Hoje acordei e fiz uma coisa que nunca faço: trabalho
doméstico. Não é preconceito, é que ele faz parte das atividades rotineiras e
repetitivas, que é aquilo que mais abomino. Se tiver que fazer a mesma coisa
constantemente, cada vez faço de um jeito. Mudo o caminho, mudo o rumo, mudo o
como. Tenho que fazer diferente, é uma necessidade.
Mas hoje foi curioso. Foi importante. Será que as
pessoas que fazem seus trabalhos domésticos, diariamente, terão o sentido de si
mesmas como eu tive hoje? Um sentido de cuidado comigo, de reverência pelo meu
espaço e por quem eu sou. Será que elas terminarão o dia conscientes da sua
importância? Felizes? Ou alegres? Ou em paz?
Foi um tempo que dediquei a mim. Parece até que não
porque, ao invés de descansar, trabalhei. Organizei, arrumei, limpei. Olhei para
a vida que se acumulava pelos cantos, o resto de vida que deixei de lado, a
sombra da vida resignada que esperava sobre os armários, atrás da porta. Contatei
o meu lado B, uma coisa que nem existe mais. Tirei o pó. E havia pó. Havia cinza
do que queimou até o fim, do que perdeu a cor. Os olhos secos, a garganta seca,
a pele seca.
Precisei de coragem. E também de um novo fôlego. Novo,
sim, pois o passado é uma coisa que gruda, repete, ecoa. Para respirar um novo
ar no velho baú há que saber o que veio procurar. Eu procurava renovação. Fazer
de um copo, um vaso. De uma caixa, um brinquedo. De um fantasma, uma fantasia. Agora,
no dia da ressurreição. Hoje, que é o dia de voltar a ser feliz.
A felicidade até parece mar, vem e vai. Quando vem,
passa transbordante e cristalina. Quando vai, carrega tudo de rebordão. Faz lembrar
uma entidade, uma pessoa instável. Mas certo que não é ela, somos nós. Talvez seja
por esse motivo que não gosto de repetição, porque internamente tenho em mim essa
instabilidade irrequieta e irresistível ao mesmo tempo de querer o novo, uma
paixão, um assomo de energia a cada passo que dou. Eu dou e tomo.
No dia da limpeza, há que encarar o sujo, pôr a mão no
repugnante, consertar os erros. Mas erros não se consertam, o que se faz de
novo é uma outra coisa. No melhor dos casos, dos erros fazemos aprender. Se e
só. Bem, dá para fazer doce de leite de leite que talhou. Nem tudo é assim tão
duro e dolorido.
Limpar também me tirou do estado insistentemente
mental. A atenção focada naquilo que se faz é uma espécie de meditação. O resto
do mundo deixa de existir. Não tem fome, não tem sono, não tem sede. Não tem
mais ninguém. Existe apenas sua atenção despercebida dela mesma fixada no
afazer. Daqui para lá, de lá para cá, o que não serve, para fora, o que serve,
para uso. Não chega a refletir. É apenas
um ser.
Por que procuro diariamente, cotidianamente,
significados, eu não sei. Por que o tempo que passa a toa a toa não é algo
aceitável? Por que preciso tanto de entender e entender e entender? E tendo
entendido, relacionar, contar, expor? Por que, como uma criança, fico
perguntando e perguntando sem parar o por quê? A vida me é mais que uma
existência, um sentido. Um sentido intenso como um sonho interrompido. Como acordar
à noite sem saber de que lado está na cama.
Mas afinal, não é o tempo que passa, é a vida. A vida
passa, e passa como um trem desgovernado nos trilhos ou como um avião seguro no
ar? A vida passa ou passamos por ela? Dizemos olá, sem tempo de perguntar como
está. E se perguntamos, não ficamos para ouvir a resposta. Que tempo é esse que
não temos? O que fazemos dele? Eu sei que a vida é para ser vivida, felizmente.
O que você está fazendo da sua vida se não tem tempo
para ser feliz? Se não tem tempo para contar uma história para uma criança, de
fazer o bolo que você mais gosta, de ler uma poesia, de olhar para objetos não
identificados que passam pelo céu da sua casa? Se você só tem tempo para
trabalhar, que esse trabalho ao menos o faça feliz; se não fizer feliz, que se
faça alegre, mas se nada disso fizer sentido, que pelo menos o deixe em paz.
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