Coloquei
fogo no outro lado da vida que me insistia em permanecer. Porque hoje só quero a leveza da
impermanência. Quero a passagem do tempo. Quero o momento que vai sem deixar
rastros. Aliás, quero meu pisar pela terra cada vez mais impalpável.
Queimei.
Queimei as letras tortas de quem fui um dia. Queimei com restos de revistas
velhas, jornais velhos, queimei tudo que em mim era gasto, roto, envelhecido.
Amarelo de um passado já remoto. Quem fui, ardeu em fogo brilhante e virou
cinza. E antes ainda que se apagasse abafado pela cinza de si mesmo, revirei e
revirei o amontoado de coisa meio em brasa meio em chamas, que arderam meus
olhos a quase me sufocar.
Fiquei
olhando aquilo tudo pegando fogo. A cinza voando com o vento, seguindo um rumo
desconhecido. Tudo vira nada uma hora. Como flores de trepadeiras que não dão
fruto. Como nuvens que desaparecem sem chover. E fumaça. Fumaça que sobe e some
antes de alcançar a copa das árvores. É nesse vazio que a vida se faz.
Depois de
tudo, um cheiro defumado no ar. Não sentirei falta daquilo que já nem lembro
mais. No espaço deixado na prateleira, um pouco de pó marcando o que se foi.
Vou deixar assim ainda como testemunho do que mudou. É do que preciso agora.
Reconhecer que andei. Segui o meu caminho, traçado ou não de véspera, bom ou
ruim, o meu rumo no meu ritmo. Não preciso ter nada, manter nada, realizar nada
para saber que andei. Basta o pouco de pó em volta do que já não há.
E na fumaça
que ainda teima em sair da cinza, sinto o cheiro de verniz, resina plástica,
alguma coisa que talvez recobrisse uma superfície desaparecida. Talvez
disfarçasse a rusticidade, o grotesco, o indomável. Uma máscara de cerâmica
fingida que encobria a realidade dura de engolir. E assim posta, foi se acomodando bem na
memória que esquece rápido e é indulgente.
Agora, que
o calor da chama passou, e o frio fresco da tarde voltou, sinto fome. A matéria
pesada de carbono pedindo sua parte do mundo. E quando pus fogo na vida que
restava agonizante, esquecida, buscava a efemeridade e imaterialidade da
existência, ela mesma uma incógnita, um mistério.
Procurava a quântica da vida.
Minhas veias cansadas de suportar tanto sangue. Queria a liberdade – o que há
de verdade nela – a liberdade que arde transformada, matéria em ar, luz, calor.
Precisava urgentemente de esvaziar a pá com que cavava as raízes, a copa
invertida da vida, cavava para ficar leve, aberta, exposta.
E num
horizonte provável, esvair-me. Dilatar-me. Dissolver-me. Efêmero como o fogo,
mas impactante enquanto chama. Não tenho mais as células do corpo com que
nasci. Não tenho, sobretudo, o mesmo olhar deslumbrado. Mas a surpresa. A
surpresa de me reconhecer frente ao espelho, coberto, perdido tanto tempo no
fundo de um armário. Cheirando guardado. E ainda assim, devolvendo minha figura
perplexa diante do vazio do olhar.
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