Quando tudo, enfim, terminou, fui fazer o jantar. E ao dar
por mim, estava errando tudo. Fazendo tudo errado. Errei o sal, queimei o alho,
errei muito. E era bom como nunca tinha sido. Errei, e fui errando mais. Fui
deixando secar demais. Errei o fogo, errei a hora. Errar era um presente, uma
liberdade. O riso voltou, e voltou a mão solta com ombros largados. Até falar
sozinha, até cantar errado, errei o ritmo. Meu deus, a geladeira ficou aberta,
a jorrar sua friagem para todo lado.
Errar pode ser uma dádiva em alguns momentos. Um soluço
quando a lágrima demora. Um gemido quando a garganta aperta. Errar bastante.
Criar, descriar, recriar. Errar para clarear a mente de que o certo é
virtualmente impossível. Que o certo é essencialmente fictício. E acertar é uma
aposta. Uma história combinada antes, sem gracinha como saber o segredo de um
segredo.
Agora, nada se compara a alforria de poder errar. Fazer o
que o coração mandar, sem pensar muito. E, se pensar, para não adolescer
experimentalmente, poder abrir os olhos como janelas transparentes, e deixar a
brisa fresca entrar. Deixar o vento forte revirar. Deixar o temporal cair
pesado lavando as paredes de todos os pensamentos perdidos, agarrados fora do
tempo.
Só depois entendi que terminou.
Bem sei que nem tudo que termina é o fim. Mas o fim, mesmo
sendo uma ponte, mesmo sendo uma corredeira de rio, ou um galho caído, o fim
anuncia renovação. Ai que dor, ai que bom. Esperar crescer de novo o broto que
pressente a chuva. Esperar irromper na pele a vontade de rir alto e sem tino.
No entanto, por ora, aceitar que tudo termina. Tudo acaba um dia. O que é vivo,
morre.
Exceto o amor. O amor não tem tino nem destino. É como vírus
no ar que pode ir parar nos pulmões ou nas folhas secas das árvores, fazendo-as
cair feito ouro. O amor é um grande trem que não para de passar no horizonte.
Não tem fim. De todas as coisas que morrem, só fica o amor.
Depois do jantar, que comi sofregamente, aquietei com um
copo de vinho. Ou foi cachaça? Aquietei com o gosto na boca de quem já amargou
o que podia e agora era hora de sedear a saliva doce. O rumo aprumado para além
das neves eternas. Para além da dureza das pedras. Hora da maciez invejável da
pele elástica e quente. Hora de sentir todos os sentidos, todas as direções,
sem escolher qualquer. Tudo.
E o amor existe, resiste, em todo lugar? Não, decididamente
não. Não pode haver realmente amor onde chover cercas eletrificadas. Não pode
se chamar de amor aquilo que é apenas um buraco no peito que não tem tamanho
nem nome, apenas um buraco profundo e insatisfeito. O amor, como água fresca,
corre solto. O amor erra. Ah, e, sobretudo, o amor escorrega, esguio.
Pode ser noite adentro, pode ser escuro e cru. Pode ser
perdido na areia e pode ser vencido na guerra (o amor sempre perde todas as
guerras). Pode ser. Pode ser. O amor pode ser. O ser que vira a esquina quando
deveria seguir em frente. E que passa por baixo da mesa, por baixo do assoalho,
por baixo do porão insuspeito das emoções desencontradas. O amor, o deus amor,
o grande deus, não tem hora, não tem tempo, não dá a mão, não pede perdão.
O amor, no sentido que mais lhe aprouver, não termina nunca.
O que termina é a vontade de continuar insistindo.
uma bela surpresa começar a conhecer você pela poesia esparramada no seu texto... Abraços, Christina Queiroz ou Chris Braga.
ResponderExcluirobrigada, Chris!!
ResponderExcluirO amor suave, o amor resiliente, o amor terno e o eterno amor...
ResponderExcluirO amor cíclico, transformador, mutável e o imutável amor...
Permanece o sentimento e ainda é lindo esse amor transformado...
Abraço no coração.