quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Fragmentos



Não, o que me aflige não é a violência explícita e virulenta, que deixa sua pegada no rastro de sua passagem. Não é esse tipo de atitude prepotente e acintosa, descarada, sem vergonha de ser o que a ignorância lhe esculpiu. Nenhum espancamento moral, amordaçamento, cinismo, a estupidez levada até as últimas consequências, nada disso assusta por ser declaração embandeirada do alto de sua impotência. Mas aquela violência calma, sob controle, perspicaz e incisiva do crime não deflagrado, não reconhecido. A violência esplêndida escondida sob a tutela de bons gestos, paternal e protetora, essa sim. De todos os males que a ignorância é capaz, o maior é aquele que não o identifica.

O sarcasmo que alguém demonstra por outro, de cima de uma pilha de títulos e prêmios, com aparente domínio de ser e estar; a humilhação que impinge sem mostrar suas cartas; a dor alheia, distante, que não deixa roxos, mas faz ajoelhar. Eis que o maior de todos os predadores se permite também ser desprezível, rebaixado. 

Ninguém deveria aceitar respirar pela boca aberta, paralisado o peito e perdida a tranquila certeza na vida. Ninguém que aceite viver na correria de tentar acertar o tempo todo para ganhar o amor, ou um beijo, ou um olhar intencional, ou talvez uma lembrança. Ninguém. Ninguém poderia ir dormir sôfrego porque não sabe se disse bem o que queria dizer, mas era tão importante. Ninguém precisaria gritar, gritar até a exaustão, para poder ser ouvido no seu direito ao silêncio. E, acima de tudo, ninguém para julgar, banir, desprezar. 

Eu não aceito. Essa violência encubada por trás de elogios e presentes. Que aprisiona em nome de um mundo livre. A violência insana da verdade imposta. De haver uma única verdade. Inquestionável. Interminável. Incurável. Não aceito o não. Ou o sim definitivos. A violência de dentes cerrados por dentro dos lábios macios. Que responde a apelidos de criança. 

Terei endurecido sob o concreto dos prédios e luzes frias? Perdi o rumo? Andando pelas ruas distantes de uma vida que já não há mais, um pouco do pó do tempo. Mal espanado, voando com o vento pela minha passagem. Paredes pixadas. Barulhos e entulhos. Mas quem sabe, dentre a névoa esfumaçada que envolve tudo, se inicie a despontar figuras humanas verdadeiramente humanizadas. Elas se procuram e, encontrando o olhar firme de outrem, encaram. Sustentam.

Do deserto do saara até aqui foi um pulo. No meio das luzes da cidade, o sorriso inesperado da lua com uma pinta de vênus no canto esquerdo. Noite clara, quente, repleta de risadas incontidas. O mundo pode ser cheio de graça, como a vida. A vida que sabe se dar sem pedir nada em troca. Existirá? Existirá um tipo de amor assim? Incondicional. Capaz de rir a noite toda e ir para casa sozinho sem barganhas, sem chantagens, sem rendição. Se existir, foi o que foi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário