sábado, 23 de março de 2013

O indivíduo e o palhaço



Imagine um indivíduo que se vista de palhaço e saia para a rua trabalhar. O palhaço não chama a atenção, passa incólume, ou faz apenas alguns rirem. Para esse, seu intento foi um lamento, talvez fracasso. Ele tinha em conta que seria comovente, que tiraria lágrimas de rir, que tudo seria tão divertido. Ele imaginava que cada gesto seu encenado no vazio da cena urbana faria um séquito de risos em torno do seu caminho. Mas não. Inadvertidamente, os passantes continuaram passando. Estavam atrasados para o trabalho, estavam preocupados, falando ao telefone, correndo. Alguns esbarraram em seu sapato grande, outros tropeçaram em seu gesto largo. Alguns risos, alguma estranheza, o olhar acompanhava um pouco o movimento. Mas não. Seguiram sua calçada, a cabeça olhando para o nada, o corpo desviando, esquivando.

O palhaço volta para casa amuado, frustrado. O que havia em seu humor que não provocava o riso alheio? O que faltava em seu traje, seu nariz vermelho, a bochecha larga? Faltava amarelo? Bolinhas coloridas em suas calças fofas? Deprimido, enfiou-se em casa. Tirou a roupa, jogou a buzina no chão, voltou com os bolsos cheios de balas, nenhuma criança correndo em seu encontro. O palhaço que não fez rir, doía.

Quanto ao indivíduo, o que dizer de seu feito? Vestiu-se, saiu, incorporou, voltou, despiu-se. Foi um sucesso. Porque haveria de ficar triste, quieto, mofado? Agiu como quisera. Portara-se como o papel exigia. Pronto. O indivíduo por traz da cara pintada se fez. Viveu. Carregou sua fantasia com determinação e empenho. Não foi para ele que faltaram risos. Não foi dele que sobraram silêncios. Chegou em casa, desfez-se do personagem. Viu o que tinha para comer, conversou ao telefone.

O palhaço, a despeito de sua frustração – foram apenas suas expectativas abaladas, não tem mais de que reclamar. Personagem que foi não lhe cabe depressão. Não vai ficar se lamentando a falta de aplausos, a pouca repercussão de sua performance. Não faz sentido a palhaço algum sentar e chorar sua lástima. Menos por ser palhaço, mais por ser apenas um personagem, um papel, um texto pré-fabricado, escrito para fazer rir. Mal escrito ou bem escrito, mal atuado ou bem dirigido, não importa. O palhaço frustrou, mas somente enquanto atuando. Agora, as roupas balofas estão penduradas na parede, o nariz vermelho na mesa. Uma lembrança do dia ainda pelas balas caídas dos bolsos.

O indivíduo e seu papel. Um não é o outro. Um não vale pelo outro. De que vale um personagem escrito em papel e guardado na biblioteca? De que vale um indivíduo sem papel? Vale por si. Sua história repleta de personagens e situações, palcos e encenações é que conta quem é. A si não faz diferença ter sido aplaudido ou vaiado. Homens que vivem atrás de reconhecimento estão por aí, pelos cantos e esquinas, vivendo das sombras de quem foram. Esmolam com o chapéu em riste. Debruçam-se sobre os passantes que fogem correndo. Aborrecidos. Inquietos. Personagens em busca de atores para ganhar prêmios, carinhos, atenção, olhares, seja o que for que não tenha.

O indivíduo e o personagem. Tal como o palhaço, o empresário, o professor, o aluno, o cantor, enfim, todos os papeis possíveis de se vestir. Com script, falas prontas, arranjos e rearranjos. Às vezes com aplausos, outras vaiados. Mas sempre um sucesso.

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