Acho que o amor é a crença de que tudo seja possível mesmo
diante de uma catástrofe iminente. Ele faz a boca ficar aberta sem resposta,
perplexa, diante de algo que é totalmente diferente do esperado. É como chupar
bala, a última, sem se preocupar se perderá o apetite, ou se já escovou os
dentes, ou ainda, se lhe pertence. Amor é uma total falta de culpa. Uma
absoluta confiança no improvável.
Talvez por isso, eu resista em aceitar o fim. Resista em
admitir que seja hora de partir. Que a água já está batendo forte no peito,
hora de abandonar o barco. Difícil crer na descrença. Eu preferia ser dispensado
do que pedir a conta; que me seja dito “fora!” do que dizer “estou indo”.
Refuta-me, despreza-me, ignora-me. Assim, apesar da dor, tudo fica mais fácil.
Ou vai assim homeopaticamente me fazendo sofrer. Sofrer até
perder a dignidade, até perder tudo, para ver se então me convenço de que não
há nada mais a fazer. Que não me resta senão ir, de mãos abanando, os ombros
ainda um pouco caídos, sem vontade alguma de olhar para trás. Vai me tirando a
comida, depois a água, por último a luz. Vai me deixando com frio, com sono, me
deixando com dúvidas. Revira minha gaveta em busca de alguma coisa, remexe meus
bolsos, as ligações recebidas, as mensagens enviadas. Cheira meu rastro até
adivinhar meus pensamentos. Depois me põe para secar na cerca.
Talvez assim, na marra, eu acabe por entender que minhas
pernas têm que se mover, me levar para longe. Correndo. Quem sabe eu perceba
que não trago nada nas mãos, e o que fui buscar, esvaiu. E eu aceite, mais que
a morte, o definhamento.
Eu, que queria envelhecer ao lado de alguém, vejo murchar a emoção
como um balão que perde o gás, perde o viço, enruga, desbota. Eu, que queria
amadurecer com alguém uma vida possível, doce e suculenta, cotidiana. Eu,
enfim, que ansiava por trocar olhares sem legendas, ou frases sem tradução, que
esperava pela mão estendida para tocar a minha estendida, e levá-la
delicadamente ao peito. Talvez eu ainda tenha que aprender muito.
Aprender o que é isso. O que é o outro. O que sou eu, meus
limites, minhas fronteiras. E o que é a construção, a rede que entrelaça, ora
invisível, ora permeável, dois caminhos, dois mundos, e o resto todo que os
une. A vida contraída entre duas pessoas que se querem cruzando o espaço
repleto de sinais, signos, pedras. A vida quase impossível no limiar de duas
consciências. Num bombardeio de emoções viscerais e certeiras, capazes de
consumir até o último neurônio normal. Aprender a ser alheio a tudo isso.
Aprender o que é estar junto, andar com. O que sei a
respeito disso? Andar junto não é perder o chão, ou revezar os pés. Não é
seguir sequer na mesma direção. Não é sincronizar a consciência para entender
as mesmas coisas; não é voar o mesmo plano de voo. Também não é atrelar o vagão
na mesma locomotiva, ou comprar o bilhete para o mesmo jogo. Não. Andar junto
não pode ser bom se alguém vive o sonho do outro incondicionalmente,
totalmente, mergulhado de cabeça. Até porque, de fato, nada é assim
incondicional. E o preço não negociado antes é outro tipo de entrelaçamento.
Outro tipo de compartilhamento. A conta que se apresenta quando houve demasiado
empenho, demasiada entrega, não aceita pagamentos sem drama. Mas o que é,
então?
Sei de mim apenas o que me faz acordar pela manhã. Sem querer
ser herói de mim. Ter a coragem de me lançar no desconhecido de outro alguém. Com
todos os medos que podem acompanhar um tal desejo. Tenho medo desses amores
implantes, que fazem ponte de safena no meu peito arfante. Esses amores que se
jogam como se eu fosse um precipício, sem fim. Tenho medo de me atirar em rios
que não vejo o fundo, de me apoiar naquilo que não tem raiz. No trançado da
vida, quero seguir criando e me recriando, sem me impor para ninguém, posto que
também o outro queira se criar. Seguir sem salvar ninguém, eu mesma na trajetória
de me perder. Correr. Voar a liberdade que tira o ar. A liberdade difícil no
espaço entre dois. Entre dois e o mundo que há em torno.
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