terça-feira, 22 de maio de 2012

O caçador que come de colher


Certa vez li um texto de um antropólogo que afirmava ter nossa civilização começado da junção de dois povos diferentes: um nômade, caçador e o outro agricultor, sedentário. Os dois se digladiaram em algumas circunstâncias e, obviamente, os caçadores venceram. É fácil ver esse traço na nossa civilização atual. Em geral as pessoas saem de casa para caçar. Vestem-se para caçar. Andam em tribos para ganharem forças, mas o resultado da caçada é individual. Alguns ostentam seus troféus pela casa, ou virtualmente pela net. Fotos de suas conquistas por todos os lados. Reconhecimento do seu poder e heroísmo. Pegar, caçar, ficar. Tudo muito rápido e ágil. Tudo estrategicamente arquitetado e descartável. Tudo isso devidamente valorizado e estimulado.

Até que o suficiente seja conquistado. Ou seja preso pela presa. Sim, porque a presa também sabe se defender. Como a aranha que tece e espera, a presa indefesa se prepara. Vai cozinhar, arrumar, limpar, casar. Então, o guerreiro se acomoda um pouco e deixa o poder adormecido na lembrança de quem foi. Encontrou um pasto gordo para sua criação crescer. Pode dormir tranquilo, seguro. Pode engordar a barriga, pode perder tempo, relaxar, comer doces a valer. A agilidade de antes não é mais necessária. Não precisa fugir correndo de outros predadores. Sobretudo valoriza-se, pois o mercado prefere os empregados. Desocupados e avulsos não são confiáveis.

Ainda assim, claro, tem aqueles que não se contentam com nada. Podem ter o melhor troféu em casa, mas ainda são caçadores: procuram desafios e novas fronteiras. Voltam para casa diariamente apenas para ganhar forças. Precisam do risco. O risco de serem pegos, o risco de serem caçados. Existe em todo caçador um desejo secreto de virar presa, tanto quanto a presa sonha um dia virar predador. É fato que caçadores históricos foram fisgados por alguma horta bem preparada, uma comida bem cozida, e uma roupa de cama limpa. E, de nômades, tornam-se sedentários felizes. Pode soprar o vento norte. Pode correr a água por baixo da ponte. Os cavalos ficam inquietos. E eles nem percebem que as lanças perderam o fio, enferrujaram frouxas nas paredes; agora são apenas estandartes do que foi um tempo um guerreiro.

Talvez um dia a paz seja declarada e todos os voluntários da guerra quedem-se para festejar com vinho e pão feitos em casa. E massa fresca com tomates pelados. E doce de casca de laranja, e todo tipo de coisa boa. Sim, e que todos se contentem com sua própria despensa, porque o desejo de querer mais vem do olho. O olho é um ladrão insatisfeito. Saber olhar a vida é uma mistura equilibrada de desejo com felicidade, porque só deseja quem não está verdadeiramente feliz.

Um comentário:

  1. Adorei o blog Fernanda! Lindos textos que realmente nos elevam a uma mistura de sentidos indescritível!
    Grande beijo!

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