talvez por isso o amor de amigo não seja problemático: na relação de amizade existe a cumplicidade, mas não a sensação de que, se o outro errar, vai levar você junto. Você não quer ver seu amigo mal e, ainda assim, aceita nele o direito de fazer o que quiser, e de que, muitas das vezes, ele vai bater com a cara no muro. Você reconhece a individualidade dele. No amor afetivo é muito fácil ultrapassar esses limites e se entender como uma unidade. De almas gêmeas a irmãos siameses. E a dor.

Uma coisa eu aprendi: a dor é um erro. E se estiver doendo muito, tenho que mudar, se quiser que pare de doer. Essa é uma decisão minha e de mais ninguém. Não é o carro que está indo na minha frente que tem que aumentar a velocidade, sou eu que tenho que acelerar e sair de trás – se tiver motor. Se não tiver, não adiantará brigar.

Sim. Estar só não é uma solução, é apenas um passo. Nunca vou desistir de me relacionar com alguém, e eu ia dizer com alguém em especial, mas no final, todas as pessoas que você escolhe para se relacionar são especiais (exceto para os cínicos). Porque, sendo a vida boa na essência, quero compartilhar isso com outra pessoa.