Não, o que me aflige não é a violência explícita e
virulenta, que deixa sua pegada no rastro de sua passagem. Não é esse tipo de
atitude prepotente e acintosa, descarada, sem vergonha de ser o que a
ignorância lhe esculpiu. Nenhum espancamento moral, amordaçamento, cinismo, a
estupidez levada até as últimas consequências, nada disso assusta por ser
declaração embandeirada do alto de sua impotência. Mas aquela violência calma,
sob controle, perspicaz e incisiva do crime não deflagrado, não reconhecido. A
violência esplêndida escondida sob a tutela de bons gestos, paternal e
protetora, essa sim. De todos os males que a ignorância é capaz, o maior é
aquele que não o identifica.
O sarcasmo que alguém demonstra por outro, de cima de uma
pilha de títulos e prêmios, com aparente domínio de ser e estar; a humilhação
que impinge sem mostrar suas cartas; a dor alheia, distante, que não deixa
roxos, mas faz ajoelhar. Eis que o maior de todos os predadores se permite
também ser desprezível, rebaixado.
Ninguém deveria aceitar respirar pela boca aberta,
paralisado o peito e perdida a tranquila certeza na vida. Ninguém que aceite
viver na correria de tentar acertar o tempo todo para ganhar o amor, ou um
beijo, ou um olhar intencional, ou talvez uma lembrança. Ninguém. Ninguém
poderia ir dormir sôfrego porque não sabe se disse bem o que queria dizer, mas
era tão importante. Ninguém precisaria gritar, gritar até a exaustão, para
poder ser ouvido no seu direito ao silêncio. E, acima de tudo, ninguém para
julgar, banir, desprezar.
Eu não aceito. Essa violência encubada por trás de elogios e
presentes. Que aprisiona em nome de um mundo livre. A violência insana da
verdade imposta. De haver uma única verdade. Inquestionável. Interminável.
Incurável. Não aceito o não. Ou o sim definitivos. A violência de dentes
cerrados por dentro dos lábios macios. Que responde a apelidos de criança.
Terei endurecido sob o concreto dos prédios e luzes frias?
Perdi o rumo? Andando pelas ruas distantes de uma vida que já não há mais, um
pouco do pó do tempo. Mal espanado, voando com o vento pela minha passagem.
Paredes pixadas. Barulhos e entulhos. Mas quem sabe, dentre a névoa esfumaçada
que envolve tudo, se inicie a despontar figuras humanas verdadeiramente humanizadas.
Elas se procuram e, encontrando o olhar firme de outrem, encaram. Sustentam.
Do deserto do saara até aqui foi um pulo. No meio das luzes
da cidade, o sorriso inesperado da lua com uma pinta de vênus no canto
esquerdo. Noite clara, quente, repleta de risadas incontidas. O mundo pode ser
cheio de graça, como a vida. A vida que sabe se dar sem pedir nada em troca.
Existirá? Existirá um tipo de amor assim? Incondicional. Capaz de rir a noite
toda e ir para casa sozinho sem barganhas, sem chantagens, sem rendição. Se
existir, foi o que foi.
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