Adoro quando cozinho para mim. O cuidado se reflete no sabor. É um recado bem dado de eu te amo. Quando o prato é lentilha com rodelas de cebolas douradas e pão quentinho com manteiga, aí é eu te amo te amo te amo muito. Imagina então com um copo de vinho branco torrontés. Hoje foi pura paixão.
A comida é uma profecia, ela quase fala o que vai vir depois. Ela emociona e faz rir. A melhor comida é essa, depois de degustada, vai soltando a língua, vai torcendo as imagens, vai clareando o pensamento até fazer rir a valer. Aposto que você pensava que era o vinho, mas não é não. Comida boa, esse o segredo. Comida feita com intenção, boas intenções, claro.
As intenções moram nas mãos. Você lava a lentilha debaixo da água que escorre pelas mãos e lá se foram aquelas intenções iniciais temperando o prato. Depois fatia com cuidado, bem fininhas, umas rodelas de cebola, segurando a faca cirurgicamente. Mais intenções. Depois ainda, enquanto a água borbulha revirando os grãos de lentilha de um lado ao outro da panela, você coloca azeite de oliva numa frigideira e refoga com paciência todas as rodelinhas de cebola. Vai caramelizando devagar para que ela solte aquele perfume maravilhoso. Melhor que isso, só se você refogar na manteiga.
Dizem tanta bobagem a respeito de comida. Imagina que falam mal da manteiga como se ela saísse de um conto de vilões. O que faz mal é o medo, o medo de comer, porque tudo que traz alegria ao coração, faz bem ao corpo também. Alegria verdadeira, não prazer apenas. Alegria que é a oitava anterior da felicidade, alegria diária, cotidiana, repetitiva. Dessas que você reconhece quando chega de manhã e olha no espelho. Dessas que você não se aguenta quando o gato se embola no tapete fazendo de conta que está massacrando um rival. Alegria ela mesma.
Fazer comida, comer e se divertir muito, dava para fazer filosofia na cozinha só de ficar pensando nessa combinação. Afinal, um prato é um prato é um prato. E tudo que perfuma chega à alma, sutil e doce, cuidando para que ela continue leve, continue firme em seu propósito. Sim, a comida que chega até a alma recombina suas idéias, justo a cabeça que é o lugar mais estéril de você. Faz com que tudo vire semente de novo. Semente de flores, semente de frutos suculentos, porque saciar é a missão de todos nós. Saciar a dor que pede um conforto. Saciar o pescoço tenso e inflexível depois do não. Saciar as pernas cansadas de correr atrás do mundo que, no entanto, ficou para trás dos pés. Abastecer os mananciais de riso e de passadas-de-mãos-na-cabeça despreocupados e singelos. E o estômago, claro, fazê-lo não parar de consumir-se.
E assim, ir transformando todas as proteínas, vitaminas, sais minerais, ir transformando a gordura em emoções picadinhas de amor e certeza. Porque é por esse motivo que se come. Come-se para ficar forte, fortalecer uma vontade fraca, um sonho frágil, um olhar débil. Come-se para poder subir mais alto os degraus da criação. Para fazer valer cada voto de desapego e compromisso. Pois para saber a medida certa das coisas, a distância equânime entre o corpo e alma, entre a cabeça e o coração, entre o desejo e o amor, é preciso muita força de vontade, muito pão com manteiga. E uma crença inabalável no poder das mãos que fazem de coisas secas e feias um sorriso no rosto.
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