terça-feira, 25 de novembro de 2014

A vida não corre em trilhos



Não se apaga uma história da vida. Seja ela doce ou amarga. Seja inesquecível ou dolorida. Simplesmente ficará para sempre no gravado da pele, entre as veias, na retina. Ficará no gosto da saliva, irreconhecível como um prato bom ou congelado como um enfeite de mesa. Não se apaga.

Não se apaga o cheiro sentido quando foi tarde demais para agir. (E, que tempo é esse? Alguma vez já foi tarde demais? Ou cedo demais? Existirá uma hora certa para tudo? Como a marcação no palco, ou na música, ou no olhar.) Não se apaga o tempo que esperou para nunca chegar, o tempo que levou para nunca crescer, o tempo que passou, enfim.

Ou talvez, sim, haja o tempo dos trens. E faltar à estação no dia certo. E estar com a passagem certa. Talvez. Como um tabuleiro enorme, no qual as peças vão caminhando, você uma delas, até que se cruzem. Quais as regras? Quais os objetivos?  Só haverá esse tempo se houver regras, e houver uma trilha a percorrer, e se houver um roteiro prévio.

Mas a vida que segue – para onde? – a vida que se estende em nós ou tramas numa rede sem fim é cheia de histórias contadas, catadas. Algumas viram lendas, outras são apenas marcos aleatórios, ritos, pontes. Algumas doem feito prego no dedo descuidado. Outras são como pedras descampadas em pés descalços. Ou como um pão com manteiga no final da tarde. Com café.

Tem coisa que eu gostaria de esquecer, mas já se tornou impossível. Queria esquecer quando escorreguei, desisti, bobeei. Queria esquecer todas as palavras fora de hora, todas as piadas estúpidas, cretinas, as ironias todas. Queria esquecer que não fui bem na fita, não fui bem na cena, aliás, fui bem mal. Queria me lembrar apenas dos atos heroicos, os gestos soberanos, a palavra inteligente. 

Se houver um deus, ele não criou tudo perfeito. Ele deixou brechas para serem completadas. Tantas emoções desencontradas. Tantas verdades. Como escolher sem errar? E por que não errar? Como um escultor que bate em falso no mármore e destrói sua criatura, como um deus que criou a tristeza, criou o desengano, a perplexidade.

A minha história não corre sobre trilhos, não escorre em nenhum leito, não segue o caminho do horizonte, o norte, o prumo. Como um caminho onde o mato cresceu demais, como uma flor que nasceu no alto do galho e ninguém vê; como o relâmpago riscando o céu na madrugada, como, enfim, uma areia voando no vento, assim é que sigo.

Minha história é feita de todas as notas dissonantes e de todas as palavras ditas, pensadas, escritas, engolidas, caladas. Todas as lacunas e todos os silêncios. Feita de matéria dura, tijolo, terra crua, poeira. Feita de nuvem e de sonho. E de todos os sonhos que ainda virão nas noites intermináveis que são a passagem do tempo. Átimo. 

Mas, no final, minha história não é senão uma letra na história do tempo. Brilho efêmero de vagalume voando. Um piscar do olho da águia. Uma folha que vira no vento. A vida, muito além do que conta, é um folhear o livro que ainda não foi escrito.

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