E se não houver mais deus? Não se trata, portanto, do fim do
mundo, mas do fim de deus. Ele se foi.
Deixou tudo, desapegou-se de sua cria. Foi criar outro universo, outra
possibilidade, outro estado de coisas. Deus acabou.
Não há mais para quem dedicar preces. Não existem mais
soluções ou possibilidades mágicas. Não se pode mais se apoiar num mundo
paralelo, maior e mais inteligente, que se comove com nossas desventuras e
interfere abrandando tudo.
Não mais o conformar-se de que o melhor aconteceu, mesmo
quando ruim. Ao invés disso, um entender adocicado e ácido de que nem tudo é
como se deseja. E o desejo, que é o desejo? Um vazio que precisa ser
preenchido, um buraco negro tragando tudo à sua volta, ou uma percepção de que
há necessidade de um gesto, a vida precisa se mover, seguir, unir uma nota na
outra, um dedo no outro, sílaba com sílaba. Deus não está mais lá para
costurar, remendar, decifrar, desatar.
Nada de pequenas justificativas para os grandes fracassos.
Deixar de correr atrás de um sonho porque é tarde demais, porque é cedo demais,
porque está cansado demais, porque tem tempo demais, porque é demais para si o
seu próprio sonho. Nada do grande conforto de haver alguém para culpar, alguém
a interpelar no destino e fazer dele um rio correndo sem sentido na direção do
mar. Por que o mar? Por que não a montanha?
Amanhã, acordar para ver o céu azul e tomar café sem dar
graças a deus. As sementes irão germinar, algumas vão morrer. Os pássaros vão
nascer em cima das árvores, alguns não voarão. Borboletas no quintal, flores no
jardim, vacas pastando solenemente além das janelas e do olhar. Toda a
inteligência seguirá viva porque a inteligência só faz sentido para a vida
independente, não para que haja um pastor para velar insone por sua segurança.
Para minhas dores mais difíceis de declarar haverá um
remédio que terei de admitir. Para suas incertezas mais ásperas e desesperadas
haverá um tempero delicado para adocicar ainda que não seja a resposta. Para a
solidão, uma mão que puxa o cobertor e aquece. Para a velhice, sim, para todo
aquele que atinge a linha de chegada, o lugar entre os vitoriosos. Nenhuma
saída, no entanto, que venha misteriosamente de um protetor justiceiro e dadivoso
que nutra sem explicar, ou que interfira no curso das coisas como se fosse o
dono.
Estenda a mão se quiser alcançar, não espere. Cumpra o seu
percurso correndo seus próprios riscos. Acredite, no entanto. Porque acreditar
é como comer, é como se saciar de água, como dormir, e voltar a comer. E como
fazer sexo. Acreditar é o prazer que só a alegria pode fazer. Para crer é
preciso ter-se a alegre e leve certeza no próprio poder. Do poder em si. De
poder por si.
Pronto. Deus não existe mais. O centro de um mundo melhor
sou eu. As possibilidades de tudo dar certo, eu. Não um eu magnânimo e supremo
que está acima do bem e do mal. Mas um eu superior-irmão do seu eu superior. Não
o gigantismo das verdades absolutas, mas da verdade amorosa e inclusiva que
aceita todas as demais verdades. O superior que abraça, aceita, respeita, e não
da indiferença e secura dos que se sentem escolhidos e merecedores. Mas isso é
deus? Então, de agora em diante, eu sou deus.
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