quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A leveza do fogo

Coloquei fogo no outro lado da vida que me insistia em permanecer.  Porque hoje só quero a leveza da impermanência. Quero a passagem do tempo. Quero o momento que vai sem deixar rastros. Aliás, quero meu pisar pela terra cada vez mais impalpável.

Queimei. Queimei as letras tortas de quem fui um dia. Queimei com restos de revistas velhas, jornais velhos, queimei tudo que em mim era gasto, roto, envelhecido. Amarelo de um passado já remoto. Quem fui, ardeu em fogo brilhante e virou cinza. E antes ainda que se apagasse abafado pela cinza de si mesmo, revirei e revirei o amontoado de coisa meio em brasa meio em chamas, que arderam meus olhos a quase me sufocar.

Fiquei olhando aquilo tudo pegando fogo. A cinza voando com o vento, seguindo um rumo desconhecido. Tudo vira nada uma hora. Como flores de trepadeiras que não dão fruto. Como nuvens que desaparecem sem chover. E fumaça. Fumaça que sobe e some antes de alcançar a copa das árvores. É nesse vazio que a vida se faz.

Depois de tudo, um cheiro defumado no ar. Não sentirei falta daquilo que já nem lembro mais. No espaço deixado na prateleira, um pouco de pó marcando o que se foi. Vou deixar assim ainda como testemunho do que mudou. É do que preciso agora. Reconhecer que andei. Segui o meu caminho, traçado ou não de véspera, bom ou ruim, o meu rumo no meu ritmo. Não preciso ter nada, manter nada, realizar nada para saber que andei. Basta o pouco de pó em volta do que já não há.

E na fumaça que ainda teima em sair da cinza, sinto o cheiro de verniz, resina plástica, alguma coisa que talvez recobrisse uma superfície desaparecida. Talvez disfarçasse a rusticidade, o grotesco, o indomável. Uma máscara de cerâmica fingida que encobria a realidade dura de engolir.  E assim posta, foi se acomodando bem na memória que esquece rápido e é indulgente.

Agora, que o calor da chama passou, e o frio fresco da tarde voltou, sinto fome. A matéria pesada de carbono pedindo sua parte do mundo. E quando pus fogo na vida que restava agonizante, esquecida, buscava a efemeridade e imaterialidade da existência, ela mesma uma incógnita, um mistério. 
Procurava a quântica da vida. Minhas veias cansadas de suportar tanto sangue. Queria a liberdade – o que há de verdade nela – a liberdade que arde transformada, matéria em ar, luz, calor. Precisava urgentemente de esvaziar a pá com que cavava as raízes, a copa invertida da vida, cavava para ficar leve, aberta, exposta.

E num horizonte provável, esvair-me. Dilatar-me. Dissolver-me. Efêmero como o fogo, mas impactante enquanto chama. Não tenho mais as células do corpo com que nasci. Não tenho, sobretudo, o mesmo olhar deslumbrado. Mas a surpresa. A surpresa de me reconhecer frente ao espelho, coberto, perdido tanto tempo no fundo de um armário. Cheirando guardado. E ainda assim, devolvendo minha figura perplexa diante do vazio do olhar. 

Eu também já passei. Fui. Nem sou mais o que ansiei um dia em ser. Aquebrantei. Movi. Mudei. Arrastei comigo um universo de explicações e respostas. Saltei para além dos meus propósitos. Rompi com as formas e exagerei nos tímpanos, trompas e metais. Agora, o sussurro. O silêncio. Dramático. O silêncio do olhar que é a única coisa que resta depois de tudo.

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