Ela se deixou molhar logo na primeira onda, tal a
ansiedade com que chegou no mar. Ela nascera do sal, crescera nas ondas, fora
feita de maresia e pulsava nas marés. Como pudera ficar tanto tempo longe
assim? Como suportara esses anos todos a ausência dessa brisa úmida e fria?
Sequer esperou as respostas e mergulhou. Súbito, o silêncio. A claridade
distante, azul, o gosto de sal nos lábios. Ficou ali longamente, sereia da
areia branca do fundo do mar. No silêncio brilhante e só, sem pensamentos.
Saiu sem fôlego, como um mergulho no ar, para fora, a
água dos cabelos espirrando para todo lado, feito alegria, ria. Ria muito, ria
alto. Tossiu um pouco, engoliu água salgada e voltou a rir. Meu deus do céu,
abraço de corpo inteiro, sem dar pé. Profundo, morno e leve.
De longe, a silhueta escura adentrando além das ondas
fazia contraste com o pôr do sol dourado. O mundo parecia não existir mais, não
havia mais ninguém no mundo. Tudo era apenas ela e a água e a espuma que a água
fazia ao bater em sua pele. Imensidão. O universo era ali e uma mulher que se
descobria inteira de novo era esse universo.
Então, começou a nadar de volta. Lentamente, no ritmo
de um coração aquietado, aninhado no peito como criança dormindo. Braços e
pernas alinhados, penetrando a água com a calma dos que sabem o que querem. Era
tarde, escurecendo rápido. E o brilho distante da cidade que se acendia. Quando
enfim saiu da água já era noite. Mas ficou ali um tempo ainda, olhando para o
que não via, escutando o estilhaçar das ondas na areia. Ficou ali um pouco,
ouvindo o coração alegre novamente.
Passou as mãos pelos cabelos e jogou-os para trás. Assim,
perdeu uma ideia que teimava ainda em se fazer lembrar. Olhou a vida toda que
fizera com que agora estivesse ali, esguia e leve, todas as beiradas de sábados
que esteve ensimesmada, debruçada sobre a dor e o horror, distante de quem era.
Perplexa. Boquiaberta. Todos os dias e noites que fora para casa, caminhando
solene na confusão da rua e dos carros e das vias congestionadas de seu pensar
o mundo. Quase sem ar.
Acreditara demasiado nos limites e nas barreiras.
Acreditara insuportavelmente na falta de perspectiva e de realidade. Sonhava apenas
o sonho, a imagem, a miragem. Nada era verdade. Ao estender o braço, a mão
tocara o vazio. Sem música. Sem cor. Mais triste que a valsa triste de sibélius.
Um quadro de munch. Um buraco negro na
noite sem lua.
Teria sido simples, largar tudo e ir em busca de um
pouco de espaço ao menos para esticar os braços e o pescoço. Teria sido
simples, mas o mais difícil. Difícil deixar quatro paredes para um mundo sem
fronteiras. Deixar a proteção de janelas para sair ao vento frio ou morno ou
quente, mas vento. Deixar de ser doméstica para ser mundana. Arriscar emoções
desconhecidas. Talvez piores, talvez melhores. Mas outras. Abdicar de um
passado respeitoso e banal, duramente conquistado, para encarar um porvir
misterioso, cheio de notas dissonantes, noites insones e sonhos assustadores.
Agora, enfim, estava ali, apertando com os dedos dos
pés uma concha quebrada na areia. Fazendo buracos com os passos ocos. O olhar
perdido no escuro infinito do mar. Sim, ela estava bem. Nua. A pele arrepiada
de imaginar o prazer de um novo banho. O mundo todo por criar. O sal da pele. E
ela podia amar, finalmente, porque a alegria é uma condição para amar a vida, essa
alegria que se assomava de si como o sal, como os cabelos escorridos nas
costas, como seus olhos teimavam em ver as ondas ritmadas de branco no escuro
profundo de tudo. Amar limpava de sua mente todos os pensamentos insalubres e
insípidos que acumulara até agora. Amar era o fim do tempo, era um agora sem
fim. Amar era o mar. E o mar lhe chamou.
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