Quanto a mim, se morrer porque meu coração parou,
simplesmente, e alguém disser que foi por causa de excesso de manteiga, saibam
todos que morri feliz. Sim, porque manteiga é tudo de bom. Veja que as melhores
coisas da vida têm manteiga. Pipoca na manteiga, por favor, dispense o sabor
artificial; margarina é uma ofensa, essas coisas ditas saudáveis, mas que você
nem sabe como são feitas. Não me tire os ovos, diga o que quiser a respeito
deles. Contanto que sejam caipiras de verdade, postos na roça, de galinha que
cisca no quintal, não os rejeito de maneira alguma. Eles já foram vilões, já
voltaram a ser bons, e toda essa confusão moderna sobre alimentos e o risco.
Quando comida passa a ser risco é um sinal de que nos perdemos no caminho. E só
o caminho da terra é aquele que nos remete às origens, às raízes, e esse é o
caminho seguro. Embora eu já tenha ouvido falar que tem gente produzindo
morangos com a distinção de que alguns morangos são para comer outros são para
vender. E para vender, não é para comer? Bem, a modernidade é complexa. Tem
fruta que nunca deveria ter ido parar na mesa, era para ser enfeite. Bonita,
mas ordinária, bonita e sem gosto, ou pior, bonita e venenosa. E logo comer,
que é uma das atividades com mais intimidade que fazemos em público, não é
mesmo? Perdeu o significado sagrado do alimentar, fomentar, saciar para ser um
ato mecânico, funcional, quase sem prazer.
Digo quase, pois ainda que seja funcional, ainda que você
esteja vendo apenas uma necessidade fisiológica, comer tem a ver com gostar.
Exceto quem está metido em uma dieta – olha aí o funcional, coitado – não dá
para comer o que não gosta. Eu não consigo. Não engulo de jeito nenhum. E
claro, o gosto é muito pessoal, mas não está ligado a uma vontade racional.
Diga agora mesmo que você nunca mais vai gostar de chocolate. Ou nunca mais vai
comer pimenta. Diga que não vai comer mais carne, mas não diga que é porque
deixou de gostar. Não de repente. O gostar de comida é mais fiel que qualquer
outro amor. Você leva tempo para deixar ou para passar a gostar. Vai se
acostumando com a ideia, vai fazendo isso passo a passo. Ou você já não gostava
e comia porque não sabia que podia dizer: não quero, não gosto.
Ah, e tem coisa mais detestável do que você dizer que não
gosta e alguém insistir que é bom? Alguém perguntando se você já experimentou?
Parece que você é o único no mundo a não querer comer aquilo. Está certo, tem
um milhão de gente no mundo que come frutos do mar, mas ninguém vai me
convencer de que aquilo é bom. Aliás, hoje em dia ninguém me convence de que precisa
comer qualquer tipo de coisa. Só aceito uma explicação: você gosta. Fim. É
porque é rico nisso, supre aquilo, faz bem para tudo, pode dizer o que for.
Quanta coisa já foi boa e hoje é ruim e amanhã vai voltar a ser boa? Cultura é
cultura. É uma coisa que se cultiva. E o gosto é um cultivar diário.
Por exemplo, hoje gosto de você, e se continuar alimentando
esse sentimento, vou continuar gostando até o fim. Até que meu coração pare por
causa da manteiga. Mas digamos que eu me magoe, e, muito pior, que me deixe
fisgar por essa mágoa. Digamos que por esse motivo, porque não soube lidar com
outro sentimento, contrário, eu deixe de alimentar aquele gostar. A cada dia
vou fechando janelas e deixando escurecer esse lugar no coração que ainda bate.
Um dia, acordo e não gosto mais. O que tinha aqui antes? Apenas ficou um lugar
vazio e escuro no peito. Ai, ruim demais até para continuar pensando. Então,
por esse motivo, é melhor gostar, cultivar, alimentar. É por isso que digo que
alimento é uma coisa íntima: fala do interior indescritível dos nossos sentimentos.
Fala de gostar.
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