segunda-feira, 19 de março de 2012

Pão e Amor


Todo dia trago para casa pão e manteiga porque se estourar uma guerra, se o mundo acabar, se as pessoas se perderem, ficarem cegas, desaparecerem de repente, sem aviso, sem sentido, eu terei do que me alimentar. Ao menos o corpo, que é menos exigente. A alma já não é assim. A dieta da alma é sutil, mas mais intensa. Inicialmente é leve, vai ficando presente até que se torna plena e total. Chama-se amor, começa com sinais parecidos com cacoetes, um piscar repetido, um canto da boca mais tortinho, depois seca a boca e faz bater o coração num ritmo mais picadinho.

A alma precisa de quase nada, mas quase tudo lhe toca. Um bater na porta em sobressalto, uma pele na pele sem querer, o olhar que se cruza e sustenta. A alma se alimenta de gestos, um ‘bom dia’ bem dado, um ouvir com atenção, uma fala sem ensaio, um ensaio sem repetição. Tudo que chega à alma entra pelo coração. Esse que é a inteligência mais inteligente que carregamos conosco, porque sabe tudo sem ouvir falar, entende tudo sem explicação, sossega por sossegar, teima por teimar. O que tem de dureza na cabeça, tem de clareza o coração. O amor bate na aorta.

De pão e manteiga eu fico feliz. Fico mais feliz ainda se tiver café. Mas a maior felicidade é ter um amor sem duvidar, é poder abraçar sem perguntar, é encontrar sem procurar. A espontaneidade é um tipo de amor que só a alma, e os que vivem de alimentar a alma, sabe bem. Ser espontâneo é crer na vida. É crer em si mesmo. É crer que o que move o mundo e o faz girar eterna e certamente é a verdade. 

O amor casou com a verdade há tanto tempo que um não vive sem o outro e o outro não vive sem o um. Unificados no mesmo plano divino, dão-se em frutos pelas árvores que fazem sombra e brisa leve quando há muito sol, e dão-se sem flores coloridas quando há frio. Muito frio pede vermelho, pede amarelo e pede verde brilhante para aquecer o peito e agasalhar a garganta, que existe para cantar louás ao que une, soma, alegra. 

Existe um tripé que sustenta o mundo. A liberdade, o sonho e a clareza, coisas que a gente não ganha nem acha, coisas que não estão por aí penduradas em postes debaixo das luzes, coisas que não são compradas por dinheiro algum, que nenhuma cartomante consegue ver, que não estão escritas nas linhas das mãos. Não estão na correspondência por chegar, na ligação por atender, por trás da janela fechada ou no pó da mesa tanto tempo sem limpar.

Esse tripé inclusive está solto, desmembrado como um quebra-cabeça para ser montado. Às vezes tem uma peça na mão de cada pessoa e quando elas se encontram em determinado dia, num determinado lugar e se reconhecem, então, como a espada de Merlin, ou como o canto da sereia, como uma aparição de um anjo ou um sopro de um elfo, essas partes se conectam e toda luz que há no mundo se acende. E toda a paz que há no mundo se expande. E todo o amor que há no mundo se derrama em cachoeiras, rosa disfarçado de azul, verde disfarçado de branco.

Por meu sangue que circula e anseia por pão e manteiga, por cada lágrima que rola sem querer dos meus olhos quando eu apenas me emociono, pelo frio que faz lá fora, mas não me atinge porque estou em casa, agasalhada, enfim, pelo que deus me prouve e não me falta, eu confio. Eu fio com. Fio o tecido do amanhã, a teia clara do amanhecer, a tela em que pintas uma canção, tão linda e tão linda que até os pássaros param para ouvir.

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