sábado, 8 de março de 2014

Mulher

Ana Carol Carolina Lina Almadíssima Almadona Ana. Eis o que seu espelho lhe devolvia a cada momento de passagem de um cômodo da casa para outro. Em todos, uma imagem de si mesma. Em todos, sua presença única. Lá fora, com certa inveja, a vida corria pela estrada levantando poeira. Lá dentro, com certo conforto, ficava bem, como fosse, com quem fosse, do jeito que fosse.

Ela tinha três escovas de dente no banheiro, não porque acreditasse no triângulo amoroso, mas porque acreditava na matemática. Um coração silencioso, batendo de mansinho, mas vigoroso. Pouca coisa nos armários, apenas a essência. Olhava pela janela do quarto antes de sair da cama. Olhava para o nada do entorno. Árvores verdes, às vezes floridas, às vezes pássaros.  Nem sempre via o céu por trás de nuvens. Às vezes de noite, sem luz, a sombra do universo inteira caindo sobre a casa. Mas estrelas fixas eternamente no céu de inverno.

Ela contava os passos, contava histórias, cantava. Leve como o voil da cortina, janelas efusivamente abertas. O brilho da manhã resfolegado na folhagem verde das cerejeiras, a luz difusa da tarde depois da chuva, o reflexo da lua cheia fazendo sombra ao gato andando no parapeito. Todas as cores e luzes do mundo perpetrado na casa de sua vida. A vida continuamente rodando nos caminhos que seguia.

Sim, ela também ia. Saía deslumbrante como se fosse ao café da cidade, como se fosse dançar, sonho de uma noite de verão. Saía sem deixar rastros, exceto o som alto do carro por sua passagem. Um cello, uma voz, um atabaque retumbando pela estrada. Verde e uníssono. Acreditava na música. No perdão da música. A música como salvação. Como saudação. Evocação.

Na paisagem aberta de supetão, com para-choque e tudo, ela seguia com tempo de avião. Sobrevoo e queda livre. Nada de sonolência, insônia, desleixo. Nada de barulho, promessas, fantasias. Ela por ela mesma. Ela, mulher. Chamando seu nome em voz alta, como se cantasse no chuveiro. E respondendo simples, com bolo de fubá e leite quente. A vida sem passado, sem futuro. A vida agora.

Ela. Um dia roubou meus pensamentos. Roubou meus olhares. Roubou meu desejo. E levou para sempre. Foi-se com tudo embora. Foi para além do meu pensamento e do meu encontro. Foi. Não disse palavra. Não me avisou. Sequer mostrou sinais de cansaço. Ao contrário, esvoaçou ao meu redor até o último momento. Até que nem sabia mais o quanto. E foi dormir, me disse. Foi se deitar. Não me deixou recado no espelho – não era mulher de deixar recados. Não me disse adeus. Apenas foi. Dona de seu destino e direção. Por onde andará Ana?

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