segunda-feira, 25 de março de 2013

De olhos fechados



Ela tinha apenas noventa anos bem vividos. Nada mais. E nesse pouco de história, como se fosse ao cabeleireiro fazer as unhas ou o cabelo, ela ia desfiando o tecido da memória refazendo-o em outras vestes. Assim, a cada vez mais bonita, ou mais alegre, ou mais amarelo que vermelho. Assim, no encontro do que sentiu um dia com o que voltou a sentir, remoçava. Ela contava sem pressa, pausando as palavras para ver a cena nos olhos de quem ouvia. Contava e recontava, contava, ria, e retomava.

Um dia, no entanto, ela estava mais radiante. Cortara o cabelo, tingira, se maquiara leve como a felicidade, lilás e azul, a boca rouge. Em seda esvoaçante com motivos indianos, a saia longa, parecia pairar e não andar. Teria um encontro com alguém que amara nos distantes dias de adolescência. Como estaria? Como seria? Iria?

Viúva há muitos e muitos anos de um casamento feliz, realizado, como poderia prever que nesse dia reencontraria aquele que talvez fosse seu maior amor. O grande amor de uma vida. Ou não haverá um grande amor na vida das pessoas e, sim, amores que prometiam, que insistiam, que permaneciam e não foram? Porque os amores reais e não sonhados são o que são. Doces, sofridos, molhados, duros, famintos ou bons. Bom de lembrar, de viver, de acordar ao lado ou de sentir falta. Bom mas não o maior. Amores reais acordam quando acordamos e adormecem quando adormecemos. Não duram anos sonhados ou nos acompanham sozinhos.

Conhecera o rapaz quando encontrara seu olhar no dela. Próximo. Tocável. Um sonho presente e cheio de promessas. Mas um destino distante do seu, interrompido. Sofreu, doeu, e jamais esqueceu uma separação a que não estava preparada. Brigou com deus, fez que ia se matar, fugiu de casa. Em vão. Depois passou, conheceu umas tantas outras pessoas. Apaixonou-se umas tantas outras e finalmente casou. Escolhera ou fora escolhida? Não importa. Era o mesmo trem indo para o mesmo lugar. Quantas pessoas na sua vida seguirão por tanto tempo o mesmo rumo que o seu? De mãos dadas e atenção. Velando acordadas as noites que você não dormiu. Fazendo um chá. Trazendo uma flor. Quantas? Pois assim fora sua vida.

Ainda assim, e por esse motivo, agora efusiva e contagiante, estava se preparando para reencontrar seu grande amor distante e perdido no tempo. Não. Um grande amor não se perde. Fica guardado por dentro das pálpebras, é só fechar os olhos para reencontrar. Teria sido feliz com ele? Ainda seria em sua memória uma felicidade tão intensa que de lembrar faria um sorriso nos olhos? O amor realizado é mais pleno que o amor sonhado, possível e etéreo? Perguntava-se, mas não esperava resposta. Não fora sua escolha a separação, no entanto, a situação agora era toda outra. 

Quase não dormira à noite. Ficou tentando preencher as lacunas de uma magia que poderia ter sido. A vida toda que virou a esquina e lhe escapou de ser. Não teve tempo de lamentar. Era tão bom só de lembrar! Já era fascinante apenas repassar cada dia e cada momento que passaram juntos. Lembrar-se do perfume, de uma tarde mais quente com nuvens e lua no céu dourado, sentados no jardim de praça, achando que tudo seria possível. Fazendo planos para a noite, e fazendo planos para depois. De lembrar, brilhou os olhos. De lembrar como era tudo muito lindo. Lindo. Lindo. Terminou de contar e anunciava sair correndo novamente, beijinhos em todos, a saia esvoaçante. Está atrasada, já vai ao encontro? Não, não. Eu não vou. E saiu rindo.

sábado, 23 de março de 2013

O indivíduo e o palhaço



Imagine um indivíduo que se vista de palhaço e saia para a rua trabalhar. O palhaço não chama a atenção, passa incólume, ou faz apenas alguns rirem. Para esse, seu intento foi um lamento, talvez fracasso. Ele tinha em conta que seria comovente, que tiraria lágrimas de rir, que tudo seria tão divertido. Ele imaginava que cada gesto seu encenado no vazio da cena urbana faria um séquito de risos em torno do seu caminho. Mas não. Inadvertidamente, os passantes continuaram passando. Estavam atrasados para o trabalho, estavam preocupados, falando ao telefone, correndo. Alguns esbarraram em seu sapato grande, outros tropeçaram em seu gesto largo. Alguns risos, alguma estranheza, o olhar acompanhava um pouco o movimento. Mas não. Seguiram sua calçada, a cabeça olhando para o nada, o corpo desviando, esquivando.

O palhaço volta para casa amuado, frustrado. O que havia em seu humor que não provocava o riso alheio? O que faltava em seu traje, seu nariz vermelho, a bochecha larga? Faltava amarelo? Bolinhas coloridas em suas calças fofas? Deprimido, enfiou-se em casa. Tirou a roupa, jogou a buzina no chão, voltou com os bolsos cheios de balas, nenhuma criança correndo em seu encontro. O palhaço que não fez rir, doía.

Quanto ao indivíduo, o que dizer de seu feito? Vestiu-se, saiu, incorporou, voltou, despiu-se. Foi um sucesso. Porque haveria de ficar triste, quieto, mofado? Agiu como quisera. Portara-se como o papel exigia. Pronto. O indivíduo por traz da cara pintada se fez. Viveu. Carregou sua fantasia com determinação e empenho. Não foi para ele que faltaram risos. Não foi dele que sobraram silêncios. Chegou em casa, desfez-se do personagem. Viu o que tinha para comer, conversou ao telefone.

O palhaço, a despeito de sua frustração – foram apenas suas expectativas abaladas, não tem mais de que reclamar. Personagem que foi não lhe cabe depressão. Não vai ficar se lamentando a falta de aplausos, a pouca repercussão de sua performance. Não faz sentido a palhaço algum sentar e chorar sua lástima. Menos por ser palhaço, mais por ser apenas um personagem, um papel, um texto pré-fabricado, escrito para fazer rir. Mal escrito ou bem escrito, mal atuado ou bem dirigido, não importa. O palhaço frustrou, mas somente enquanto atuando. Agora, as roupas balofas estão penduradas na parede, o nariz vermelho na mesa. Uma lembrança do dia ainda pelas balas caídas dos bolsos.

O indivíduo e seu papel. Um não é o outro. Um não vale pelo outro. De que vale um personagem escrito em papel e guardado na biblioteca? De que vale um indivíduo sem papel? Vale por si. Sua história repleta de personagens e situações, palcos e encenações é que conta quem é. A si não faz diferença ter sido aplaudido ou vaiado. Homens que vivem atrás de reconhecimento estão por aí, pelos cantos e esquinas, vivendo das sombras de quem foram. Esmolam com o chapéu em riste. Debruçam-se sobre os passantes que fogem correndo. Aborrecidos. Inquietos. Personagens em busca de atores para ganhar prêmios, carinhos, atenção, olhares, seja o que for que não tenha.

O indivíduo e o personagem. Tal como o palhaço, o empresário, o professor, o aluno, o cantor, enfim, todos os papeis possíveis de se vestir. Com script, falas prontas, arranjos e rearranjos. Às vezes com aplausos, outras vaiados. Mas sempre um sucesso.

sexta-feira, 22 de março de 2013

O amor passa



Eu não entendo o amor, mas de nada adiantaria entender. O que aprendo com um não serve para outro. E o que erro com esse não é erro com aquele. Não, definitivamente, amor não é uma coisa para ser compreendida, sabida, pensada. Pura emoção, ou sentimento, ou apenas um bocado de neurônios emaranhados uns nos outros até chegar num lugar do cérebro que se reconheça: sim, é amor. Imagine que é o cérebro dizendo isso. O coração, que sabe ele sobre amor ou outra coisa qualquer?

Existe uma geografia do amor? Ao norte, extremo norte, a oitava acima do amor mais conhecida por amizade. Ao sul, um sentimento de insegurança e fragilidade chamado comumente de ciúme. A leste e oeste, os braços, imprescindíveis, abertos, cruzados às costas do outro, ou ao longo, ao largo, também atendendo pelo nome de abraço. Na cabeceira, o olhar desenvolto. Uma palavra marcada no mapa: eu. Você está fora do mapa, fora do alcance. Coordenada desprogramada e desmarcada.

Talvez a natureza do amor não seja espacial mas temporal. Dura um tempo determinado pelo combustível. Esse combustível que, por natureza própria, queima, vai se consumindo no trajeto. E depois, quando apenas sobre o ar – se não chegou a sufocar – num vazio de significados, a intimidade vira atrito. Um atrito sem fogo e sem paixão. A impaciência, o desânimo, a estupidez. A lua de mel termina com o despertador todo dia de manhã.

Mas que amor é esse que não suporta a realidade? Que não consegue conviver com as sombras e os escuros, inadvertidos pontos sem cor ou sem luz, papel caído atrás da gaveta, poeira cósmica. Tem amor duro, inquebrantável, sílex cortante, mais duro que o sorriso negado? Amor que lavra o peito duro e escorraçado com arado afiado. E que espera com isso uma semente mágica, salvadora. Que amor é esse que não transpõe a colina? Pois a tempestade é mais bonita lá de cima. 

Ou o amor é coisa para ser apenas luminoso e alegre, um lugar para ser abandonado caso chova ou caia o teto, sem busca por sobreviventes. Afinal, a vida vale pelas escolhas tomadas. O resto é apenas destino. O resto é apenas o rio que passa. Sem pressa. Sem prazo. Sem dor. Por que haveria de doer?
Não acredito em amor que vista a máscara de ferro da impassividade. Justa e certa. Que empunhe a espada e saia gritando no campo de batalha criado por seus pés, gritando seja lá o que for. O amor amolece, é inglório, não ganha nada. E quando chega a hora de partir, parte. Sem olhar para trás. Parte para ser inteiro em outra parte.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O sorriso é Arte



A inteligência me apaixona. Não falo apenas da inteligência matemática do pássaro que alça voo, mas do momento exato em que abre as asas e salta para o vazio. A inteligência que ri, solta gargalhadas, espirituosa e leve, que vê luz onde quer que se vire, que faz luz onde quer que alcance. E a inteligência que faz lágrimas escorrerem sem querer, a pele arrepiada, um tremor no peito, faz emoção aflorar fácil, ondas pela pele e o olhar embaçando.

A inteligência que é sensível me atrai. Que captura o instante e imortaliza em uma palavra, um gesto, um passo. O passo fugidio do inesperado, a ponta dos pés. Que passa a língua sobre o sal e fala doce, macio. Que é perspicaz, mas não cortante; que é líquido, mas não derretido. Comedido e desmedido. Irremediável.

Porque existe uma inteligência que anda em trilhos e no fio da navalha. Que só vê certo e errado na vida, que separa o joio do trigo, que não come arroz com feijão. Quer achar o difícil das coisas e não vê o fácil ululante. E a mim me toca aquela que consegue ver o brilho no olhar da formiga ou da cigarra. Que não tem medo de misturar azul com vermelho. Que saboreia o doce com o azedo. Que escorrega na água da chuva. E, ao cair, joga água em quem não caiu e ri junto. Ri muito.

O sorriso no rosto solto é dessas inteligências que fazem bonito. A mão que acena e o queixo que cumprimenta também. O olhar que sorri é inteligência. Sorri para o adeus doendo e para o reencontro sofrido. Sorri para a falta de palavras e para o silêncio que faltava. Sorri para tudo que deixou de ser porque os horários não bateram, porque as expectativas não bateram, ou porque bateu demais. Para a ausência, para as costas de todos os que se viraram, e para os braços abertos de todos os amantes. Sorri presente.

Talvez a maior inteligência seja o riso. Maior que a matemática, a física quântica, maior que o entendimento sobre o oculto e indesvendável. O riso quieto, secreto, que ninguém viu, nem você, que emerge de um recôndito submerso momento em que, na perseguição do que viu, o olhar perdeu a si mesmo. E ele ria. 

Não, nenhum saber se iguala ao que sabe um sorriso. Nem a plástica colorida de uma tela de klimt, nem a envergadura mais colorida de um mozart, ou a densidade provocante e cinza de pina. Mas o saber que a arte tem que se aproxima mais é aquele fechar o olho para sentir por dentro, é aquela sensação em cascata que vai enchendo o peito, transbordando em algo que precisa ser expressado também, compartilhado, transmutado. A arte, sim, é dessas inteligências que são sabedoria. Que atingem o cerne da alma quando atingem o coração e a pele. Ali, nesse plano, a arte encontra o sorriso. E a vida se completa.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Requiem para a passagem



No conjunto de sua obra, deixou uma coleção de latas. Grandes, pequenas, muito pequenas, douradas, quadradas, azuis, redondas, vermelhas, sextavadas, achatadas, longas, verdes. Uma coleção de latas quase improvável. Ao que parece, pode ser que haja uma lata para cada dia do ano. Uma lata para cada momento da vida. Mas isso, somente o tempo dirá, após o término do inventário.

Deixou também uma faca, afiadíssima. Uma faca capaz de cortar o pensamento, se assim fosse empregada. Ou talvez de riscar o ar para criar um novo divisor. Para separar a dúvida, destrinchá-la, dissecá-la. Cortá-la em mais pedaços do que há nela inteira. Uma faca, enfim, única, ímpar, forte o suficiente para quebrar os ossos da canela, e delicada a ponto de retirar apenas uma fina camada de células da superfície da pele. Sua obra-prima? Sua expressão máxima? Talvez.

Foram encontrados comprimidos à cabeceira, aparentemente de valor inócuo ou nenhum. Alguns azuis, outros amarelos, mas sem muita arte. Encapsulado, um pouco de pó cinza e marron parecia ser uma tentativa acanhada de preservar a vida que passava sem deixar rastros ou resquícios ou assunto. Ao olhar, era como se um dia, ao acordar, desse conta da falta de algo, falta de algo realmente importante, enigmático, e na urgência do sentimento naquela hora da manhã, fosse capturando tudo à sua volta, um pouco da cinza do cigarro, o pó dos móveis abandonados, a terra dos sapatos, fosse retirando de tudo um registro de sua passagem. Para quem?

Garrafas vazias de vinhos bons, uma de azeite de oliva extra virgem, farelos de pão, xícara de café suja, um queijo, sobre uma toalha xadrez vermelha, marcam o que talvez fora sua última refeição. De sua trajetória até esse derradeiro momento, restos da frugalidade e intensidade que marcaram sua vida. Um misto de satisfação com profundo senso de inadequação no mundo. Não haveria lugar para seu descanso, não haveria busca por descanso, não poderia haver plenitude em sua busca. Um dia após o outro desigual feito onda de mar. Inquietude que respira e pulsa e anda. Mas alguma coisa ali na casa ainda indica que continuará respirando e pulsando e seguindo. O que?

Agora que se livrara da dor de existir, da dor companheira cotidiana, sua marca registrada em cada gesto e cada letra, um mundo novo haveria para ser desbravado. O que haverá depois de uma existência sensível e sucetível, de sangue correndo em veias abertas por um coração livre? Haverá vida? Haverá possibilidade de alegria? A alegria poderá ser matéria-prima para outra existência fértil? Saberia somar alguém que viveu guardando cada gota de suor, cada lágrima escorrida? Depois de dilacerar-se sem dó de sua pele, saberia sentir o frescor leve e fugaz da brisa que passa? Passa sem deixar vestígio, passa simplesmente?

Não é possível mais olhar para trás para adivinhar os motivos ou as escolhas. De todos os caminhos que há para seguir, seguro que onde termina a tristeza começa a alegria. Seguro e certo de que no azul do firmamento, quando cai o dia, o encontro dourado da noite que se anuncia, ressoa no peito um gongo chamado a vida é. Talvez tivesse bastado deixar a dor em qualquer canto ou esquina para então caminhar solto e leve. Bastava renunciar bravamente ao desejo de sentir tudo de todas as formas para então sobrar o creme, a nata doce que cobre as existências despretensiosas e calmas. Mas já não importam mais as divagações. O que resta ali é apenas a pele da cobra, não mais a cobra.