domingo, 14 de outubro de 2012

Metamorfose



Olhou para o lado e se viu novamente sozinha. Sim, por um breve instante em sua vida acreditara que de sua nave espacial havia saído mais gente nessa sua aventura, mas se enganara. Falavam sua língua, aparentemente, e era tudo que os unia. Palavras. A pele, no entanto, era outra. Era outra a estrutura óssea. Eram outros os motivos, era tudo outro.

Palavras deixam sempre rastros fáceis de se encontrar. E rastros contam sua história. Qual era a sua? Sabia apenas que um dia despencara numa terra estranha, longe de tudo conhecido, longe de todos os conhecidos. Não reconhecia nada nem ninguém. Não ouvia nada que tivesse significado, nem falava alguma coisa que alguém mais entendesse. Cruzavam os olhares como se fossem de outro mundo.

Um belo dia, depois de tanto tempo, quando já se habituara à falta de assunto geral e se entendeu com os silêncios barulhentos que a rondava, de repente, deparou com palavras inteligíveis, frases inteiras faziam sentido. O mundo estava mudando. As pessoas pareciam mudar, ou era ela?

Sim. Ela mudou de roupa muitas vezes. Trocou de penteado, trocou de lado do rio. Experimentou o quente e o frio, o novo e o velho. Foi a pé para longe, pegou taxi para o perto. As nuvens lhe atravessaram a alma, lavando com névoa o que era cinza no tempo de sua chegada. E ela pode ouvir rasgar o sorriso às suas costas. Era a alegria que voltava, a confiança, a certeza. Ela mesma nem imaginava que existiam, nem queria mais que existisse, porque lhe afligia procurar por uma lenda, um mistério, um engano.

Tirou o pó de todos os móveis, arrumou tudo, se preparou para o jantar e fez seu melhor prato. Foi uma festa. Irmãos que se reencontram depois de adultos. Onde você estava esse tempo todo? Mistérios, portas abertas, garfos pousados sobre os pratos enquanto tilintavam as línguas inesperadamente decifradas. 

Então, fez aquilo. O gesto. O sopro da alma no movimento das mãos. O olhar acompanhando de perto. O gesto como uma leve insistência do vento balançando a folha, quase insignificante, quase imperceptível. Tocou de leve a pele que não era a sua. Macia, quase doce. Macia mas firme, tensa. A pele que não era sua respondeu ao toque como se fosse seu. Deixou-se tocar, disponível.

Haveria algo mais? Acordaria? Sonhava? Não soube. Durante aquele toque, o mundo acabou. Era o ano do fim. No que andara acreditando que tanto lhe assustara agora apenas um gesto? O seu. O seu desconserto, um desespero antigo, remoto, muito conhecido, retomou o fôlego. A surpresa de haver tocado de forma tão natural e espontânea, impensadamente, tocado o outro que estava em festa, transpondo a linha do tempo, rompendo a luz, a sombra, a emoção. Corrompendo o paraíso. Onde aprendera a ser assim, natural?

Era tarde. Tudo o mais precipitou violentamente para baixo. O que faria por si? Como se salvaria? Arruinara tudo? Sem respostas, até mesmo para aquelas mais corriqueiras, sem se entender ao certo, julgando-se e forjando não perceber, foi mergulhando ensimesmada, enrolando-se, mal disfarçada. 

Tirou a mesa, agradeceu a presença de todos, fechou a porta e foi para a cama, sozinha. Fechou os olhos, fingiu dormir. Silêncio. No escuro que se fez prolongado, olhou para si mesma querendo o nome. O que era? Como se chamava? Ela não sabia mais. Súbito, mas tarde demais, percebeu que não tinha mais palavras. Elas haviam se perdido desconectadas diante do que sentia. E sentia o quê?  Estava estranha. Voando, sem pisar o chão firme. Um frio na barriga. Um desconforto que provocava risos nervosos.

Quem ela pensava de si mesma não olhou para trás. Seguiu em frente como sempre fizera, assim, só. Mas o que era de fato, uma pessoa inexplicavelmente ingênua e sôfrega, mal respirando para não mover demais o abdômen, invisível, se virou para outra direção. Já não tinha mais o bilhete para o trem. Já não tinha mais passagem para o voo. Perdera ou fora deixada, não importa. Perdeu a validade. No vão dos trilhos, ficou olhando o tempo passar um pouco antes de tomar o ar e corrigir o arco, a flecha de seu destino novamente empunhada.

A mão, ali, flagrante de seu impulso, lhe expunha. Não estava só nem estava longe de casa. Foi fácil acreditar na fantasia esse tempo todo. Borboleta acordando, as asas amassadas, coloridas, no entanto. Ela nem percebeu seu peso mais leve, nem se viu na transparência do hálito que soprava o vidro da janela. Escreveu seu nome no embaçado, escreveu, repetiu, repetiu para não se perder: quem era ela, quem era ela. Abrupta mas agora também pausada. No instante de sua descoberta, perdida. A mão. 

Beijou a mão vergonhosamente arreganhada. Conduziu-a ao peito, a respiração presa, prevendo o que faria em seguida. E assim mesmo, na rua, enfiou-se no decote descuidado, por dentro da roupa apalpando, morna, suada, o seio pedinte. O grito de horror e despudor, desmascarada no carnaval chuvoso. O seu velho mundo com medo de quem era agora. E ela era um ela. Ela demasiado ela. Ela demasiado à beira de si mesma. Desfolhada, florida, florada, o mel escorrendo feminino. Ela.

 O mundo que criara cuidadosamente arrumado estava por um fio. E agora? As perguntas diminuindo, as respostas faltando ainda e, no entanto, mais certa. Ela diante do desejo. Não podia mais fugir, não podia mais fingir que não havia. Era desejo. Agora, ela queria, queria muito. Mal sufocava um grito de sim. Tirou da bolsa um espelhinho. Arrumou o baton, as sobrancelhas, nervosa, tentou sorrir. Não conseguiu. Sua felicidade escorrendo por dentro, como nunca antes. Uma dor na virilha, alegre e fria. Suava. Queria. A pele.

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