terça-feira, 5 de março de 2013

Deus e o diabo



Mas também não é assim, qualquer amor é lindo. Tem amor muito difícil de entender. Tem mãe que engole o filho por amor. Tem pai que abandona o filho por amor. É amor demais, amor que não tem lugar num mundo razoável. Amor intransponível como rocha em mata fechada. Amor insuportável como uma onda em tempestade. Ainda assim, amor.

Nem todo amor é alegria. Tem amores vãos. Amores silenciosos e temerosos feitos de noite sem lua. E amores insaciáveis, gulosos e ciumentos, que pesam mais que aprazem. Amores difíceis de se chamar de amor, porque aprisionam, porque invadem, não trocam. Amor feio, pegajoso, que pede mais que dá. Desajeitado, sofrido. 

E o feio e o bonito são coisa para se achar? Quem pode dizer de um filho que vê partir o pai doente, irreparavelmente doente, e que chora aliviado pelos dois, quem pode dizer que seja um filho ingrato? Ou quem pode julgar a mulher que por seu filho renuncia sua vida pessoal? Ou o contrário, meu deus, o contrário de tudo?

Ou talvez alguém venha dizer que isso não é amor. Que os amores verdadeiros são justos, são equânimes, divinos. Mas quando se define justiça, é para quem? Para a maioria ou para o indivíduo? A altura de um indivíduo é a extensão de seus braços, de uma ponta a outra, e isso sim é justiça. O tamanho de sua alma vai além do que pode ver o seu olhar.

Amor precisa ser bom, alegre, divertido? Amor é um critério ou um argumento? Ele afina ou toca? Tem bitola? Anda em trilhos? Não erra? Mas tem quem acredite que ama a pessoa errada. Ou errou porque amou demais. Não. Amor não é uma represa que se contenha. Não é um rio que não se detenha. Não é um deus nem um diabo. 

O amor é plural. Está dos dois lados da margem. Escreve sem linhas e ocupa todos os espaços vazios ou preenchidos. Sobrepõe. Ultrapassa. Retém. Amor azul e rosa e cinza, transparente e sonso. Dolorido e sôfrego. Amor que mergulha fundo e amor asmático, congestionado, mal dormido. Amor de não, sempre não. Que quer tudo, tudo e não se contenta com menos.

O amor, às vezes, se torna cínico, debochado, desbocado. Cospe no prato que o alimentou como se soubesse que não é da árvore o fruto que comeu. Era dele. Amor que não divide, que não agradece, amor, enfim, que suga a seiva doce e delicada da vida até sua saciedade. Amor. 

Tem amor que vai embora, e, ao partir, leva junto o nome, o olhar, leva junto o ritmo do batimento cardíaco. Porque a intensidade de um amor não está na quantidade de risos que ele gerou, mas na pele toda que ele tocou. A intensidade, ninguém fala, também dói. Ser intenso é ser prisioneiro de um rio em corredeira, descendo por entre pedras e fazendo espuma. É mais bonito de olhar do que de sentir. Mas a água não se priva.

Amor é um sim. E não é todo mundo que consegue viver o sim. O sim é pleno de sentidos, de direções e de vieses. O sim é talvez, é quem sabe, é o dono do muro. Pode ficar, pode esperar, pode tudo. O sim encabeça a lista dos relegados, dos banidos e dos desvalidos. Quem disse sim e saiu de casa, arriscou tudo, quem disse sim e ficou em casa, arriscou tudo. O sim não abaixa a cabeça para não encarar, mas para a onda passar. O sim é todo o universo de possíveis e impossíveis feito átomos tentando chegar primeiro. 

Amor não é sentimento. É um gesto. E há momentos absolutamente impossíveis em que agir é a melhor solução. Qualquer que seja o passo. Qualquer que seja a direção.

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