Não, eu não
sei lidar com a morte. Com o fim. Com o limite. Como uma criança que nega haver
algo além de si mesma, eu vivo cada final como se fosse o derradeiro, como se
fosse o grande fim. Não me acostumo. Não terá o dia seguinte, não terá um novo
amanhecer, não. Dramático se não trágico. Total. Absurdo. Aviltante.
Nasci numa
cultura em que é importante ligar qualquer pessoa do mundo com qualquer outra
pessoa do mundo ou fora dele. Instantaneamente. A cada dia, a cada minuto, uma
nova tecnologia une, reúne, relaciona. É a soma e, no pior dos casos, a
competição. Mas nunca, nunca, nunca absolutamente é o fim, o limite, o muro.
E a vida, o
que é afinal? Só quem não pensa na vida é quem tem tanta coisa para fazer o
tempo todo que não sabe dizer por que ainda está correndo. Para quê? Para que
esse movimento todo, essa insatisfação perene por mais e mais? É uma
civilização contra o não. Uma civilização que corre o tempo todo atrás de algo,
fugidio, escorregadio, mas que não se identifica. Sucesso? Conforto? Felicidade?
Mas onde tudo estará quando você finalmente conseguir parar para usufruir?
Não, não
existe a hipótese de parar até para usufruir. Não existe chance de vida após a
correria. Acalmar-se é irritante. Irritante é o silêncio da calma. A calma é
acomodação. O mundo urge, ruge, e pega o primeiro desavisado que está olhando
para o tempo. Nunca esteja satisfeito. Nunca fique realmente feliz. Nunca,
nunca, jamais, realizado, porque a realização é o fim de tudo. E para o fim,
não há cura.
O fim. O fim
de um relacionamento, quando é o início de outro, tudo bem. Ninguém vê. O fim
de uma tarefa, seja ela a contento, ou descontento, tem que coincidir com uma
nova tarefa, um novo desafio. Porque a vida urge, veloz e furiosamente.
Porque o fim
é a morte. E a morte é o fim da vida. A vida que sequer chego a entender. O sentido
da vida que não desponta porque há que correr e não parar nunca para pensar na
vida. A morte é o descontrole. Inesperada e certa: descontrole. Hiato. É não
chegar a lugar algum de todos os caminhos propostos. A morte inutiliza toda a
tecnologia de união. Todo o conceito de estar perto. Toda a objetividade.
E afinal,
existe alguma objetividade na vida? Tudo é o olhar de cada um. Por isso, antes
de não saber lidar com a morte, não sei lidar com o julgamento. Julgar é
inexoravelmente uma total subjetividade. Um espelho que reflete só o que quero
ver. E de resto, toda a vida é assim, uma somatória de subjetividades, uma
realidade cheia de interpretações. O que de concreto realmente existe? Não dá
sequer para falar em existencialismo. Tudo que há à minha volta, inclusive eu
mesma, é uma interpretação, limitada e raquítica do que penso que sei.
Na projeção
toda que faço do mundo, o mundo como o conheço – eu, a criança que conta sua
história num eterno faz-de-conta – tudo é rápido ou lento, exagerado ou asséptico,
sonso ou apaixonante conforme vou crescendo e doendo e rindo e querendo e conseguindo
e perdendo e ganhando e entendendo e esquecendo e.
E depois de
pensar em tudo, continuo onde estava antes: na frente da morte e da sua porta. Colocando
a mão no bolso, inadvertidamente, dou com a chave da porta. Sempre esteve
comigo. No entanto, eu me recuso a usá-la, me recuso a aceita-la. E assim, eu
continuo vivendo, sorrindo e pensando que despistei. Se tudo que há no mundo é
reflexo do meu pensamento, da minha consciência, então não penso nisso e tudo
bem.
Aí, a cada
morte, um drama sem fim. Uma dor incalculável. Um corte dilacerante,
lancinante. Eu não quero que nada acabe. Eu não quero que ninguém morra. Eu não
quero perder. E depois dos brados, do barulho todo, um cansaço que obriga o
silêncio. E no silêncio, sim, no silêncio tudo é como é. E o fim não se
apresenta tão feio. E o fim é apenas um jeito de falar para quem não aprendeu
senão a sua própria língua natal. E para falar com o outro lado do mundo, o
outro lado da vida, há que não temer a babel cotidiana. Há que aprender sem
professor. Há que ouvir. Ouvir até o fim.
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