Abri um vinho, servi uma taça e brindei à saúde de todos os que fazem de suas escolhas um motivo para ser feliz. Brindei às escolhas que, muitas vezes doloridas ou difíceis, ainda assim são escolhas e por si sós são um bom motivo para brindar. Já havia colocado umas fatias de pão integral para tostar um pouco e começava a derreter manteiga com pasta de sal e alho poró. Depois do brinde, derramei um ovo caipira – mas caipira mesmo, desses que a galinha cresceu e cisca em quintal, solta, comendo milho e pastando, lá encima nos altos dos Venâncios – um ovo perfeito sobre a manteiga que se movia verdejada e, por cima de tudo, creme de leite fresco.
Pensei se as pessoas que vivem com alguém o tempo todo podem desfrutar de um momento desses. Um momento em que você está ali preparando um jantar leve mas que era o que você realmente queria sem ter que negociar nada com ninguém. É ótimo se relacionar emocionalmente com alguém. É ótimo trocar idéias, ouvir e crescer em casa, sem nenhum esforço. Mas dividir com outra pessoa o mesmo espaço exige uma energia extra. Exige negociar o tempo todo o que, como e quando. Não tem jeito. É claro que tem aquelas pessoas com quem podemos apenas pensar, cuja harmonia é tão real que chega a ser silenciosa. Parece que conectou uma antena, que a radiação do pensamento foi capturada pelo outro instantaneamente a ponto de ser quase uma extensão de seu braço, de seu corpo.
O certo é que meu ovo ficou maravilhoso. Normalmente faço isso no forno, mas estava com preguiça, então, cozinhei na frigideira mesmo. Para ficar como gosto, a clara branca e a gema mole, tampei e abaixei o fogo. O creme de leite tem que ser fresco, pois ele ferve e de outra maneira talharia, o que daria uma impressão ruim ao prato. Servi à mesa na própria frigideira para continuar bem quentinha. O pão integral recebeu um pouco de manteiga antes de molhar delicadamente na gema amarela amarela amarela.
Nesse instante, esqueci completamente minha conta corrente, a vida que roda lá fora, lá onde engrenagens se movendo parecem ser mais fortes que a vontade, esqueci de pensar o que farei amanhã, depois de acordar, no trabalho, com os cães e gatos e o que farei da minha vida. A vida é um pouco uma taça de vinho: cheia é linda, vermelho rubi e perfumada, mas só tem sentido enquanto se esvazia, enchendo de alegria enquanto se vai. O que ficou? não importa mais. Não fica nada. A vida vale pelo que passou, no instante exato em que está passando. Nem mais, nem menos.
Por isso, olho sem arrependimento o prato vazio e um pouco raspado de pão. Pelo contrário. Acho que todo mundo deveria dedicar um tempo para dizer-se “eu te amo” assim, de forma concreta e real, mensurável. Eu te amo em cada ingrediente que coloco. Eu te amo em cada bocado que levo à boca, querendo, já adivinhando o gosto pelo perfume que inalo, eu me amo. Quem não se ama certamente não reconhece nem valoriza o amor de outrem. E ademais, amar é uma atitude, não um desejo. Amar é repleto de gestos, movimentos e dedicação. Se não der para você parar e se cuidar, se olhar longamente no espelho, cobrir-se com afeto, sobretudo em noites sem lareira, se não der para você sair do seu lugar de conforto, claro e acessível, para abrir a janela e deixar o vento entrar, frio ou forte, desarrumado, então o que você tem feito da vida? Da sua vida. O que faz sentido quando você se encara sem desculpas, sem promessas, completamente desamparado como um bebê que acabou de nascer? Bom, muitos bebês vão receber o abraço quente e reconfortante de mamães que os esperam. Hoje, você só vai se amparar nas suas certezas.
Agora, não tirei o prato da mesa não. Nem a taça vazia foi parar na pia. Deixei a manteiga destampada, deixei a mesa assim posta e decomposta. Deixei tudo sem obrigação. Um mimosinho. Um excesso. Amanhã, quando for preparar o café da manhã, eu cuido disso. Amanhã é amanhã e hoje estou viva. Que bom que é poder chegar a entender o valor de sair de casa e de voltar. E poder ir dormir tranquila só porque fiz uma comida para mim. (vou dormir antes que algum psiquiatra comece a achar anormal minha conversa íntima e solitária, autosolidária, e venha me trazer algum remédio. A vida que passa pelos gestos que fazem sentido não precisa de remédios).
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