Certa vez li um texto de um antropólogo que afirmava ter
nossa civilização começado da junção de dois povos diferentes: um nômade,
caçador e o outro agricultor, sedentário. Os dois se digladiaram em algumas
circunstâncias e, obviamente, os caçadores venceram. É fácil ver esse traço na
nossa civilização atual. Em geral as pessoas saem de casa para caçar. Vestem-se
para caçar. Andam em tribos para ganharem forças, mas o resultado da caçada é
individual. Alguns ostentam seus troféus pela casa, ou virtualmente pela net.
Fotos de suas conquistas por todos os lados. Reconhecimento do seu poder e
heroísmo. Pegar, caçar, ficar. Tudo muito rápido e ágil. Tudo estrategicamente
arquitetado e descartável. Tudo isso devidamente valorizado e estimulado.
Até que o suficiente seja conquistado. Ou seja preso pela
presa. Sim, porque a presa também sabe se defender. Como a aranha que tece e
espera, a presa indefesa se prepara. Vai cozinhar, arrumar, limpar, casar. Então,
o guerreiro se acomoda um pouco e deixa o poder adormecido na lembrança de quem
foi. Encontrou um pasto gordo para sua criação crescer. Pode dormir tranquilo,
seguro. Pode engordar a barriga, pode perder tempo, relaxar, comer doces a
valer. A agilidade de antes não é mais necessária. Não precisa fugir correndo
de outros predadores. Sobretudo valoriza-se, pois o mercado prefere os
empregados. Desocupados e avulsos não são confiáveis.
Ainda assim, claro, tem aqueles que não se contentam com
nada. Podem ter o melhor troféu em casa, mas ainda são caçadores: procuram
desafios e novas fronteiras. Voltam para casa diariamente apenas para ganhar
forças. Precisam do risco. O risco de serem pegos, o risco de serem caçados.
Existe em todo caçador um desejo secreto de virar presa, tanto quanto a presa
sonha um dia virar predador. É fato que caçadores históricos foram fisgados por
alguma horta bem preparada, uma comida bem cozida, e uma roupa de cama limpa.
E, de nômades, tornam-se sedentários felizes. Pode soprar o vento norte. Pode
correr a água por baixo da ponte. Os cavalos ficam inquietos. E eles nem
percebem que as lanças perderam o fio, enferrujaram frouxas nas paredes; agora
são apenas estandartes do que foi um tempo um guerreiro.
Talvez um dia a paz seja declarada e todos os voluntários da
guerra quedem-se para festejar com vinho e pão feitos em casa. E massa fresca
com tomates pelados. E doce de casca de laranja, e todo tipo de coisa boa. Sim,
e que todos se contentem com sua própria despensa, porque o desejo de querer
mais vem do olho. O olho é um ladrão insatisfeito. Saber olhar a vida é uma
mistura equilibrada de desejo com felicidade, porque só deseja quem não está
verdadeiramente feliz.
Adorei o blog Fernanda! Lindos textos que realmente nos elevam a uma mistura de sentidos indescritível!
ResponderExcluirGrande beijo!