terça-feira, 24 de maio de 2011

Por falta de mar

Por falta de mar, preparei uma sopa. Nada de verde, assim, puro. Fiz uma sopa de tomate com chuchu e vinho branco, picante. Comi me sentindo perdoada, renovada, revivida. E foi bem rápida e fácil, o tempo da minha fome, que veio sem aviso porque o frio dá fome dessas que não avisam, que chega de repente, tarde da noite.
Já tinha acendido o fogão a lenha para aquecer a casa e meus pés, congelados. Já tinha feito compras antes de vir para casa, pois já adivinhava que a noite prometia. Então, esperei com paciência. Quase sorrindo, sabendo de sua aproximação. Quando chegou, fui atendê-la imediatamente. Meia cebola refogada em azeite bom. Meia pimenta picante com alho espremido para refogar bem. Meio chuchu picadinho e três tomates vermelhos. Depois, vinho branco torrontés para perfumar o ambiente já defumado. Por fim, na cumbuca para servir, um bocado de cheiro-verde e queijo parmesão ralado na hora. Se não for ralado na hora, dispense. O queijo, como as especiarias, desperta com o movimento. E cerveja para beber, claro. Hoje dei ao frio a resposta gelada da cerveja, amarga e suada. O vinho seria óbvio demais.
Um gato no colo completa o pensar que a noite já vai profunda. Que bom que é o frio e poder aquecer-se. Que bom que é a fome que pode ser saciada. Deus olhe por aqueles que na vida passam sem poder remediar suas dores. E possa lhes dar entendimento um dia dos seus porquês, pois não há angústia pior que não entender. A fome do espírito, insaciável e voraz. Que engole todas as palavras sem lhes sentir o gosto. E palavras têm gosto? Cada uma o seu próprio sentido.
Meu quarto não tem nenhum tipo de aquecimento, é uma pena não poder dormir na cozinha. Mas o que é isso? Já não bastasse passar tanto tempo na cozinha, olhando o fogo e vendo-o derreter-se como gelo vermelho, os cheiros dos temperos rodeando tudo, feito música, como se não bastasse esquecer de tudo e ficar mergulhada num clima de montanha, ele próprio já temperado, ainda penso em dormir na rabeira do fogão. O problema é que o fogo apaga uma hora, como a paixão. Tem que aproveitar quando ainda está bem quente para que o frio depois não faça ressentir sua pele. Ou alguém terá que ficar alimentando a cada pouco.
Depois, vou dormir ouvindo os estalos de cristais que a brasa vai emitindo, me embalando para o sono divino que chega. Que nome daria à vida? Nome de mulher? Ou de bicho? Talvez de flor? Ou de pedra? Eu diria que ela é chama: bailarina, quente e voluptuosa, e frágil, vulnerável à menor brisa ou à falta dela. Ah, as intrigas criadas para distrair a mente e que libertam a alma para seu vagar de volta ao reino do sem-sentido (eu, que nessa vida, mudei tudo que podia para encontrar sentido, dia após dia, ao olhar para o espelho, de manhã). E que outro sentido poderia haver no azul do céu que amanhece quase lilás, quase anil, que azul é esse? É a vida plena.

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