quinta-feira, 7 de março de 2013

Requiem para a passagem



No conjunto de sua obra, deixou uma coleção de latas. Grandes, pequenas, muito pequenas, douradas, quadradas, azuis, redondas, vermelhas, sextavadas, achatadas, longas, verdes. Uma coleção de latas quase improvável. Ao que parece, pode ser que haja uma lata para cada dia do ano. Uma lata para cada momento da vida. Mas isso, somente o tempo dirá, após o término do inventário.

Deixou também uma faca, afiadíssima. Uma faca capaz de cortar o pensamento, se assim fosse empregada. Ou talvez de riscar o ar para criar um novo divisor. Para separar a dúvida, destrinchá-la, dissecá-la. Cortá-la em mais pedaços do que há nela inteira. Uma faca, enfim, única, ímpar, forte o suficiente para quebrar os ossos da canela, e delicada a ponto de retirar apenas uma fina camada de células da superfície da pele. Sua obra-prima? Sua expressão máxima? Talvez.

Foram encontrados comprimidos à cabeceira, aparentemente de valor inócuo ou nenhum. Alguns azuis, outros amarelos, mas sem muita arte. Encapsulado, um pouco de pó cinza e marron parecia ser uma tentativa acanhada de preservar a vida que passava sem deixar rastros ou resquícios ou assunto. Ao olhar, era como se um dia, ao acordar, desse conta da falta de algo, falta de algo realmente importante, enigmático, e na urgência do sentimento naquela hora da manhã, fosse capturando tudo à sua volta, um pouco da cinza do cigarro, o pó dos móveis abandonados, a terra dos sapatos, fosse retirando de tudo um registro de sua passagem. Para quem?

Garrafas vazias de vinhos bons, uma de azeite de oliva extra virgem, farelos de pão, xícara de café suja, um queijo, sobre uma toalha xadrez vermelha, marcam o que talvez fora sua última refeição. De sua trajetória até esse derradeiro momento, restos da frugalidade e intensidade que marcaram sua vida. Um misto de satisfação com profundo senso de inadequação no mundo. Não haveria lugar para seu descanso, não haveria busca por descanso, não poderia haver plenitude em sua busca. Um dia após o outro desigual feito onda de mar. Inquietude que respira e pulsa e anda. Mas alguma coisa ali na casa ainda indica que continuará respirando e pulsando e seguindo. O que?

Agora que se livrara da dor de existir, da dor companheira cotidiana, sua marca registrada em cada gesto e cada letra, um mundo novo haveria para ser desbravado. O que haverá depois de uma existência sensível e sucetível, de sangue correndo em veias abertas por um coração livre? Haverá vida? Haverá possibilidade de alegria? A alegria poderá ser matéria-prima para outra existência fértil? Saberia somar alguém que viveu guardando cada gota de suor, cada lágrima escorrida? Depois de dilacerar-se sem dó de sua pele, saberia sentir o frescor leve e fugaz da brisa que passa? Passa sem deixar vestígio, passa simplesmente?

Não é possível mais olhar para trás para adivinhar os motivos ou as escolhas. De todos os caminhos que há para seguir, seguro que onde termina a tristeza começa a alegria. Seguro e certo de que no azul do firmamento, quando cai o dia, o encontro dourado da noite que se anuncia, ressoa no peito um gongo chamado a vida é. Talvez tivesse bastado deixar a dor em qualquer canto ou esquina para então caminhar solto e leve. Bastava renunciar bravamente ao desejo de sentir tudo de todas as formas para então sobrar o creme, a nata doce que cobre as existências despretensiosas e calmas. Mas já não importam mais as divagações. O que resta ali é apenas a pele da cobra, não mais a cobra.  

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