Porque, talvez, o sentindo da vida não seja ela mesma. E sim
o que você faz dela. Você passa por ela como um visitante num museu, num
aquário? Ou ela passa por você como um sonho, um filme inacabado, refeito cena
por cena, atores diferentes, a cada vez melhor ou pior, falas decoradas que não
se encaixam mais? Talvez seja um prato inesquecível com alguém que você já
esqueceu. Ou seja um perfume, uma música, uma flor que queriam dizer “eu te
amo”. Sua vida, as pessoas que passaram por ela? Ou aquelas que arranharam o
quadro, quebraram o vidro da janela, choraram atrás da porta? Talvez não,
talvez apenas um escuro e medroso quarto com milhões de possibilidades
insuspeitas e desconsideradas. Nada que possa ser retificado, corrigido,
justificado.
Então daria para formular uma frase – uma única e certeira
frase – que dissesse tudo, resumidamente, que significa sua vida hoje? Hoje,
porque em outros tempos ela deve ter outros significados. A vida para quem olha
o mundo abaixo dos joelhos das pessoas é muito diferente daquela que olha de
cima de um cavalo.
Hoje, que as contas estão pagas, que as janelas podem ficar
abertas, molhando com chuva a bainha das cortinas, que você não precisa
explicar nada, para ninguém, de verdade, sem fingir mais coragem do que tem de
fato, sem imitar um herói anônimo, sem medo de ser rejeitado, de ser excluído,
de dar vexame. Hoje. Que você pode falar seu nome em voz alta e isso dizer
apenas qual é o seu nome. Depois que liberdade foi expressa por ignorância, por
rebeldia, incredulidade, irreverência, coragem e temeridade, foi expressa pelo
que chamam infidelidade, descompromisso, e por fim, que você realmente viveu a
liberdade de expressão.
Qual o significado da vida? Mas daquela que passou ou da que
virá? Da vida por viver ou dos dias que se passaram, alguns arrastados,
infinitos, outros curtíssimos, incompletos? Dos grandes momentos repletos de
medalhas e aplausos ou daqueles sofridos desgostos, desânimos, desmoronamentos?
Somando tudo? um pouco de cachaça amarga, outro de chocolate macio e belga?
Talvez seja um bocado de dias dormidos e noites badalantes.
Muito trabalho inútil e pouco ócio criativo. Perdeu o trem, o bonde, perdeu o
bilhete? (naquele dia, naquele almoço, eu quis dizer, mas não consegui, que eu
te amava, queria, desejava, e tudo o mais que estava em risco por haver desejo,
e o medo.)
Pode haver um significado só uma vida que é muitas? Que
errou, acertou, corrigiu, errou de novo e esqueceu, errou de novo, seguiu em
frente, perdeu a paciência, perdeu o cheque, perdeu o direito de pedir perdão,
perdeu o sonho, o sonho, meu deus, perdeu a energia, a crença, aplumou, abriu
asas, voou. Em pleno voo se deu conta de que não havia plano de voo. Que vida é
essa? A que ficou sem combustível, enfrentou um incêndio na cabine, pulou de paraquedas,
e, lá de cima, viu cair na montanha o avião abandonado?
Mas a vida é isso? Um ponto que passa no tempo? Ou é energia
que não se perde? É o que fica? Uma obra inacabada, uma frase interrompida, um
aceno de mão, o carro já passando longe? Os filhos que não vieram, os poemas
que não foram escritos, os frutos que não vingaram? A promessa, sim, a promessa
de uma vida nova, de um novo tempo, de um mundo novo?
Um balé, cujas marcações se fazem a cada passo. Uma nota
tocada ao piano – apenas uma – que presume a harmonia da orquestra. O gesto
mascarado no teatro de marionetes com a plateia toda gargalhando distraída dos
fios pendurados no escuro. A face coberta do palhaço deixando transparecer o
olhar vulnerável e humano. Um coração que bate, acelerando a morte e entrevendo
a vida eterna que cada pulsar mobiliza. A dor, a alegria, um músculo que retesa
o gesto, uma palavra: amor.
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