Eu não sou mais
da cidade grande. Não sei me encontrar nela. Não sei sequer me perder. Estou
fora dela como ela está fora de mim. Onde estão as pessoas? Onde elas se
escondem em noites intensas? Onde elas vagueiam? Eu não as encontro, procuro,
mas rodo em círculos, fico parada no tempo, até por fim sentar e tomar um café.
Não
encontro os telefones, deixo recados que nunca serão ouvidos ou reclamados, ou
respondidos. Olho em volta, reconheço a rua, reconheço o lugar, fisicamente.
Mas o espírito, eu não localizo. Quais os símbolos? Eu os perdi quando saí
daqui para nunca mais. Joguei as chaves no bueiro do lado de fora da calçada.
Eu não me entendo mais aqui.
Os sinais, que
me dizem? Que não sou mais da tribo, não tenho a senha, não sei mais passar
pelo portal. Cruzei a linha precipitadamente demais. Minha viagem não permite
volta. Tarde demais. Forte demais. Longe demais. Desci os porões além de onde
havia possibilidade de ir. Subi os telhados transparentes e quebradiços dos
desejos desajeitados da minha herança. Fui. Transpus. Me perdi? De folha
outonal caindo da árvore passei a borboleta subindo para o vento. Diferente? O
mesmo vento a soprar. Só eu que mudei a vela, a direção.
Hoje não
quero voltar. Eu só queria reconhecer as esquinas que já cruzara antes. Só
queria ver a cara daquilo que me dizia alguma coisa antes. Antes do fim. Antes,
quando eu era apenas mais um alguém a andar pelas ruas. Perdida em ziguezague
refém do tempo, do medo, do peito frio, desconsolado. Desconsolada. Des.
Desconstrui
quem eu era para poder partir. E hoje, quando me sinto, aqui longe do meu
lugar, parece que nunca pudesse ter sido diferente. Encontros marcados em ruas
desconhecidas, com pessoas que deixaram de ser. Fantasmas emudecidos de quem
fui. Tantas.
A cidade
grande é um xamã hipnótico que acompanha e encaminha os iniciados. Protege e
alicia os que aceitam. Depois, expulsa quem não o segue completamente. Feche os
olhos e siga em frente. É uma ordem. Não pense na vida por levar, não sinta
saudade de nada que já passou, não tente entender o que aconteceu. O grande
irmão existe de verdade. Ele filma no semáforo, ele grava no elevador, ele não
deixa que você passe em vão. Faça parte dessa turma. Seja alguém a remar na
mesma direção. E se você partir, um dia, ninguém sentirá falta. Ninguém vai
ligar para ver se aconteceu alguma coisa. Porque você só existe se está na
mesma maré. Subindo e descendo na mesma onda. Depois disso, bem, depois disso é
bom que o que você faça lhe faça sentido. Que você suma para algum lugar que
tenha coração. Que você se encontre numa casa que pulse com sua chegada. Que você
durma sem turma, mas de bem com a vida.
A vida não
é um albergue lotado. Antes, é um voucher para um passeio de caiaque que leva
você aonde quiser ir. Vai até onde você for. A vida pode ser silenciosa e muda
como um filme antigo. E pode ser um balanço no meio da tarde, longe, tão longe
que dá para ver a silhueta do sol se por. Não é barato, não. E dá um trabalhão
ficar olhando para um céu azul sem fim. Não tem a comodidade de ser porta com
porta, janela com janela, carro, buzina, farol. As pessoas não estão tão fáceis
ao pé de uma agenda eletrônica. Sem sinais, é preciso falar declaradamente. Declarar
sua falta. Declarar que importam. Em voz alta, olho no olho, expor mesmo. É, até
a liberdade tem preço.
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