Olhou para o lado e se viu novamente sozinha. Sim, por
um breve instante em sua vida acreditara que de sua nave espacial havia saído
mais gente nessa sua aventura, mas se enganara. Falavam sua língua,
aparentemente, e era tudo que os unia. Palavras. A pele, no entanto, era outra.
Era outra a estrutura óssea. Eram outros os motivos, era tudo outro.
Palavras deixam sempre rastros fáceis de se encontrar.
E rastros contam sua história. Qual era a sua? Sabia apenas que um dia
despencara numa terra estranha, longe de tudo conhecido, longe de todos os
conhecidos. Não reconhecia nada nem ninguém. Não ouvia nada que tivesse
significado, nem falava alguma coisa que alguém mais entendesse. Cruzavam os
olhares como se fossem de outro mundo.
Um belo dia, depois de tanto tempo, quando já se
habituara à falta de assunto geral e se entendeu com os silêncios barulhentos
que a rondava, de repente, deparou com palavras inteligíveis, frases inteiras
faziam sentido. O mundo estava mudando. As pessoas pareciam mudar, ou era ela?
Sim. Ela mudou de roupa muitas vezes. Trocou de
penteado, trocou de lado do rio. Experimentou o quente e o frio, o novo e o
velho. Foi a pé para longe, pegou taxi para o perto. As nuvens lhe atravessaram
a alma, lavando com névoa o que era cinza no tempo de sua chegada. E ela pode
ouvir rasgar o sorriso às suas costas. Era a alegria que voltava, a confiança,
a certeza. Ela mesma nem imaginava que existiam, nem queria mais que existisse,
porque lhe afligia procurar por uma lenda, um mistério, um engano.
Tirou o pó de todos os móveis, arrumou tudo, se
preparou para o jantar e fez seu melhor prato. Foi uma festa. Irmãos que se
reencontram depois de adultos. Onde você estava esse tempo todo? Mistérios,
portas abertas, garfos pousados sobre os pratos enquanto tilintavam as línguas
inesperadamente decifradas.
Então, fez aquilo. O gesto. O sopro da alma no
movimento das mãos. O olhar acompanhando de perto. O gesto como uma leve
insistência do vento balançando a folha, quase insignificante, quase imperceptível.
Tocou de leve a pele que não era a sua. Macia, quase doce. Macia mas firme,
tensa. A pele que não era sua respondeu ao toque como se fosse seu. Deixou-se
tocar, disponível.
Haveria algo mais? Acordaria? Sonhava? Não soube. Durante
aquele toque, o mundo acabou. Era o ano do fim. No que andara acreditando que
tanto lhe assustara agora apenas um gesto? O seu. O seu desconserto, um
desespero antigo, remoto, muito conhecido, retomou o fôlego. A surpresa de
haver tocado de forma tão natural e espontânea, impensadamente, tocado o outro
que estava em festa, transpondo a linha do tempo, rompendo a luz, a sombra, a
emoção. Corrompendo o paraíso. Onde aprendera a ser assim, natural?
Era tarde. Tudo o mais precipitou
violentamente para baixo. O que faria por si? Como se salvaria? Arruinara tudo?
Sem respostas, até mesmo para aquelas mais corriqueiras, sem se entender ao
certo, julgando-se e forjando não perceber, foi mergulhando ensimesmada,
enrolando-se, mal disfarçada.
Tirou a mesa, agradeceu a presença de todos, fechou a
porta e foi para a cama, sozinha. Fechou os olhos, fingiu dormir. Silêncio. No
escuro que se fez prolongado, olhou para si mesma querendo o nome. O que era?
Como se chamava? Ela não sabia mais. Súbito, mas tarde demais, percebeu que não
tinha mais palavras. Elas haviam se perdido desconectadas diante do que sentia.
E sentia o quê? Estava estranha. Voando,
sem pisar o chão firme. Um frio na barriga. Um desconforto que provocava risos
nervosos.
Quem ela pensava de si mesma não olhou para trás.
Seguiu em frente como sempre fizera, assim, só. Mas o que era de fato, uma
pessoa inexplicavelmente ingênua e sôfrega, mal respirando para não mover
demais o abdômen, invisível, se virou para outra direção. Já não tinha mais o
bilhete para o trem. Já não tinha mais passagem para o voo. Perdera ou fora
deixada, não importa. Perdeu a validade. No vão dos trilhos, ficou olhando o
tempo passar um pouco antes de tomar o ar e corrigir o arco, a flecha de seu
destino novamente empunhada.
A mão, ali, flagrante de seu impulso, lhe expunha. Não
estava só nem estava longe de casa. Foi fácil acreditar na fantasia esse tempo
todo. Borboleta acordando, as asas amassadas, coloridas, no entanto. Ela nem
percebeu seu peso mais leve, nem se viu na transparência do hálito que soprava
o vidro da janela. Escreveu seu nome no embaçado, escreveu, repetiu, repetiu
para não se perder: quem era ela, quem era ela. Abrupta mas agora também
pausada. No instante de sua descoberta, perdida. A mão.
Beijou a mão vergonhosamente arreganhada. Conduziu-a ao
peito, a respiração presa, prevendo o que faria em seguida. E assim mesmo, na
rua, enfiou-se no decote descuidado, por dentro da roupa apalpando, morna,
suada, o seio pedinte. O grito de horror e despudor, desmascarada no carnaval
chuvoso. O seu velho mundo com medo de quem era agora. E ela era um ela. Ela
demasiado ela. Ela demasiado à beira de si mesma. Desfolhada, florida, florada,
o mel escorrendo feminino. Ela.
O mundo que
criara cuidadosamente arrumado estava por um fio. E agora? As perguntas
diminuindo, as respostas faltando ainda e, no entanto, mais certa. Ela diante
do desejo. Não podia mais fugir, não podia mais fingir que não havia. Era
desejo. Agora, ela queria, queria muito. Mal sufocava um grito de sim. Tirou da
bolsa um espelhinho. Arrumou o baton, as sobrancelhas, nervosa, tentou sorrir.
Não conseguiu. Sua felicidade escorrendo por dentro, como nunca antes. Uma dor
na virilha, alegre e fria. Suava. Queria. A pele.
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