Ela tinha apenas noventa anos bem vividos. Nada mais. E
nesse pouco de história, como se fosse ao cabeleireiro fazer as unhas ou o
cabelo, ela ia desfiando o tecido da memória refazendo-o em outras vestes.
Assim, a cada vez mais bonita, ou mais alegre, ou mais amarelo que vermelho.
Assim, no encontro do que sentiu um dia com o que voltou a sentir, remoçava. Ela
contava sem pressa, pausando as palavras para ver a cena nos olhos de quem
ouvia. Contava e recontava, contava, ria, e retomava.
Um dia, no entanto, ela estava mais radiante. Cortara o
cabelo, tingira, se maquiara leve como a felicidade, lilás e azul, a boca rouge. Em seda esvoaçante com motivos
indianos, a saia longa, parecia pairar e não andar. Teria um encontro com
alguém que amara nos distantes dias de adolescência. Como estaria? Como seria?
Iria?
Viúva há muitos e muitos anos de um casamento feliz,
realizado, como poderia prever que nesse dia reencontraria aquele que talvez
fosse seu maior amor. O grande amor de uma vida. Ou não haverá um grande amor
na vida das pessoas e, sim, amores que prometiam, que insistiam, que
permaneciam e não foram? Porque os amores reais e não sonhados são o que são.
Doces, sofridos, molhados, duros, famintos ou bons. Bom de lembrar, de viver,
de acordar ao lado ou de sentir falta. Bom mas não o maior. Amores reais
acordam quando acordamos e adormecem quando adormecemos. Não duram anos
sonhados ou nos acompanham sozinhos.
Conhecera o rapaz quando encontrara seu olhar no dela.
Próximo. Tocável. Um sonho presente e cheio de promessas. Mas um destino
distante do seu, interrompido. Sofreu, doeu, e jamais esqueceu uma separação a
que não estava preparada. Brigou com deus, fez que ia se matar, fugiu de casa.
Em vão. Depois passou, conheceu umas tantas outras pessoas. Apaixonou-se umas
tantas outras e finalmente casou. Escolhera ou fora escolhida? Não importa. Era
o mesmo trem indo para o mesmo lugar. Quantas pessoas na sua vida seguirão por
tanto tempo o mesmo rumo que o seu? De mãos dadas e atenção. Velando acordadas
as noites que você não dormiu. Fazendo um chá. Trazendo uma flor. Quantas? Pois
assim fora sua vida.
Ainda assim, e por esse motivo, agora efusiva e contagiante,
estava se preparando para reencontrar seu grande amor distante e perdido no
tempo. Não. Um grande amor não se perde. Fica guardado por dentro das
pálpebras, é só fechar os olhos para reencontrar. Teria sido feliz com ele?
Ainda seria em sua memória uma felicidade tão intensa que de lembrar faria um
sorriso nos olhos? O amor realizado é mais pleno que o amor sonhado, possível e
etéreo? Perguntava-se, mas não esperava resposta. Não fora sua escolha a
separação, no entanto, a situação agora era toda outra.
Quase não dormira à noite. Ficou tentando preencher as
lacunas de uma magia que poderia ter sido. A vida toda que virou a esquina e
lhe escapou de ser. Não teve tempo de lamentar. Era tão bom só de lembrar! Já era
fascinante apenas repassar cada dia e cada momento que passaram juntos.
Lembrar-se do perfume, de uma tarde mais quente com nuvens e lua no céu dourado,
sentados no jardim de praça, achando que tudo seria possível. Fazendo planos
para a noite, e fazendo planos para depois. De lembrar, brilhou os olhos. De
lembrar como era tudo muito lindo. Lindo. Lindo. Terminou de contar e anunciava
sair correndo novamente, beijinhos em todos, a saia esvoaçante. Está atrasada,
já vai ao encontro? Não, não. Eu não vou. E saiu rindo.