E tudo morre um dia. Morre no peito a flor arrebatada por
outras mãos e entregue nas suas sofregamente. Morreria mesmo se não tivesse sido
colhida. Morre a batida forte do coração que insiste, ainda assim, na vida. Morre
o brilho no olhar. O sorriso ao acordar para além da manhã que nasce. Morre. O sol,
o calor no rosto, o corpo aquecido pela luz de um dia, tudo morre.
No eterno que é a vida, a palavra prometida será esquecida. A
promessa, cujo beijo selou em silêncio, passará como névoa, com o vento. Todos os
sonhos sonhados em noites em claro, conjugados, compartilhados pelo olhar
inocente de quem acredita. Todas as músicas assobiadas no íntimo, que remetem a
gestos largos, transbordantes. A intimidade conquistada sob os lençóis, o
arrepio da pele, o revoar do estômago. Até mesmo a dor de uma ausência
repentina, tudo passa, morre, fica para sempre no esquecido de um canto escuro,
na dobra de um tapete, atrás da porta.
Seca a lágrima escorrida do reencontro, seca a língua depois
do adeus. E a fala rouca, engasgada, arrependida, fica presa na garganta. O ar,
fazendo oco o peito, falta como uma conta que não fecha, como uma janela para a
parede, um sono de pé dentro do metrô. Toda a vida morre tal qual o rio que
escorre pela pedra. Só não morre mais o que não é vida.
E depois, ainda doendo pelo calor que falta, ter que sacar
da pá e terra, ir enterrando de mansinho cada morto que ficou presente, grudado
no sangue, na ponta dos dedos. Cada morto que insiste em se prender nos pés,
feito sombra. E sim, todos os fantasmas de emoções perdidas no deserto sem fim
que é o adeus.
Não. Não estenda a mão para tentar tocar o que já não há
mais. Não procure sentir o cheiro de café com beijo das manhãs fugidas. Vire a
cabeça para outro lado. Faça de conta que não é com você. Sorria. Siga em
frente.
Porque à frente uma esquina, uma alameda larga arborizada,
cheia de carros, óculos escuros para não ver mais o que não quer ver, logo alí,
já terá esquecido o que fez doer no peito tantas noites mal dormidas, tantas
palavras cruas, duras, desruborizadas, descoloridas. Terá deixado como um
rastro indelével a gordura do olhar insustentável.
Sobrará pouca coisa. O apertado do rosto no último abraço. Ou
um resto de perfume na passagem da aragem. Ficará, talvez, o zunido do carro
que se foi, partindo sem volta para o infinito. Ficarão as folhas amassadas nos
últimos passos. E um pouco do seu quebrar permanecerá nos sapatos. Só isso e
nada mais.
Poucas palavras para guardar na memória. Pouco do brilho que
um dia cobriu a pele toda. Tudo muito pouco, como esmola que caiu do bolso.
Depois, só muito depois, poderá rever as fotos, rever os
fatos, refazer a história. Poderá contar como não fora, e o que fora poderá
tornar a colorir. Muito tempo ainda correrá pelo ralo antes de poder voltar a
falar com naturalidade do dia que cortou de si o beijo que quis eterno. Poderá –
talvez – entender a finitude, a morte, o estilhaço. Ou talvez não.
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