Eu quero a poesia fina da vida. Quero a beleza insólita do
amor. Quero a delicadeza passageira do olhar que ri. E quero a permanência do
rio que corre. Quero tudo, desde que não sou nada. Nada em mim reflete essa
magia, senão no meu querer. A vida ordinária que passa pela estrada é cheia de
pó ou lama, que um dia seca, no outro, escorrega. A vida bruta, ela mesma, no
que sou eu, me corre pelas veias feito fumaça.
Na fumaça que sou, um pouco sombra e um pouco chão, o que me
salva é o meu querer. Quero voar, não voo. Quero ser leve, e afundo no mar de
emoções desconexas e desencontradas. Na vida que é tanto o fogo como a fumaça,
que é tanto a água que corre como as margens que ficam, eu também sou a folha
que ora cai da árvore, ora sobe com o vento.
Quanto a mim, bastava-me ser a letra A e estar presente em
todas as falas e bocas. Ser o calor da pele e o frio da alma diante do perigo. Ser
esse rojão no estômago quando o amor invade o espaço conhecido e traz o caos. A
vibração do fogo que transforma terra em ar. Mas no mais das vezes, faço espuma
nas bordas do copo, faço barulho com a respiração descontrolada nas noites sem
guarda-chuva. Corro do amor, emparelho com o barranco, me referencio com o
horizonte enquadrado da janela.
O que me salva, me salva de mim mesma, inquieta e relutante,
é um querer além da cerca em frente. Além da montanha mais adiante. Além do céu
tão vário todo dia. Um querer que me tira da cama diariamente. Que me confisca
as dores do movimento e me intercala com silêncios e pensamentos emaranhados.
Às vezes cala em mim um medo paralisante de sofrer, como se
a vida fosse dor só por haver nervos. Como se a vida fosse cristal tão delicado
que até mesmo um canto de pássaro solitário pudesse rompê-la em mil cacos
irreconciliáveis. Um medo do que não sei, do lugar onde não há amor. Um medo
apertado no peito que me faz duvidar. Tropeçar. Gaguejar. Nesses momentos, sou
um par de vasos cujo par quebrou; sou a parte da lua que desapareceu no escuro.
Em mim, na noite grande demais para que haja sonhos, um desalento sem ar me
sufoca a quase tirar a roupa. Preciso de espaço e preciso de um aperto de
braços consoantes.
Mas o olhar pela janela embaçada me traz o desejo de volta. Quero
tudo de novo. Quero todas as dores dos partos que não tive e todos os que vi
nascer um mundo novo, uma nova vida, um novo querer. Quero todos os sofreres
que vieram junto com um fim, com um perdão atravessado, com uma bandeira
embolada no alto do mastro. Quero, mesmo depois do medo. Mesmo durante o medo. Mesmo
que me assuste toda noite e toda manhã de haver um dia seguinte para a paixão.
Não há dia seguinte para a paixão. Ela vai embora no meio da
noite, depois de saciada. Ela não aguenta o tédio do pão com manteiga e café. A
paixão, como o orvalho que umedece o vidro da janela, desaparece quando o sol
nasce. Quem procura paixão no feijão com arroz, morre de fome. Aliás, a paixão
é a fome. É não ter apetite. Não ter sede. Não precisar continuar vivo. Porque já
é encarnado na fonte.
Na minha paixão, ensandecida, que se perdeu dentro de mim
entre a cabeça e o coração, um caminho torto e engruvinhado, onde não sei que
pássaro tentou voar e se quedou expectante, na minha garganta aberta, boca
aberta, toda minha vontade desperta. E no que foi ou será ainda minha vida,
estendo a mão. Aperta-a, que ela quer ser livre, mas é sua. Não traz nada. Não leva
nada. Apenas estende para a sua. Vem. A paixão é a vida, mas a vida é bem mais
que paixão.
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