Não se apaga uma história da vida. Seja ela doce ou amarga.
Seja inesquecível ou dolorida. Simplesmente ficará para sempre no gravado da
pele, entre as veias, na retina. Ficará no gosto da saliva, irreconhecível como
um prato bom ou congelado como um enfeite de mesa. Não se apaga.
Não se apaga o cheiro sentido quando foi tarde demais para
agir. (E, que tempo é esse? Alguma vez já foi tarde demais? Ou cedo demais? Existirá
uma hora certa para tudo? Como a marcação no palco, ou na música, ou no olhar.)
Não se apaga o tempo que esperou para nunca chegar, o tempo que levou para
nunca crescer, o tempo que passou, enfim.
Ou talvez, sim, haja o tempo dos trens. E faltar à estação
no dia certo. E estar com a passagem certa. Talvez. Como um tabuleiro enorme,
no qual as peças vão caminhando, você uma delas, até que se cruzem. Quais as
regras? Quais os objetivos? Só haverá esse
tempo se houver regras, e houver uma trilha a percorrer, e se houver um roteiro
prévio.
Mas a vida que segue – para onde? – a vida que se estende em
nós ou tramas numa rede sem fim é cheia de histórias contadas, catadas. Algumas
viram lendas, outras são apenas marcos aleatórios, ritos, pontes. Algumas doem
feito prego no dedo descuidado. Outras são como pedras descampadas em pés
descalços. Ou como um pão com manteiga no final da tarde. Com café.
Tem coisa que eu gostaria de esquecer, mas já se tornou
impossível. Queria esquecer quando escorreguei, desisti, bobeei. Queria
esquecer todas as palavras fora de hora, todas as piadas estúpidas, cretinas,
as ironias todas. Queria esquecer que não fui bem na fita, não fui bem na cena,
aliás, fui bem mal. Queria me lembrar apenas dos atos heroicos, os gestos
soberanos, a palavra inteligente.
Se houver um deus, ele não criou tudo perfeito. Ele deixou
brechas para serem completadas. Tantas emoções desencontradas. Tantas verdades.
Como escolher sem errar? E por que não errar? Como um escultor que bate em
falso no mármore e destrói sua criatura, como um deus que criou a tristeza,
criou o desengano, a perplexidade.
A minha história não corre sobre trilhos, não escorre em
nenhum leito, não segue o caminho do horizonte, o norte, o prumo. Como um
caminho onde o mato cresceu demais, como uma flor que nasceu no alto do galho e
ninguém vê; como o relâmpago riscando o céu na madrugada, como, enfim, uma
areia voando no vento, assim é que sigo.
Minha história é feita de todas as notas dissonantes e de
todas as palavras ditas, pensadas, escritas, engolidas, caladas. Todas as
lacunas e todos os silêncios. Feita de matéria dura, tijolo, terra crua,
poeira. Feita de nuvem e de sonho. E de todos os sonhos que ainda virão nas
noites intermináveis que são a passagem do tempo. Átimo.
Mas, no final, minha história não é senão uma letra na
história do tempo. Brilho efêmero de vagalume voando. Um piscar do olho da
águia. Uma folha que vira no vento. A vida, muito além do que conta, é um
folhear o livro que ainda não foi escrito.
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