Às vezes as coisas acontecem só para a gente poder mudar. Mudar de idéia, mudar a cabeça mesmo. Por exemplo, eu sempre pensei que cerveja e vinho fossem bebidas para se beber junto, em grupo, fossem bebidas coletivas. E que para beber sozinho o melhor seriam os destilados. Descobri que o vinho tem um gosto diferente sem companhia, mas é tão bom quanto. E que cervejas boas podem ser servidas em noites frias sem nenhum problema. Ao contrário, proporcionando tanto prazer como uma festa.
Eu, na verdade, não gosto lá de festas. Prefiro conversas com amigos. Prefiro encontros. Mas se vai haver uma confraternização, que seja uma festa, divertida, descontraída. Não dá para querer ser peter pan o resto da vida e parar de crescer, dá é para dar folga ao adulto de vez em quando, sair do sério, não mover um dedo para arrumar a bagunça, não se incomodar um centavo pela obrigação deixada para amanhã. Se deixarmos, o dia não termina, o sol não se põe, e nunca dá tempo para nada.
Enquanto penso essas coisas, meu gato se aproxima. Bichos são um pouco previsíveis. Previsíveis e lindinhos, claro. Então, enquanto como brusquetas preparadas com carinho de mãe – é, jargão do jargão, mães cuidam, mães fazem com carinho – mesa posta acompanhada de cerveja – outra quebra – ele chega na minha perna. Conheço-o. Não posso pegá-lo, pois ele não suporta ser apertado e confinado. Então, puxo a cadeira em que ele está e aproximo da minha. Ele se debruça na minha perna esperando atenção. Chega a fechar os olhos enquanto passo os dedos por seu pêlo macio.
Gosto de saber que tenho animais sadios na minha casa. Cães barulhentos têm saúde certamente. É que já vivi coisas diferentes com animais domésticos. Já tive plantas morrendo em seus vasos, e um bichinho que precisei dar para não secar também. Foi uma época em que não sabia de mim. Estava ausente. Obscura, desacreditada, descompassada. Não sabia me cuidar, não cuidei de nada. Naquele tempo via o tempo passar sem me dar conta. É possível? Alguém que não levanta um dedo para si mesmo? Que se abandona? Que não se vê ao espelho pela manhã, que não se reconhece na fome, na falta de sono, de dia, de noite, não está? É possível, dolorosamente possível.
Foi uma época que vivi tantos altos e baixos que cheguei a acreditar que assim era a vida. Intensa. E tinha que ser assim. Então, tudo aquilo que fugia da intensidade, emocionada ou emocionante, não tinha graça. Chamava isso de viver com paixão. Acreditava que vida sem paixão não era vida. Era preciso viver vertiginosamente ou ir embora. Fui embora diversas vezes mesmo quando me arrependesse no dia seguinte. Fui embora e não voltei porque quem vicia na emoção não pode simplesmente se arrepender e voltar atrás. Tem que deixar no caminho aquilo que não pode levar. Isso é apaixonar-se. Engatar seu vagão na primeira locomotiva que passar para sentir o vento no rosto, o coração bater desatinado, mas bater sem parar.
Pode ser um pecado capital, mas preciso comer os frutos da árvore proibida. Preciso entender sempre. Preciso transformar toda minha dor em algum conhecimento, em metafísica, em palavras bem traduzidas. Preciso ver inteligência em tudo, nos gestos impensados, na doença, no silêncio. Tudo tem um porquê compreensível. Enquanto não compreendo, a dor é maior, quase insuportável. Algumas pessoas preferem não saber do que encarar uma verdade incômoda. Muitas vão odiar uma verdade dolorida. A desilusão tão difícil de ser vivida. E por mais que seja cortar a própria carne, seja dissecar o corpo vivo, pulsando, doendo, eu preciso entender. Não me dê anestesia, não me tampe os olhos, não me impeça de ver o porquê. Porquês são o sopro que acompanham o remédio que arde.
A cerveja me deu sono. Agora, que toda aquela dor de ausência é apenas uma lembrança distante, vou me deixando dominar pela síndrome das pálpebras pesadas. Cansada, penso se acordarei cedo amanhã. Sim. Acordarei. Num dia marcado por quebrar rotinas, vou acordar cedo e com gosto.
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