domingo, 21 de dezembro de 2014

Tudo morre

E tudo morre um dia. Morre no peito a flor arrebatada por outras mãos e entregue nas suas sofregamente. Morreria mesmo se não tivesse sido colhida. Morre a batida forte do coração que insiste, ainda assim, na vida. Morre o brilho no olhar. O sorriso ao acordar para além da manhã que nasce. Morre. O sol, o calor no rosto, o corpo aquecido pela luz de um dia, tudo morre.

No eterno que é a vida, a palavra prometida será esquecida. A promessa, cujo beijo selou em silêncio, passará como névoa, com o vento. Todos os sonhos sonhados em noites em claro, conjugados, compartilhados pelo olhar inocente de quem acredita. Todas as músicas assobiadas no íntimo, que remetem a gestos largos, transbordantes. A intimidade conquistada sob os lençóis, o arrepio da pele, o revoar do estômago. Até mesmo a dor de uma ausência repentina, tudo passa, morre, fica para sempre no esquecido de um canto escuro, na dobra de um tapete, atrás da porta.

Seca a lágrima escorrida do reencontro, seca a língua depois do adeus. E a fala rouca, engasgada, arrependida, fica presa na garganta. O ar, fazendo oco o peito, falta como uma conta que não fecha, como uma janela para a parede, um sono de pé dentro do metrô. Toda a vida morre tal qual o rio que escorre pela pedra. Só não morre mais o que não é vida.

E depois, ainda doendo pelo calor que falta, ter que sacar da pá e terra, ir enterrando de mansinho cada morto que ficou presente, grudado no sangue, na ponta dos dedos. Cada morto que insiste em se prender nos pés, feito sombra. E sim, todos os fantasmas de emoções perdidas no deserto sem fim que é o adeus.

Não. Não estenda a mão para tentar tocar o que já não há mais. Não procure sentir o cheiro de café com beijo das manhãs fugidas. Vire a cabeça para outro lado. Faça de conta que não é com você. Sorria. Siga em frente.

Porque à frente uma esquina, uma alameda larga arborizada, cheia de carros, óculos escuros para não ver mais o que não quer ver, logo alí, já terá esquecido o que fez doer no peito tantas noites mal dormidas, tantas palavras cruas, duras, desruborizadas, descoloridas. Terá deixado como um rastro indelével a gordura do olhar insustentável.

Sobrará pouca coisa. O apertado do rosto no último abraço. Ou um resto de perfume na passagem da aragem. Ficará, talvez, o zunido do carro que se foi, partindo sem volta para o infinito. Ficarão as folhas amassadas nos últimos passos. E um pouco do seu quebrar permanecerá nos sapatos. Só isso e nada mais.

Poucas palavras para guardar na memória. Pouco do brilho que um dia cobriu a pele toda. Tudo muito pouco, como esmola que caiu do bolso.


Depois, só muito depois, poderá rever as fotos, rever os fatos, refazer a história. Poderá contar como não fora, e o que fora poderá tornar a colorir. Muito tempo ainda correrá pelo ralo antes de poder voltar a falar com naturalidade do dia que cortou de si o beijo que quis eterno. Poderá – talvez – entender a finitude, a morte, o estilhaço. Ou talvez não.

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