sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Irmandades não existem mais



Eu fazia parte de uma irmandade. Mas eu não sabia, irmandades são coisas medievais, antigas, não existem mais. Então, ao invés de tatuar o nó celta na nuca, de marcar para sempre o sinal da reverência e do sangue, selar um compromisso, honra, aquilo tudo de sociedades secretas, ao invés do olhar de cumplicidade, desatei a rir dos laços que nos uniam. Foi uma verdadeira palhaçada, com cara pintada, nariz vermelho, e olho – só dá para ver o olho do palhaço – vermelho também, sem chorar.
Irmandades não existem mais, imagine só. O risco de haver segredos, segredos de coração, guardados em lenço de seda, no fundo da gaveta, não suportou o tempo. A linha do tempo é um martelo batendo nos sentimentos remotos, fazendo ficar apenas o que é inquebrantável, firme feito rocha na beira da praia, como o amor.

O amor é um mistério que as irmandades protegiam. O amor é engraçado também, firme como rochedo e doce como algodão doce na memória, sob a pele, na língua. Eu cheguei a acreditar que o que não havia mais era a separação do mundo em dois: o bem bonzinho de um lado, com toda a sua ignorância e leveza, e o mal ruinzinho do outro, esperto, inteligente e egoísta. Não. Ao menos meu mundo não era branco e preto assim.

Pois aí eu entendi. Fazia parte de uma irmandade – antiga e antisséptica – e não acreditava mais em mundos divididos e simples. Todas as paredes da minha vida tinham o vermelho em tons e surtons. Amarelos em profusão, muito, muito amarelo. Azuis calmos e celestiais. Verdes, verdinhos, verdolengos, verdíssimos, verdadeiros. Minha verdade começara a girar o eixo e não terminara completamente. Ainda havia um canto cinza, olhando para trás.

Qualquer coisa que possa mostrar para você o quanto você mudou é uma referência. Apenas uma referência. Não serve mais para nada. Servia para quem você era, não para quem é agora. É claro que nem tudo é totalmente descartável. A vida é mais misturada que isso. O mato nasce com o trigo que é uma forma de proteção. Mútua. Tem quem corte o mato e tem quem corte a mão que investiu contra o mato. Cada um com sua verdade, arraigada, olhando para trás.

Lá fora está chovendo, e a chuva traz um pouco da poeira de ontem, não tem como negar. Um pouco do que fui está ainda nas minhas células. O equilíbrio dinâmico do movimento, do andar, do seguir em frente, um pé que fica e outro que vai. A vida é sem anestesia. Sem paredes. Sem guia. O que é bom é também ruim. E o que é ruim é também muito bom. E no final, tudo é a mesma coisa. Só o amor é a flor do lótus: nascendo na lama e permanecendo imaculado.

Já fui um cavaleiro medieval, um monge, sacerdotisa já fui. Já fui todos os heróis e donzelas por salvar. Já fui, ai de mim, um ogro, talvez, carrasco, juiz sem caráter, rei de um império que faliu, desapareceu no deserto das boas ações, ruiu frente aos seus súditos que desacreditaram de sua divindade. Todos se foram, agora eu. Na única irmandade que continua intacta em mim: meu corpo. Que, no entanto, marcado por todas as sensações que já tive, se transforma também. Quem nasci já não sou mais. Apenas o amor, sim, o coração que bate continua firme. E depois, quando ele também não continuar, cessar como o vento, o silêncio, o amor que nele há ainda assim continuará. Para além dos dias tristes e alegres. Para além das tatuagens de significados desmedidos. Para o além.

Um comentário:

  1. Fernanda, como você se expressa bem. Seu texto é lindo, este particularmente. Você tem muito conhecimento (é uma erudita) e sabe transformar conhecimento em sabedoria. Tocante, emocionante.

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