segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Errar é bom



Quando tudo, enfim, terminou, fui fazer o jantar. E ao dar por mim, estava errando tudo. Fazendo tudo errado. Errei o sal, queimei o alho, errei muito. E era bom como nunca tinha sido. Errei, e fui errando mais. Fui deixando secar demais. Errei o fogo, errei a hora. Errar era um presente, uma liberdade. O riso voltou, e voltou a mão solta com ombros largados. Até falar sozinha, até cantar errado, errei o ritmo. Meu deus, a geladeira ficou aberta, a jorrar sua friagem para todo lado. 

Errar pode ser uma dádiva em alguns momentos. Um soluço quando a lágrima demora. Um gemido quando a garganta aperta. Errar bastante. Criar, descriar, recriar. Errar para clarear a mente de que o certo é virtualmente impossível. Que o certo é essencialmente fictício. E acertar é uma aposta. Uma história combinada antes, sem gracinha como saber o segredo de um segredo.

Agora, nada se compara a alforria de poder errar. Fazer o que o coração mandar, sem pensar muito. E, se pensar, para não adolescer experimentalmente, poder abrir os olhos como janelas transparentes, e deixar a brisa fresca entrar. Deixar o vento forte revirar. Deixar o temporal cair pesado lavando as paredes de todos os pensamentos perdidos, agarrados fora do tempo.

Só depois entendi que terminou.

Bem sei que nem tudo que termina é o fim. Mas o fim, mesmo sendo uma ponte, mesmo sendo uma corredeira de rio, ou um galho caído, o fim anuncia renovação. Ai que dor, ai que bom. Esperar crescer de novo o broto que pressente a chuva. Esperar irromper na pele a vontade de rir alto e sem tino. No entanto, por ora, aceitar que tudo termina. Tudo acaba um dia. O que é vivo, morre.

Exceto o amor. O amor não tem tino nem destino. É como vírus no ar que pode ir parar nos pulmões ou nas folhas secas das árvores, fazendo-as cair feito ouro. O amor é um grande trem que não para de passar no horizonte. Não tem fim. De todas as coisas que morrem, só fica o amor.

Depois do jantar, que comi sofregamente, aquietei com um copo de vinho. Ou foi cachaça? Aquietei com o gosto na boca de quem já amargou o que podia e agora era hora de sedear a saliva doce. O rumo aprumado para além das neves eternas. Para além da dureza das pedras. Hora da maciez invejável da pele elástica e quente. Hora de sentir todos os sentidos, todas as direções, sem escolher qualquer. Tudo.

E o amor existe, resiste, em todo lugar? Não, decididamente não. Não pode haver realmente amor onde chover cercas eletrificadas. Não pode se chamar de amor aquilo que é apenas um buraco no peito que não tem tamanho nem nome, apenas um buraco profundo e insatisfeito. O amor, como água fresca, corre solto. O amor erra. Ah, e, sobretudo, o amor escorrega, esguio.

Pode ser noite adentro, pode ser escuro e cru. Pode ser perdido na areia e pode ser vencido na guerra (o amor sempre perde todas as guerras). Pode ser. Pode ser. O amor pode ser. O ser que vira a esquina quando deveria seguir em frente. E que passa por baixo da mesa, por baixo do assoalho, por baixo do porão insuspeito das emoções desencontradas. O amor, o deus amor, o grande deus, não tem hora, não tem tempo, não dá a mão, não pede perdão. 

O amor, no sentido que mais lhe aprouver, não termina nunca. O que termina é a vontade de continuar insistindo.

3 comentários:

  1. uma bela surpresa começar a conhecer você pela poesia esparramada no seu texto... Abraços, Christina Queiroz ou Chris Braga.

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  2. O amor suave, o amor resiliente, o amor terno e o eterno amor...
    O amor cíclico, transformador, mutável e o imutável amor...
    Permanece o sentimento e ainda é lindo esse amor transformado...
    Abraço no coração.


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