Certa vez
ouvi um amigo ridicularizando o ato de pensar comum em detrimento do pensar
filosófico, na esteira da música de Caetano Veloso, onde ele diz “só é
permitido filosofar em alemão”, numa inversão de valores, e vestindo a
carapuça. Ainda há esse viés popular de que pensar é para os fortes, para
alguns que têm o dom verdadeiramente filosófico, e assim, colocando o ato de
pensar na edícula, ao mesmo tempo desempoderando a atitude, e mitificando-o.
Pois pensar
a mim parece a última esfera individual, intrinsecamente pessoal, com conteúdo
particular e íntimo. A expressão cabal da liberdade. A liberdade de pensamento
talvez seja a única forma de liberdade literal, profunda e total que uma pessoa
possa experimentar. Ainda assim, ela está subserviente a alguns elementos
individuais, como se não soubesse que não tem coleira, que não há cercas, que
não há, enfim, limites. Está sujeita à consciência do indivíduo. E se
lembrarmos que até outro dia éramos escravos, colonos, vassalos, não podíamos
pensar e agir individualmente, mas como classe social e, posteriormente, como
massa de manobra, a consciência de um todo maior ainda parece empanada.
Hoje ainda
assistimos ao triste espetáculo da inundação de informações e a soberania dos
meios de comunicação como se fossem obrigatórios para que um indivíduo conheça
a realidade que o cerca, e não o contrário. Um verdadeiro circo cheio de cores
vibrantes, textos ou imagens bombásticas, afirmações seguidas de negações,
repleto de grandes manchetes e de conteúdos distorcidos, ou contraditórios. Houve
um tempo em que bastava manter a população ignorante de saber ler, mas como as
exigências do capitalismo o impediam, agora basta manter essa população
entretida com o mar de informação, tentando achar uma agulha na espuma do vagalhão.
Sim, sou
adepta à filosofia de botequim, da conversa sem fim e sem finalidade, que
destrincha assuntos por horas e com risadas, com sarcasmo ou outro tipo de
agudeza, torpe ou suave, não importando tanto o como e sem procurar ser eficiente nas conclusões. Adepta às
discussões inflamadas ou amenas, embebidas ou secas, entre amigos que não
querem convencer ninguém, mas discutir, pensar, refletir. O pensamento
silencioso já é poderoso, mas exposto é libertador. Ao ouvir minhas idéias
chamuscadas por críticas ou alimentadas por lenha, posso largá-las à deriva,
posso fazê-las alçar vôo. Afinal, para pensar, não preciso estar certa. Não
preciso sequer ter certezas, posso manifestar minhas dúvidas, minha
insegurança, meus devaneios, e o mundo passa a ter outra qualidade.
Por isso o
silêncio. Por isso a necessidade do silêncio, de momentos sem celulares, TVs,
jornais, revistas, um minuto de contemplação, um minuto de estar comigo mesma,
meditar, para que os pensamentos, como radicais livres, caiam no colchão da
consciência, lenta e apaziguadamente. Para que as pedras do caminho sejam
reconhecidas, medidas, avaliadas. Para que as rotas sejam corrigidas, as
direções retomadas, renovadas.
É uma
completa falácia a ainda corrente grita de que o tempo urge. A vida é
exatamente esse passar do tempo, portanto, quem está correndo está vivendo
correndo, e não indo para algum lugar de fato. Importa menos o fim, mas muito
mais o meio, o meio do caminho, o como, o onde, o agora. Correr atrás do tempo
é apenas um mecanismo a mais que, juntamente com o excesso de informação não
deglutida, escraviza a mente, exaure o corpo, gera doenças, mantém massas de
manobra prontas para fazer o que for comandado, comprar o que for exigido,
pagar o preço que for. O tempo é vida.
E a vida que
não transcorre nesse tempo, que não sabe o que anda comendo, nem consegue parar
para contemplar o que caminhou e aonde chegou, essa vida que responde ao tempo
marcado no relógio, ignóbil, duro, insensível, não é vida, é apenas uma
existência – rica ou pobre, faminta ou gorda, brilhante ou deprimida – mas
apenas existência. O sentido reside no abraço possível, nos olhares que se
cruzam indefesos, nas palavras que puderam ser ditas e ouvidas, na troca entre
outras vidas.
Hoje,
podendo escolher, e reconhecendo esse poder, minha vida tem mais sentido.
Recuperando o tempo como algo intrínseco da minha vida, posso dizer que tudo o
mais, trabalho, amigos, papel social, político, família, tudo é verdadeiramente
resultado de minhas escolhas. Minhas, e cada vez menos as que alguém queria
para mim. Viver pode alcançar outras esferas, outras dimensões, a amplitude que
o pensamento almejar. Isso já nos disse a física quântica. Mas muitos ainda
insistem na consistência da matéria, na dureza da vida, ainda acreditando que
uma vida assim sob o julgo das próprias mãos e pés e corpo inteiro é uma
utopia. Hoje, estou preferindo o vôo aos trilhos do trem. E ainda pode ser muito
melhor.
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