sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Meditação do Lar



Hoje acordei e fiz uma coisa que nunca faço: trabalho doméstico. Não é preconceito, é que ele faz parte das atividades rotineiras e repetitivas, que é aquilo que mais abomino. Se tiver que fazer a mesma coisa constantemente, cada vez faço de um jeito. Mudo o caminho, mudo o rumo, mudo o como. Tenho que fazer diferente, é uma necessidade.

Mas hoje foi curioso. Foi importante. Será que as pessoas que fazem seus trabalhos domésticos, diariamente, terão o sentido de si mesmas como eu tive hoje? Um sentido de cuidado comigo, de reverência pelo meu espaço e por quem eu sou. Será que elas terminarão o dia conscientes da sua importância? Felizes? Ou alegres? Ou em paz?

Foi um tempo que dediquei a mim. Parece até que não porque, ao invés de descansar, trabalhei. Organizei, arrumei, limpei. Olhei para a vida que se acumulava pelos cantos, o resto de vida que deixei de lado, a sombra da vida resignada que esperava sobre os armários, atrás da porta. Contatei o meu lado B, uma coisa que nem existe mais. Tirei o pó. E havia pó. Havia cinza do que queimou até o fim, do que perdeu a cor. Os olhos secos, a garganta seca, a pele seca.

Precisei de coragem. E também de um novo fôlego. Novo, sim, pois o passado é uma coisa que gruda, repete, ecoa. Para respirar um novo ar no velho baú há que saber o que veio procurar. Eu procurava renovação. Fazer de um copo, um vaso. De uma caixa, um brinquedo. De um fantasma, uma fantasia. Agora, no dia da ressurreição. Hoje, que é o dia de voltar a ser feliz.

A felicidade até parece mar, vem e vai. Quando vem, passa transbordante e cristalina. Quando vai, carrega tudo de rebordão. Faz lembrar uma entidade, uma pessoa instável. Mas certo que não é ela, somos nós. Talvez seja por esse motivo que não gosto de repetição, porque internamente tenho em mim essa instabilidade irrequieta e irresistível ao mesmo tempo de querer o novo, uma paixão, um assomo de energia a cada passo que dou. Eu dou e tomo.

No dia da limpeza, há que encarar o sujo, pôr a mão no repugnante, consertar os erros. Mas erros não se consertam, o que se faz de novo é uma outra coisa. No melhor dos casos, dos erros fazemos aprender. Se e só. Bem, dá para fazer doce de leite de leite que talhou. Nem tudo é assim tão duro e dolorido. 

Limpar também me tirou do estado insistentemente mental. A atenção focada naquilo que se faz é uma espécie de meditação. O resto do mundo deixa de existir. Não tem fome, não tem sono, não tem sede. Não tem mais ninguém. Existe apenas sua atenção despercebida dela mesma fixada no afazer. Daqui para lá, de lá para cá, o que não serve, para fora, o que serve, para uso.  Não chega a refletir. É apenas um ser.

Por que procuro diariamente, cotidianamente, significados, eu não sei. Por que o tempo que passa a toa a toa não é algo aceitável? Por que preciso tanto de entender e entender e entender? E tendo entendido, relacionar, contar, expor? Por que, como uma criança, fico perguntando e perguntando sem parar o por quê? A vida me é mais que uma existência, um sentido. Um sentido intenso como um sonho interrompido. Como acordar à noite sem saber de que lado está na cama.

Mas afinal, não é o tempo que passa, é a vida. A vida passa, e passa como um trem desgovernado nos trilhos ou como um avião seguro no ar? A vida passa ou passamos por ela? Dizemos olá, sem tempo de perguntar como está. E se perguntamos, não ficamos para ouvir a resposta. Que tempo é esse que não temos? O que fazemos dele? Eu sei que a vida é para ser vivida, felizmente.

O que você está fazendo da sua vida se não tem tempo para ser feliz? Se não tem tempo para contar uma história para uma criança, de fazer o bolo que você mais gosta, de ler uma poesia, de olhar para objetos não identificados que passam pelo céu da sua casa? Se você só tem tempo para trabalhar, que esse trabalho ao menos o faça feliz; se não fizer feliz, que se faça alegre, mas se nada disso fizer sentido, que pelo menos o deixe em paz.

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