No conjunto de sua obra, deixou uma coleção de latas.
Grandes, pequenas, muito pequenas, douradas, quadradas, azuis, redondas,
vermelhas, sextavadas, achatadas, longas, verdes. Uma coleção de latas quase
improvável. Ao que parece, pode ser que haja uma lata para cada dia do ano. Uma
lata para cada momento da vida. Mas isso, somente o tempo dirá, após o término
do inventário.
Deixou também uma faca, afiadíssima. Uma faca capaz de
cortar o pensamento, se assim fosse empregada. Ou talvez de riscar o ar para criar
um novo divisor. Para separar a dúvida, destrinchá-la, dissecá-la. Cortá-la em
mais pedaços do que há nela inteira. Uma faca, enfim, única, ímpar, forte o
suficiente para quebrar os ossos da canela, e delicada a ponto de retirar
apenas uma fina camada de células da superfície da pele. Sua obra-prima? Sua
expressão máxima? Talvez.
Foram encontrados comprimidos à cabeceira, aparentemente de
valor inócuo ou nenhum. Alguns azuis, outros amarelos, mas sem muita arte.
Encapsulado, um pouco de pó cinza e marron parecia ser uma tentativa acanhada
de preservar a vida que passava sem deixar rastros ou resquícios ou assunto. Ao
olhar, era como se um dia, ao acordar, desse conta da falta de algo, falta de
algo realmente importante, enigmático, e na urgência do sentimento naquela hora
da manhã, fosse capturando tudo à sua volta, um pouco da cinza do cigarro, o pó
dos móveis abandonados, a terra dos sapatos, fosse retirando de tudo um
registro de sua passagem. Para quem?
Garrafas vazias de vinhos bons, uma de azeite de oliva extra
virgem, farelos de pão, xícara de café suja, um queijo, sobre uma toalha xadrez
vermelha, marcam o que talvez fora sua última refeição. De sua trajetória até
esse derradeiro momento, restos da frugalidade e intensidade que marcaram sua
vida. Um misto de satisfação com profundo senso de inadequação no mundo. Não
haveria lugar para seu descanso, não haveria busca por descanso, não poderia
haver plenitude em sua busca. Um dia após o outro desigual feito onda de mar.
Inquietude que respira e pulsa e anda. Mas alguma coisa ali na casa ainda
indica que continuará respirando e pulsando e seguindo. O que?
Agora que se livrara da dor de existir, da dor companheira
cotidiana, sua marca registrada em cada gesto e cada letra, um mundo novo
haveria para ser desbravado. O que haverá depois de uma existência sensível e sucetível,
de sangue correndo em veias abertas por um coração livre? Haverá vida? Haverá
possibilidade de alegria? A alegria poderá ser matéria-prima para outra
existência fértil? Saberia somar alguém que viveu guardando cada gota de suor,
cada lágrima escorrida? Depois de dilacerar-se sem dó de sua pele, saberia
sentir o frescor leve e fugaz da brisa que passa? Passa sem deixar vestígio,
passa simplesmente?
Não é possível mais olhar para trás para adivinhar os
motivos ou as escolhas. De todos os caminhos que há para seguir, seguro que
onde termina a tristeza começa a alegria. Seguro e certo de que no azul do
firmamento, quando cai o dia, o encontro dourado da noite que se anuncia,
ressoa no peito um gongo chamado a vida é.
Talvez tivesse bastado deixar a dor em qualquer canto ou esquina para então
caminhar solto e leve. Bastava renunciar bravamente ao desejo de sentir tudo de
todas as formas para então sobrar o creme, a nata doce que cobre as existências
despretensiosas e calmas. Mas já não importam mais as divagações. O que resta
ali é apenas a pele da cobra, não mais a cobra.
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